Thiago Duarte foi baleado por um PM que estava de folga e morreu acusado de um crime que não cometeu. Quase cinco meses depois, o policial continua nas ruas e família precisou de advogados para levar caso da Justiça Militar para a Justiça Comum
Desde o final de abril deste ano a diarista Queli Duarte, 40 anos, convive com a revolta e com crises de ansiedade após perder seu filho, Thiago Aparecido Duarte de Souza, 20 anos. O jovem foi baleado na boca pelo policial militar Denis Augusto Amista Soares, que estava de folga, em 8 de abril. Thiago chegou a ser internado no Hospital Geral de São Mateus, na zona leste da cidade de São Paulo, onde permaneceu 13 dias, mas não resistiu.
Nesse meio tempo, a mãe teve que lidar com a ausência do filho, pois não o deixavam receber visitas no quarto do hospital e com o sentimento de impotência por ver o rapaz que tinha deficiência intelectual ser acusado de um roubo a mão armada, crime que não cometeu, segundo ela.
Hoje, Queli quer respostas para as perguntas que ainda pairam em sua mente: “De onde surgiu a arma? O que o policial fazia no bairro da zona leste, às nove horas da manhã se ele mora na zona norte? Como Thiago teria participado de um roubo se ele estava em casa na hora desse crime?”, questiona em entrevista à reportagem.
A Ponte contou em reportagem que o cabo Denis Augusto Amista Soares já matou outro rapaz chamado Thiago, que também era negro e possível morador de rua, na periferia da zona norte da capital paulista. Nas duas ocorrências, Soares apresentou revólveres de calibre 38, ambos com a numeração suprimida, como as armas utilizadas pelas vítimas. Apesar disso, o policial continua exercendo atividades na corporação.
O caso de Thiago Aparecido Duarte de Souza aconteceu no Jardim Arantes, bairro da zona leste da cidade de São Paulo, quando o jovem saiu de casa para comprar leite e pão para a família. A caminho do mercado, ele encontrou na rua Fernando Henrique Andrade da Silva, 27 anos, um conhecido de Thiago suspeito de ter roubado, um pouco antes, o funcionário de uma empresa telefônica — ele nega o crime.
Durante a caminhada, os dois rapazes foram abordados por Denis Soares na Rua do Carvalho Brasileiro. O policial atirou em Thiago. Para outros PMs que estiveram no local, Denis disse que baleou o jovem porque ele havia tentado assaltá-lo. No 49º DP (São Mateus), o cabo mudou de versão e disse que resolveu abordar os dois jovens após ter sido procurado por um funcionário terceirizado da Vivo, que disse ter sido roubado por dois homens. Denis alegou que atirou em “legítima defesa”, pois Thiago estaria armado com um revólver 38, de numeração raspada.
Uma testemunha, que teve seu depoimento coletado pela Rede de Resistência e Proteção contra o Genocídio e anexado ao processo, afirmou que as pessoas do bairro “contam que Thiago estava sem arma e o policial atirou nele por nada”. A mesma testemunha conta que Thiago permaneceu “agonizando no chão” ao longo de uma hora até ser socorrido.
A ação do policial foi gravada e divulgada em um vídeo publicado pela Ponte na época do ocorrido. Nele Fernando aparece deitado e rendido, e é possível ver o PM Enio Santana pisando na cabeça dele. O vídeo foi apresentado à Justiça pela Defensoria Pública, mas o promotor Osias Daudt não viu nele qualquer sinal de agressão. Em 20 de abril, Osias escreveu que “o que se assiste no vídeo é que o policial retira a mochila que contém os bens roubados da vítima das costas do denunciado Fernando e toca levemente com o pé na cabeça dele, sem pressionar e sem chutar”.
Em meio às investigações, o funcionário terceirizado da Vivo não reconheceu Thiago, mesmo assim, ele acabou autuado e denunciado por porte ilegal de arma. Fernando, entretanto, foi reconhecido como um dos ladrões. Ele está preso e foi denunciado pelo Ministério Público por roubo.
