Para familiares de jovens assassinados por policiais, criação da Semana Estadual das Vítimas de Violências é uma forma de o Estado reconhecer sua responsabilidade nas mortes
“É o primeiro passo que o Estado dá reconhecendo as vítimas que ele mesmo faz, que ele mesmo produz. E essa lei vem mostrar que, através da nossa luta, a gente faz perpetuar, sim, a memória dos nossos filhos. Que nós estamos aí e não vamos deixar que esqueçam o que esse Estado racista, excludente, classista, genocida fez com os nossos filhos”.
A fala é de Ana Paula de Oliveira, mãe de Johnatha de Oliveira Lima, morto aos 19 anos com um tiro nas costas por um policial da UPP de Manguinhos, em maio de 2014. Mas poderia ser de qualquer outra mãe de vítima de violência do Estado, diante da vitória conquistada pelo movimento de familiares ontem (31/5): após um processo intenso de luta, sobretudo de mulheres que tiveram seus filhos mortos por policiais, foi aprovado na Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) o Projeto que Lei 1789/2016, que institui a Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violências no Estado do Rio de Janeiro, que passará a ser celebrada entre os dias 12 e 19 do mês das mães.
“É uma lei importante porque, de certa forma, o Estado acaba admitindo, reconhecendo que ele faz vítimas e que existem familiares, mães, que estão na luta por Justiça, pela memória de seus filhos, de seus entes queridos”, diz Ana Paula. “Essa vitória faz com que a luta de todas as mães, de todos os estados, se fortaleça cada dia mais”, comemora.
Desenvolvido a partir da demanda do movimento de mães de vítimas de violência, o projeto de lei é de autoria do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) e inspira-se na Lei nº 15.501/2014, do Estado de São Paulo, que criou a semana que homenageia as mães de vítimas no mês de maio. Aprovada em 2014, a lei foi consequência de uma luta intensa do Movimento Independente Mães de Maio, que nasceu após os Crimes de Maio de 2006, quando o Estado de São Paulo sofreu uma onda de violência com a morte de 500 pessoas, sendo a maioria jovens negros e pobres.
Segundo Monica Cunha, mãe de Rafael da Silva Cunha, morto por um policial civil aos 20 anos, em dezembro de 2006, no Riachuelo, Zona Norte do Rio, “a lei é também a comprovação de que o Estado está assumindo a responsabilidade” por seus crimes e pelo fato de as mulheres não poderem ter seus filhos, no mês em que se comemora o Dia das Mães. “Porque ele não está dando uma lei de benefício pra nós, mas uma lei a mães que tiveram seus filhos mortos pelo próprio Estado”, diz ela, que é fundadora e coordenadora do Movimento Moleque, que reúne mães de vítimas de violações em instituições socioeducativas.
Objetivo é de que a lei seja nacional
As mães são taxativas com relação ao objetivo de que a lei transcenda Rio e São Paulo. “A ideia é expandir a lei para todos os estados do Brasil, tornar essa lei nacional”, diz Ana Paula.
A vitória já é das mães de vítimas de todo o país, segundo Monica. “O que queremos de fato é que essa lei seja nacional, que o Brasil reconheça o quanto é racista, que chegue à Câmara e as mães tenham esse reconhecimento em âmbito nacional. Quando acontecer, nós poderemos sentar e começar a discutir racismo de verdade. Porque esse é o objetivo, colocar para o mundo que o Brasil é racista e que o primeiro motivo para os nossos filhos terem sido mortos é serem negros, filhos de mulheres negras”, afirma.
A ideia é que a aprovação de um projeto de lei que institua também a Semana das Vítimas de Violências no Brasil propicie e aprofunde a discussão de políticas de memória e reparação para familiares de vítimas. “Precisamos sentar de fato para conversar com órgãos maiores, falar sobre reparação da escravidão, reparação para esses familiares que hoje tem uma dor imensa, um vazio tremendo e uma saudade desesperadora. Essa lei é muito importante, é o gosto de uma vitória que estava engasgada há muitos anos”, crava Monica.
“Enquanto tivermos força e saúde, lutaremos”
O mês de maio é simbólico para as mães, tanto para as que perderam seus filhos neste mês, como as Mães de Maio de São Paulo e Ana Paula de Oliveira como para as tantas mulheres que, depois de perderem seus filhos, não puderam mais comemorar o Dia das Mães no segundo domingo de maio, todos os anos.
“O mês de maio é muito especial e representativo pra nós. Pra todas as mães. E para as mães que não têm mais seus filhos, pelo menos fisicamente, porque eles sempre estarão com a gente, é muito simbólico que essa lei seja estabelecida. Porque pra gente restou um vazio. As mães não conseguem mais comemorar um Dia das Mães. Mesmo as que têm outros filhos, nunca mais têm um dia completo, pleno de felicidade, isso nunca mais”, lamenta Ana Paula.
Por esse motivo, a semana que prestigia as vítimas de violência do Estado é também uma exaltação da luta do movimento de mães. “Infelizmente, pra nós, que somos pobres, pretos, moradores de favelas, nada vem fácil. Só conseguimos as coisas através de muita luta, mesmo. E enquanto tivermos força e saúde, lutaremos, sim”, encerra.
