Publicitário morto pela PM em Goiás foi executado, diz pai: ‘eu morri no dia em que ele morreu’

Eduardo Rodrigues Ferreira e outros três jovens foram mortos em maio de 2022 quando iam para uma festa; dois anos depois, inquérito ainda não foi concluído

Eduardo Rodrigues Ferreira foi morto aos 25 anos por policiais militares | Foto: Arquivo pessoal

Eduardo Rodrigues Ferreira, 25 anos, era o único filho de Ronimar Ferreira, 51. A dupla era muito próxima. Eram os dois publicitários, trabalhavam juntos e chegavam a compartilhar roupas. “Ele está fazendo muita falta para mim”, diz Ronimar. A morte completou dois anos em maio. Eduardo foi morto em uma abordagem de policiais militares do Comando de Operações de Divisas (COD), na zona rural de Rio Verde, em Goiás. Além dele, outros três jovens, um deles um adolescente, também foram mortos. Para Ronimar, que desde a morte se dedicou a apurar o caso por conta própria, o filho foi executado. 

A convicção é baseada em pelo menos dois fatos. O primeiro deles são imagens da câmera de segurança da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Rio Verde, para onde foram levados os corpos. Na versão dos policiais, as vítimas foram encaminhadas com vida, mas as imagens mostram o contrário. Não há socorro médico após a chegada e logo os corpos são encaminhados ao necrotério da unidade. 

Outro ponto é que o GPS do carro de Ronimar, que estava com o filho no momento da abordagem, mostrou uma movimentação do veículo mesmo após o horário da abordagem, por volta das 21h. O carro foi entregue à família cheio de marcas de tiro e com a frente batida. Para o pai, os PMs simulam uma cena de troca de tiros.

Desde a morte, Ronimar foi atrás de imagens de câmeras, de testemunhas e o que mais pudesse ajudar a esclarecer o crime. Ficou 35 dias sem dormir buscando provas. O pai diz que não tem medo de morrer. “Eu já morri. Para mim, eu morri no dia em que meu filho morreu. Eu morri há dois anos.” 

Mortos na estrada 

Eduardo estava acompanhado de Tiago de Medeiros Brandão, Aniceto Alves da Silva Neto e Alex Aparecido Gomes dos Santos. Segundo o pai, o grupo saiu do município de Mineiros em direção a Rio Verde, ambos em Goiás. O plano era ir para uma festa em uma chácara, mas eles foram abordados pelos policiais do COD na GO-210. 

No boletim de ocorrência, a versão policial – que não cita a versão de cada agente individualmente, mas sim como a narração feita pela equipe do COD – é de que o carro furou bloqueio na rodovia em alta velocidade. Uma perseguição foi iniciada, seguida por troca de tiros. O veículo teria entrado em uma estrada vicinal, onde os ocupantes desembarcaram e passaram a atirar. Três foram atingidos logo ao sair do carro e um fugiu pela mata, sendo baleado na sequência.

Mesmo feridos, na versão dos policiais, os jovens estariam com sinais vitais. Ao ligar para o 193, os policiais teriam sido orientados por um sargento identificado apenas como “Petrônio” a levar o grupo até a UPA de Rio Verde. A Ponte procurou o Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás para confirmar a versão, mas não houve retorno.

Foram apreendidas pelos policiais quatro armas, 10 munições calibre 38 deflagradas e seis de mesmo calibre intactas. Outras nove munições de calibre 765 foram recolhidas inteiras. No porta-malas do carro, segundo os PMs, estavam 11 tabletes de maconha.

Sete policiais constam no boletim de ocorrência como participantes da ação. Seis deles admitiram terem atirado. O documento traz apenas a identificação básica de cada um deles:

  • 3º sargento Peixoto (COD Recobrimento Sudoeste): atirou seis vezes com uma carabina
  • Cabo Ricardo (COD Recobrimento Sudoeste): atirou três vezes com uma carabina
  • Soldado Felipe (COD Recobrimento Sudoeste): atirou cinco vezes com um fuzil 
  • Soldado Camila (COD Recobrimento Sudoeste): atirou quatro vezes com uma carabina
  • 1º Sargento Régis (COD Bravo): não efetuou disparos
  • 2º Sargento Araújo (COD Bravo): atirou seis vezes com um fuzil
  • Soldado Chagas (COD Bravo): atirou três vezes com um fuzil

Mortos na UPA 

As mortes são investigadas pela 8ª Delegacia Regional de Rio Verde, em inquérito em sigilo conduzido pelo delegado Adelson Candeo. Em junho de 2022, menos de um mês após as mortes, um relatório de investigação desmentiu parte da versão narrada pelos policiais. 

Foram analisadas as imagens registradas pela câmera de segurança da sala vermelha da UPA da rua Augusta Barros, em Rio Verde. Há um relatório médico anexado ao inquérito e citado no relatório, onde o médico que atendeu o caso diz que os jovens chegaram ao local “com pulso, visão periférica” e depois morreram. 

O relatório diz que os policiais chegaram ao local por volta das 00h31min. A descrição diz que ele e outra funcionária se assustam com a movimentação “deixando evidente que não aguardavam a ocorrência chegar”.

Câmera de segurança da UPA de Rio Verde registrou chegada de corpos | Foto: Reprodução

É possível ver nas imagens o médico conversando com os policiais. A primeira vítima chega na sala e o médico e uma enfermeira checam sinais vitais (pupilas e pulso) e logo cobrem a cabeça da pessoa. Não é feito qualquer procedimento de emergência “evidenciando que o paciente está morto”. 