Negligência nas investigações
Em relatório final do inquérito policial, ainda em abril, o delegado André Luiz Pimentel de Queiroz constatou que o policial estava imobilizando Fernando visando a segurança da equipe e realizando “os procedimentos de praxe restantes até a chegada do apoio de outros policiais”. Em 23 de agosto, o juiz Rafael Dahne Strenger determinou que o processo fosse para a Justiça Militar.
Diante das omissões, a advogada criminalista e colaboradora da Rede de Proteção ao Genocídio Marina Toth solicitou a reconsideração da decisão do juiz. Na petição a ela alega que os depoimentos colhidos junto à Corregedoria da Polícia Militar, que não foram juntados nos autos, “reforçam a inegável ocorrência de delito de abuso de autoridade e homicídio por parte dos policiais militares investigados.”
Fora isso, segundo a petição da advogada, até o momento, somente foi realizada a juntada dos boletins de ocorrência, com as declarações dos policiais militares, e o relatório da investigação preliminar realizada pela Polícia Militar de São Paulo que aponta “indícios de transgressão disciplinar” cometida pelo PM Enio Santana, que teria pisado na cabeça de Fernando. Além disso, as testemunhas oculares não foram sequer intimadas a comparecerem na delegacia e o laudo necroscópico de Thiago, assim como o do local dos fatos não foram juntados ao inquérito.
Thiago foi flagrado em câmeras, antes da abordagem, que mostram claramente que ele não portava arma alguma, segundo a peça da advogada, que ainda expõe que as testemunhas ouvidas pela Corregedoria informaram que os policiais militares, após os fatos, bateram de porta em porta solicitando as gravações. “Há um mercado com uma câmera virada exatamente para o local da execução, no entanto, o proprietário informou que policiais levaram a gravação. Essas gravações nunca chegaram ao Inquérito Policial”, denuncia a defensora.
Por esses motivos, a advogada Marina Toth avalia que o caso deve ser mantido na justiça comum, o que foi acatado também pelo Promotor de Justiça do MPSP, Filipe de Melo Euzébio. “A polícia, muito embora não tenha realizado quase nenhuma diligência, já considerou o inquérito como finalizado. Agora o promotor da vara do júri vai analisar, e poderá dar prosseguimento ou solicitar o retorno para a delegacia realizar mais alguma diligência”, diz Marina.
Ela explica que até o momento a investigação foi feita praticamente apenas pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio e pela família de Thiago. “A família e a defesa solicitaram a abertura de procedimento na corregedoria da Polícia Militar para apuração administrativa do ocorrido, e levaram diversas testemunhas para serem ouvidas, foram aos comércios próximo ao local para recuperar imagens das câmeras de segurança, mas foram informados que os policiais já haviam pegado essas imagens, que nunca chegaram nos autos que investiga a morte do Thiago.”
Foi também da família, por meio das advogadas colaboradoras da Rede, a iniciativa de procurar as autoridades para juntar laudos médicos de Thiago e se colocar legalmente contra a remessa dos autos à Justiça Militar, diz Marina. “Praticamente tudo o que está no inquérito policial foi de iniciativa da família correr atrás e juntar. A família está muito decepcionada com a falta de interesse institucional, falta de interesse das autoridades policiais em realmente investigar a fundo e apurar o que aconteceu, e agora pretende trabalhar diretamente com o Ministério Público na busca por mais elementos de prova para que o policial seja levado à júri popular.”
Não houve avanço significativo nas investigações policiais a partir daquilo que a própria família juntou, “sequer o laudo do IML foi juntado no inquérito policial até agora”, revela a advogada. “A tentativa do judiciário de encaminhar o inquérito para a Justiça Militar foi um golpe duro, mas, felizmente, conseguimos reverter essa decisão a tempo, e agora o inquérito está sendo encaminhado para o juízo do júri.”
