‘Solta o inocente, seu juiz’, gritaram manifestantes ao bloquear rodovia Régis Bittencourt, na Grande SP. Um policial rodoviário provocou: ‘Tá preso, já era’
“A gente tem que fazer alguma coisa, não pode ficar parado”, dizia o marceneiro Miguel Terkeli, andando de um lado para outro na calçada diante de sua casa, no Jardim Panorama, periferia de Tabão da Serra, na Grande SP, distribuindo garrafinhas de água para os parentes, amigos e vizinhos que apareceram para ajudar. Vestia branco como a esposa, Vera Lúcia Campos Terkeli. Aos 56 anos, o casal evangélico se preparava para participar de algo que nunca tinham feito antes: um protesto de rua.
Com uma faixa que dizia “Dois irmãos presos sem provas” e cartazes de cartolina onde se lia “Soltem os inocentes”, o grupo reunido pelo casal se organizou para pedir a libertação dos filhos de Miguel e Vera, Victor Hugo, 19 anos, e Tiago Campos Terkeli, 32. Os dois irmãos foram presos em 12 de junho, acusados de participação em dois roubos ocorridos a 83 quilômetros dali, na noite de 1º de março, na cidade de Jundiaí.
“Vou te falar uma coisa. A gente que mora na periferia é onde eles judiam mais. Eu penso assim”, desabafou Miguel, enquanto esperava a chegada de mais amigos que tinham prometido aparecer. Ele contou que, semanas antes, havia visitado os filhos no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Jundiaí e ouvido, de um criminoso experiente que dividia a mesma cela com eles: “A gente não sabe porque prenderam seus filhos, eles não são do crime. É por isso que a gente tem nojo da justiça”.
E não é mesmo fácil entender os motivos da prisão dos irmãos Terkeli quando se olha para as provas contidas no processo que os levou para a prisão. Ele são acusados de fazer parte de um grupo de quatro homens mascarados que invadiu e roubou duas casas no bairro do Caxambu, em Jundiaí. Uma das vítimas é uma juíza. O delegado Carlos Eduardo Barbosa Soares, o promotor Jocimar Guimarães e a juíza Jane Rute Nalini Anderson aceitaram o reconhecimento dos irmãos feito pelas vítimas, embora ninguém tenha visto os seus rostos: os ladrões haviam usado toucas ninjas, roupas pretas e luvas durante todo o tempo nos assaltos. “Eu os reconheci pelos olhos”, justificaram as testemunhas.
Aos olhos da Polícia Civil, do Ministério Público Estadual e da Justiça, o reconhecimento feito “pelos olhos” valeu mais do que uma declaração oficial assinada pelo diretor da escola estadual Professora Neusa Demétrio, onde Victor estuda, afirmando que, na noite do crime, o jovem estava na aula.
“Até para a gente que faz pelo certo a vida é difícil, com essa justiça”, disse Miguel. Ao lado dela, Vera chorou por alguns minutos. “Não vejo a hora de ter meus filhos comigo de novo”, falou. Uma amiga da igreja, a dona de casa Alvina Santana, 64, a abraçou: “Você não vai atravessar esse Jordão sozinha, não. Deus vai salvar seus filhos. Confia”, aconselhou. E Vera, enxugando as lágrimas: “Amém. Eu creio e confio”.
Por volta de 10h, o grupo saiu da frente da casa de Miguel, reunindo cerca de 30 pessoas. Alguns reclamavam da quantidade: “Se fosse um churrasco, se fosse um fluxo, estava cheio. Quando é para ajudar alguém, vem pouca gente”. A cuidadora de crianças especiais Alessandra Aparecida Campos, 37, tia de Victor Hugo e Tiago, disse para ninguém desanimar por serem tão poucos.
“Pouco com Deus é muito. Vamos”, disse Alessandra. E o protesto saiu.
Deu para ver que os moradores do bairro não estavam acostumados a ver um protesto marchando por suas ruas. Apesar de pequeno, a manifestação incomodou muitos motoristas de carros. “Vocês estão loucos de fechar as ruas”, gritaram alguns. “Bolsonaro!”, disse outro. “Não é política, não, é pelos inocentes presos”, rebateu um dos manifestantes. Pelo menos um motorista foi para cima com o carro e ameaçou atropelar o protesto.
“Seu juiz, solta o inocente” e “justiça, justiça” eram algumas das palavras de ordem. Não demorou muito para dois policiais de motocicleta se aproximarem e perguntarem do que se tratava. Miguel se apressou a mostrar os avisos do protesto que tinha enviado para a prefeitura e a Polícia Militar. Os policiais não reclamaram.
Logo no começo do protesto, um tropeção ameaçou tirar de cena a participante mais velha da marcha, Joana Terkeli, 75 anos, mãe de Miguel e avó dos jovens presos. Uma topada em uma pedra arrancou boa parte da unha do dedão direito de Joana. “É melhor ir para um pronto-socorro”, disseram. “Não, vou ficar até o fim”, insistiu a avó. Entrou no carro de um dos participantes que acompanhava o protesto e ficou ali até o fim, ao longo de três horas, com o pé sangrando encostado do painel do automóvel.
Quando a manifestação chegou à rodovia Régis Bittencourt, na divisa com Embu das Artes, o clima pesou.
Depois que os manifestantes bloquearam uma das faixas da rodovia, no sentido capital, três policiais rodoviários federais se aproximaram. “Fechar rodovia é crime. Vamos prender vocês”, disseram. Miguel voltou a mostrar as autorizações, sem convencer os homens da lei. “Essas autorizações não valem para uma rodovia federal”, atacou um policial.
Quando os manifestantes buscaram explicar aos policiais que estavam na rodovia lutando por dois irmãos que haviam sido presos injustamente, um dos policiais provocou: “Tá preso, já era”. A provocação gerou uma série de reclamações exaltadas. Houve bate-boca, um dos policiais agarrou o braço de uma mulher e sacou uma arma de choque. A situação se acalmou um pouco depois, quando o grupo aceitou recuar e fazer o protesto no acostamento.
Da rodovia, o grupo voltou para Taboão da Serra e marchou de volta ao Jardim Panorama, encerrando a manifestação por volta das 13h30. As pessoas se abraçaram, desejaram a melhor sorte para os irmãos Terkeli e partiram.
Foi só com o protesto encerrado que a avó Terkeli aceitou que os parentes a levassem até um médico para cuidar de seu dedão machucado. “Eu tinha que acompanhar tudo”, justificou.
Dois policiais de moto pararam na frente da casa de Miguel e perguntaram: “Vocês vão tacar fogo em ônibus?”. Miguel respondeu que o protesto estava encerrado.
“Eles perguntaram isso porque, anos atrás, quando uma policial matou um menino inocente, a gente botou fogo em ônibus. Mas a gente não ia fazer isso hoje. Os dois meninos estão vivos”, contou uma moradora.
Enquanto os parentes se despediam dos manifestantes, uma moça se aproximou. Tinha sido uma das mais ativas do protesto, carregando cartazes e gritando sem parar. Na saída, ainda disse: “Quero ver esses meninos soltos para eu dar um cascudo neles” e saiu sorrindo.
Depois que ela saiu, Vera e Alessandra se olharam.
“Nunca vi essa pessoa. Não sei quem é”, disse Vera.
“Deve ser um anjo do Senhor”, respondeu Alessandra.
O que diz o Estado
A Secretaria de Segurança Pública do governo Márcio França (PSB), o Ministério Público de São Paulo e o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmam, por meio de suas assessorias de imprensa, que não comentariam o caso por estar em segredo de justiça.