Luta pela aprovação da lei
Em ato realizado em frente à Alerj no dia 19 de maio último, quando deputados se reuniram com familiares de vítimas de violência de Estado para uma reunião em que o projeto de lei foi discutido, os parlamentares receberam um documento, assinado pelos movimentos Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, Mães de Manguinhos, Fórum Social de Manguinhos, Fórum Grita Baixada, Centro dos Direitos Humanos de Nova Iguaçu, Mães e Familiares Vítimas da Chacina da Baixada, Movimento Candelária Nunca Mais e Mães de Maio.
Leia, abaixo, na íntegra, a Carta Aberta dos Familiares de Vítimas do Estado aos deputados da ALERJ:
Nós, mães e familiares de vítimas da violência e da letalidade das forças policiais do Estado do Rio de Janeiro, vimos por meio desta carta solicitar aos deputados estaduais apoio e agilidade na votação de projetos de lei que visam a minimizar a violência policial e garantir os direitos de assistência e reparação aos familiares que tiveram seus filhos assassinados por policiais. Vivemos um momento de exacerbação das práticas violentas pelos agentes do Estado, com operações diárias em comunidades, domicílios invadidos, cidadãos desrespeitados, violentados e mortos diariamente devido à uma política de segurança pública voltada para o controle social da população população negra, pobre e favelada. Por isso, urgimos que medidas sejam tomadas por parte do Poder Legislativo no sentido de agilizar a tramitação e votação de projetos de lei que possam promover melhorias na investigação dos casos, a reparação aos familiares e o acompanhamento psicossocial das famílias vitimadas pelas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado.
Desde 2007, as polícias do Estado do Rio mataram mais de 8 mil pessoas em intervenções policiais, nos chamados “Autos de Resistência”, casos em que os policiais alegam ter atirado em suposta legítima defesa. Desde 2014, o número de mortos pelas polícias voltou a subir, chegando a 920 pessoas no ano passado. Nos três primeiros meses deste ano, foram mais de 300 pessoas, o equivalente a 3 mortos por dia pelas forças do Estado – o mais alto índice histórico, atingido somente no ano de 2007. Pesquisas apontam que apenas 2% desses casos chegam a ser denunciados à Justiça, devido à falta de investigação por parte da Polícia Civil. A maioria dos inquéritos procrastinam durante anos, sem haver perícias de local, confrontos balísticos nem reconstituições. As armas dos policiais sequer são apreendidas de fato em sede policial, ficando os policiais envolvidos responsáveis por levá-las ao ICCE, o que demora muito a acontecer. As testemunhas que figuram nos inquéritos são os próprios policiais militares envolvidos nas ocorrências, os quais, por sua vez, continuam trabalhando livremente nas ruas, mesmo nos poucos casos em que há denúncia pelo Ministério Público.
Ao nos tornarmos vítimas do Estado, nós, mães e familiares, não contamos com o apoio do Estado, que nos deve assistência psicossocial, reparação financeira e o acompanhamento das investigações dos casos. Se o Estado falhou ao nos violentar, tem falhado diariamente ao negar nossos direitos, quais sejam, o direito a uma investigação independente, o direito à reparação econômica, o direito à assistência psíquica e médica, e o direito à memória de nossos filhos. É preciso que Estado seja responsabilizado por essas mortes e que isso se traduza numa política pública de reparação e acompanhamento dos familiares vitimados. E para que isso aconteça, é necessário que os deputados da Assembleia Legislativa do Rio façam a sua parte e dêem prioridade na pauta para projetos de lei voltados para as vítimas do Estado. Passamos a enumerar algumas iniciativas legislativas que consideramos de extrema urgência para reduzir a violência policial e garantir melhorias nas investigações e assistência aos familiares:
- Aprovação do Projeto de Lei 182/2015, que determina afastamento imediato de policiais que já respondam a processos na justiça e dispõe sobre os procedimentos que devem ser adotados pela Autoridade Policial nas ocorrências de Autos de Resistência; • Aprovação do Relatório Final da CPI dos Autos de Resistência, que aguarda inclusão na pauta para votação desde julho de 2016;
- Criação de um Fundo Estadual de Reparação Econômica, psíquica e social aos familiares por parte do Estado, inspirado na proposta de criação de um Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos, conforme o Projeto de Lei 3503/04, que tramita na Câmara Federal. Com o intuito de dar início imediato às discussões sobre o Fundo Estadual, solicita-se a instalação de um Grupo de Trabalho, vinculado à presidência da Casa e composto prioritariamente por mães e familiares de vítimas, bem como movimentos de favelas e de juventudes negras, com um prazo de 40 dias para a redação inicial da proposta;
- Aprovação do Projeto de Lei 1789/2016, que visa à criação da Semana Estadual de Luta das Mães e familiares Vítimas da Violência do Estado no mês de maio;
- Aprovação do Projeto de Lei 2011/2015 que dispõe sobre o funcionamento das perícias criminalísticas e médico-legal, visando maior autonomia das mesmas;
- Retorno da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos.
Contamos com o apoio dos senhores para que a nossa luta possa ressoar efetivamente nas comissões e no plenário desta Casa, de modo que o Legislativo cumpra o seu papel e contribua para mudanças positivas nas políticas públicas de segurança e assistência voltadas para o povo negro, pobre e favelado. Aguardamos um retorno o mais breve possível para que possamos prosseguir este importante diálogo em prol dos familiares de vítimas da violência do Estado.