Isso acontece com os corpos dos dois jovens que chegam na sequência — aferem sinais vitais e não tomam atitudes, o que indica que as vítimas já estavam sem vida. Ao chegar o quarto homem, ele é colocado no chão. Para os investigadores, é mais um sinal de que não havia aviso e que chegariam vítimas até a unidade. Após ser colocado em uma maca, ele não recebe atendimento médico. 

As imagens mostram os policiais chamando o médico para fora da sala e depois ele volta escrevendo o que seria o relatório médico. Às 00h44min, o último policial deixou a UPA.

A conclusão dos investigadores é que as vítimas chegaram sem vida até a unidade e que não houve um anúncio prévio do envio delas até o local. Uma técnica em enfermagem que atuou na situação disse em depoimento que que não foram avisados sobre o deslocamento e que as vítimas chegaram sem vida. Disse ainda que um dos PMs demonstrou tristeza porque um dos jovens mortos era sobrinho dele.

Também prestaram depoimento uma enfermeira e o gerente de entradas da unidade. Ambos disseram que as vítimas chegaram sem vida e que auxiliaram a levá-las ao necrotério da unidade. A enfermeira contou que estranhou o pedido de um policial que pediu seu nome para colocar na ocorrência. Ela contou que foi a primeira vez que isso ocorreu.

Ronimar, pai de Eduardo, conta que levou o caso ao Conselho Regional de Medicina de Goiás (Cremego). Para ele, era fundamental que o relatório médico dissesse a verdade, que o filho chegou morto à UPA. À TV Anhanguera, afiliada local da TV Globo, em entrevista concedida em março deste ano, o delegado Adelson Candeo disse que o médico alegou ter sido coagido.

A Ponte procurou o médico e o Cremego. Na mesma reportagem onde o delegado falou à TV Anhanguera, a defesa do médico informou que um processo no Conselho sobre o caso foi arquivado. A informação foi confirma pelo Cremego à Ponte.

Carro em movimento

O carro onde os jovens estavam possuía sistema de GPS.  Nele é mostrado que o veículo foi ligado após o horário da abordagem, por volta das 21h. Às 22h, quando os jovens já estariam com os policiais, é registrado que o carro está andando. 

Em entrevista à TV Anhanguera, o delegado mostrou imagens do veículo em movimento perto de Rio Verde, uma hora após a abordagem policial. O carro faz o trajeto de volta para a rodovia GO-210. Para o delegado, o automóvel era dirigido por um dos militares.

“Se eles já haviam sido abordados e se os militares realmente estavam conduzindo esse veículo, esses quatro envolvidos estavam em poder da viatura”, afirmou o delegado na entrevista. 

Para o pai de Eduardo, neste período, os jovens foram torturados pelos policiais. Segundo ele, os corpos dos jovens estavam machucados.

Medo da polícia

Mais cedo naquele 21 de maio, Eduardo ligou para o pai. O publicitário disse ter sido abordado por agentes do COD e que os policiais clonaram o celular dele.

A mesma história foi contada por Eduardo ao amigo Antônio José da Conceição, 30 anos. Era por volta das 17h quando Antônio recebeu a ligação. Eduardo disse que foi abordado enquanto seguia da cidade de Mineiros para Rio Verde.

Os policiais teriam pedido a senha do telefone de Eduardo e mexido no aparelho por meia hora. O jovem também contou ter apanhado durante a abordagem. Depois do enquadro, ele queria trocar de celular. “Eu tenho certeza de que eles clonaram meu telefone”, teria dito Eduardo ao amigo. 

Eduardo e Antônio se conheciam da igreja, cerca de dois anos antes. Aos fins de semana, quando Antonio tinha folga, costumavam se encontrar em um clube da cidade. Jogavam bola, sinuca, tomavam banho de piscina. 

Ele conta que Eduardo tinha medo da polícia. “Sabe como é a polícia, né? Sempre que eles abordam, querem puxar a ficha da gente e sempre somos os culpados”, teria dito Eduardo ao amigo. 

Aos 18 anos, Eduardo foi preso por tráfico de drogas e passou dois anos em uma unidade prisional. Por medo, o filho nunca viaja sozinho ou pegava estrada sem que o pai ou a ex-esposa estivessem juntos. 

Trinta dias antes da morte, narra Ronimar, policiais do COD pararam pai e filho na estrada para Anápolis. Eles queriam incriminar a dupla pelos crimes de contrabando e sequestro, conta o pai. Foram liberados porque um comandante, segundo Ronimar, não deixou que os supostos crimes fossem imputados. “Aqui em Goiás é assim”, lamenta. “Eles plantam, eles tiram os pertences. São bandidos mesmo”, completa.

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O pai acusa os policiais de terem atribuído aos jovens as pistolas, que segundo ele estavam enferrujadas. O objetivo era corroborar a versão de que houve troca de tiros. 

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Polícia Militar de Goiás, a Secretaria da Segurança Pública do Estado de Goiás, o Corpo de Bombeiros do Estado de Goiás, o Conselho Regional de Medicina de Goiás e o médico da UPA. Não houve retorno. 

Em nota, o Cremego informou que a conduta do médico foi apurada e julgada improcedente, “não caracterizando infração à ética médica”.

Também foi solicitada entrevista ao delegado Adelson Candeo. Sem responder diretamente à solicitação, ele informou apenas que o inquérito deve ser concluído nos próximos dias. 

*Matéria atualizada às 9h50min do dia 5 de junho de 2024 para incluir a nota do Cremego.

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