Para Vera Malaguti, a militarização da segurança pública pela intervenção federal só vai aumentar os problemas do Rio e perpetuar o medo
Passados 15 dias do anúncio da intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, decretada pelo presidente Michel Temer (PMDB), algumas questões continuam em aberto. O interventor federal, general Walter Souza Braga Netto, na última terça-feira (27/2) apresentou o plano para a segurança, mas não conseguiu informar quais serão os custos da intervenção, os gastos com operações e os investimentos para incremento da força policial. Braga Netto informou, na ocasião, que nada muda com relação ao tipo de atuação do exército nas ruas que já vem acontecendo nas operações tipo GLOs (Garantia da Lei e da Ordem) no Rio de Janeiro, desde 1992.
Em entrevista à Ponte, a socióloga, especialista em segurança pública e professora de criminologia na UERJ, Vera Malaguti, afirma que ações como essa somadas ao senso comum formado pelo discurso midiático do medo acabam resultando na criação e perpetuação de preconceitos e, de novo, quem mais será afetada é a população negra e pobre. “Eu me recordo que na minha tese de doutorado, os discursos que eu colhia nos jornais do Rio de Janeiro escravocrata do século XIX e nos de hoje eram muito parecidos; todos eles olhavam os pobres, os escravos, de uma forma geral, por uma ótica de perigo, sem questionar a ordem vigente”, afirmou.
Malaguti ponderou que nem mesmo os militares têm em consenso se querem exercer papel de polícia, inclusive com generais no comando executivo da pasta da segurança do estado. “Há muitos anos, existe uma discussão qualificada dentro do exército, marinha e aeronáutica sobre, se isso é função deles [ter papel de polícia] ou não. A impressão que passa é que o exército não quer fazer isso, não quer ter esse papel. Tenho visto declarações muito mais cuidadosas por parte dos militares do que do Ministro da Segurança Pública [ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann]”, criticou.
Confira a entrevista completa:
Ponte: Como a senhora acredita que a guerra às drogas influenciou a chegada de um cenário como o que estamos vivendo na segurança pública?
Vera Malaguti: Há cerca de uns 15 anos, escrevi um artigo de título “Nada de Novo no Front”. Todo o mundo mudou sua política de combate às drogas. A América Latina, inclusive: Chile, Peru, Uruguai, Argentina, Bolívia. Só nós que continuamos com uma estratégia fracassada, fazendo com que sejamos os mais atrasados. Ainda com uma discussão totalmente desqualificada alimentada por uma mídia, que é comprometida com o mercado da segurança pública, e vai conduzindo a gente a essa burrice, esse pântano no qual parece que vamos dar mais um passo no lamaçal que nos impede de progredir.
Um dos seus livros mais conhecidos versa sobre como o “medo” é utilizado como arma para repressão. Como você vê esse sentimento sendo utilizado nos bastidores dessa nova intervenção federal?
O capitalismo contemporâneo se dá de uma forma, no qual, o capital mais forte que tem no mundo é o capital dos bancos ou das corporações de comunicação e etc. E, nesse capitalismo da atualidade, pós-industrial, a segurança é um mercado fortíssimo. E, para o mercado da segurança, o medo é fundamental. Eu me recordo que na minha tese de doutorado, os discursos que eu colhia nos jornais do Rio de Janeiro escravocrata do século XIX e nos de hoje eram muito parecidos; todos eles olhavam os pobres, os escravos, de uma forma geral, por uma ótica de perigo sem questionar a ordem vigente: será que a escravidão é algo legítimo? Então, quem lutava contra esse status quo era criminalizado, preso, exterminado. Quando se nota os periódicos do século XX, é algo muito semelhante. Por que eu estou dizendo isso? O Rio de Janeiro vive uma crise sem precedentes – até por eu ser professora da UERJ, acompanho de perto – o Estado está falido, as pessoas não têm atenção médica, não têm transporte, entre outras várias coisas. Apostar milhões na segurança, que é direcionada para as favelas, acredito que qualquer pessoa vai se sentir “ameaçada”, digamos assim. E o senso comum e a mídia convergem para criar as figuras “do mal”, como o menino do arrastão, por exemplo, quando, na verdade, o que está nos produzindo insegurança é algo muito maior e muito mais denso. A escalada da militarização só vai aumentar os nossos problemas. A sociedade brasileira cria umas maneiras de trabalhar sem ir ao âmago da questão: se tudo que foi investido em segurança tivesse sido realocado para educação, saúde e lazer, o cenário seria outro.
Recentemente, o judiciário afirmou publicamente que contribuirá com a intervenção federal na segurança. Como você vê esse posicionamento?
Não me surpreende em nada, visto que o judiciário brasileiro, em sua imensa maioria, é completamente insensível às questões fundamentais do povo brasileiro, tirando honrosas e maravilhosas exceções. Em síntese, eles são cúmplices de tudo que vem acontecendo em matéria criminal, esse absurdo, essa “dutertização” do Brasil [em referência a Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas, que prega uma guerra contra as drogas, chegando até a execuções de quem é preso com entorpecentes]. Juiz que se diz guardião da segurança, virou polícia. Fez o concurso errado. Se ele é juiz, é, na verdade, guardião da Constituição.
A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro tem aproximadamente 22 mil homens. