Professor diz que jovem com cabelo afro não pode ser apresentadora, afirma aluna

    Segundo denúncia, professor de jornalismo da Universidade Tiradentes, em Aracaju (SE), disse que cabelo da jovem chamaria mais atenção do que notícia

    Caso Racismo na universidade
    Luciana Nascimento/Ponte Jornalismo

    Era para ser um dia comum de aula na vida de uma estudante de jornalismo de 20 anos de idade. Ela acordou cedo, numa sexta-feira, e estava na batalha desde as 7h da manhã. A sua preocupação era a aula na universidade na manhã seguinte.

    Débora (nome fictício, que a Ponte vai usar  a pedido da estudante para preservar sua identidade) faz, aos sábados, as aulas de dicção da cadeira de comunicação e expressão oral da Universidade Tiradentes, em Aracaju (SE), fundada em 1972.

    Neste curso, a área de Televisão é estruturada e referência no Nordeste. Mesmo com uma sexta exaustiva, ela se preparara no sábado nublado, 20 de maio, para informações sobre a área e estava atenta, afinal, o professor dava as explicações de como se portar diante uma bancada de telejornal, seu sonho.

    Nessa instituição, uma boa parte dos alunos almeja um dia  trabalhar na televisão, Débora também. Ela nunca teve problema ou falta de técnica para atuar em frentes às câmeras. Bonita e extrovertida, já fez um curso de teatro.

    Porém, o professor, que é fonoaudiólogo de formação, achou conveniente fazer um comentário sobre a aparência da jovem.

    O fonoaudiólogo observou aluno por aluno e comentou suas performances na bancada. A aluna Débora, em meio ao cansaço, esperava ansiosa pela observação do professor. Para sua surpresa, ela escutou que não poderia ser uma jornalista de bancada (âncora), mas uma repórter de rua ou garota do tempo. O motivo era o seu tipo de cabelo. A jovem negra tem um cabelo black e descolorido, muito comum entre jovem negros em todo país. O professor afirmou que o cabelo chamaria mais atenção do que uma notícia, mesmo que fosse um escândalo político.

    Segundo o  IBGE,  mais de 60% dos moradores de Sergipe são negros.

    Tristeza

    Engolindo seco aquele aquela frase, a jovem ouviu e comentou mais tarde com sua chefe, em seu estágio. A jornalista, ao terminar de ouvir aquilo, ficara estarrecida. No mesmo momento, postou a história em uma rede social, sem citar nomes ou instituição; inflamando o debate e levando a público uma problemática cruel.

    No momento da frase, a jovem relembra alguns alunos ouviram e consideraram a frase como correta, normal até.  Todavia, para a estudante, o único sentimento era uma triste decepção e a possibilidade de desistir de um sonho.

    “No momento, eu me senti muito triste. Logo perguntei a minha chefe sobre o caso. Ninguém falou nada quando ele falou do meu cabelo. Eu também não, afinal, eu não sabia nem o que dizer. Mas, quando contei à minha chefe, ela ficou revoltada e me explicou o que estava acontecendo. Quando me dei conta, fiquei muito revoltada. Ele retirou, a princípio, um sonho meu, mas vi que ele estava errado demais”, diz.

    Boa parte dos estudantes da sala, que é  formada por uma maioria de alunos brancos, ficou do lado do professor. Alguns colegas alegaram que Débora estava exagerando e se vitimizando. “Quem não estava na aula saiu em defesa do professor. Não entendi a motivação, mas aquilo me deixou profundamente magoada”, revela.

    Além do “gelo” dos colegas de turma, a estudante ainda teve que vivenciar uma campanha em defesa do professor, em que os alunos criaram até uma hashtag #nãohouveracismo para colocar em publicações que comentavam o caso.

    Omissão

    Débora para R$ 699 por mês para estudar na universidade. A jovem, que mora sozinha e recebe R$ 510 do estágio, conta com a ajuda dos pais para se manter na cidade.

    A estudante procurou os canais competentes da Universidade Tiradentes para fazer a denúncia: a coordenadora do curso de comunicação, que desmarcou o encontro sem avisá-la, e a Ouvidoria da universidade.  “Ao me ouvir, o ouvidor disse que estava para me proteger, mas me senti muito desconfortável com as coisas que ele dizia. Ele disse que não via ‘maldade nenhuma’ no comentário do professor na sala de aula e me falou que, se eu desse depoimento numa delegacia, o delegado diria que não houve racismo”, disse a estudante.

    Débora também registrou um boletim de ocorrência na Delegacia de Grupos Vulneráveis contra o professor, que não compareceu à audiência, marcada para 19 de junho, pois a instituição devolvera o documento, alegando que o setor do educador não estava especificado.

    Ouvida pela reportagem a respeito do caso, a advogada e ativista de direitos humanos Mayara Silva considerou que o caso de Débora se enquadra como racismo, conforme a Lei do Crime Racial (7.716/89). “Dizer que alguém não pode ocupar um espaço para o qual ela tem total capacidade, competência e desejo só por causa do cabelo é um caso de racismo escancarado. Na aula, o professor declarou, mesmo não sendo especialista na área, que aquele determinado tipo de cabelo não servia. Logo, todos com aquele cabelo, seja homens ou mulheres, são incluídos na fala dele sobre uma característica de raça.  Ou seja, está atingindo uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça”, afirma.

    O caso fez um mês ontem (20/6) e ainda não teve solução. “Eu espero que isso se resolva o mais rápido possível, porque eu não estou aguentando mais essa situação. E desejo e todo o coração que isso não aconteça com mais ninguém”, diz Débora.

    Outro lado

    Questionada pela reportagem, a Universidade Tiradentes enviou uma nota, por meio de sua assessoria de comunicação:

    “A ocorrência relatada chegou ao conhecimento da coordenação do curso, que de imediato acionou as instâncias competentes da Universidade para apuração dos fatos. O teor do relato causou grande surpresa à coordenação em razão do tratamento respeitoso e igualitário que caracteriza as relações entre os membros da comunidade universitária, em especial a comunicação entre professor e aluno, já que essa é a razão de existência da universidade,

    Desse modo, em respeito à sua comunidade acadêmica e, sobretudo, aos valores e princípios éticos que a norteiam, a Universidade Tiradentes irá apurar rigorosamente os fatos, para que, logo após, as devidas providências sejam tomadas, já que a instituição não pactua – nem pactuará – com qualquer tipo de fato que possa desestabilizar e ameaçar o clima de respeito que deve pautar as relações entre alunos, professores e técnico-administrativos”.

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