Ainda assim, ela aponta que é preocupante a forma sistêmica da Justiça Comum abrir mão da competência para julgar casos de homicídios envolvendo policiais em prol da Justiça Militar. “O que significa dizer que o Judiciário deixa se processar casos de homicídios dolosos cometidos por policiais, o que cria traumas e impactos muito negativos nas comunidades e nas famílias que perderam seus entes queridos muitas vezes em circunstâncias duvidosas e não recebem a efetiva resposta jurisdicional sobre esses homicídios”, pontua.
Apesar do luto diário, a mãe de Thiago, que tem mais dois filhos e uma neta, continua em busca de justiça. “Eu prometi para o meu filho lá naquele caixão que eu ia provar a inocência dele”, diz. “Eu quero saber de onde surgiu essa arma? Sou diarista, o pai dele é pintor, a gente nunca teve condições de comprar uma coisa assim, não se compra uma arma com 20 reais”, contesta.
Outro ponto levantado por Queli é o fato de que Thiago tinha dificuldades cognitivas, o que torna mais improvável ainda que ele tenha manuseado uma arma. “O Thiago teve uma infância, uma adolescência muito difícil, foi muito rejeitado devido ao probleminha que ele tinha. Meu filho não sabia ver as horas, a gente falava qual era o dia da semana para ele, ele não tinha maldade, conversava com todo mundo.”
Hoje, ela lembra dos dias em que ficou impedida de ver o filho nos seus últimos momentos de vida no hospital. “Não consegui entrar nenhum dia, todas as vezes que o médico me ligou disse que o Thiago estava respondendo, até que eu recebi a notícia que ele veio a óbito. Colocaram ele na área da Covid-19, tive que brigar no hospital para tirar ele dessa área e por ele na UTI normal.”
Ela diz que as investigações da morte de seu filho são marcadas pelo descaso, “simplesmente porque eu sou pobre, moro na periferia e tenho que lutar para provar a inocência do meu filho, mesmo ele estando morto. Aqui a gente só é lembrado na época de eleição, caso contrário, não tem nada.”
O mal que a morte de Thiago fez a família não é maior do que o desejo de lutar pela justiça, afirma Queli. “O Thiago morreu, mas eu fiquei e ele [PM Denis] não sabe o mal que ele me fez. Todos os dias da minha vida eu choro, lembro do meu filho, mas no final a cada dia cresce uma revolta de ver que no Brasil se você tiver dinheiro você é alguém, se não tiver ninguém luta por você, ninguém quer justiça por você. Vou lutar até o fim, falo para todo mundo, esse policial não vai me parar, só se ele me matar, porque enquanto eu tiver vida eu vou correr atrás”.
Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio realiza ação na zona leste
Com o objetivo de colaborar com a assistência jurídica dos moradores do Jardim Limoeiro, bairro onde Thiago vivia, localizado no extremo da zona leste de São Paulo, a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio promoveu um bate papo no local neste domingo (5/9).
De acordo com Marisa Feffermann, psicóloga e articuladora da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, a ideia é debater o acesso aos direitos. “Temos feito isso em várias quebradas, a proposta é justamente resgatar a perspectiva do direito, apesar da gente considerar que o direito é uma lógica burguesa, a gente tem ido em vários territórios e construído a possibilidade de pensar e tirar dúvidas principalmente na perspectiva do jurídico, INSS e também está ligado ao projeto ‘Fim das Trancas’ que é ligado aos egressos”.
A ação já aconteceu em comunidades da zona oeste e da zona leste de São Paulo. Além disso, em abril, a Rede organizou uma manifestação no Jardim Limoeiro para cobrar respostas da Justiça paulista.
Outro lado
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) sobre a continuidade do PM Denis nas atividades da corporação. Além disso, a reportagem perguntou se o policial seguiu corretamente o protocolo da pasta ao disparar no rosto de Thiago. Procurado, o Ministério Público de SP não respondeu quais documentações serão requeridas para a continuidade das investigações.
Procurado, o Tribunal de Justiça de SP ainda não respondeu aos questionamentos enviados.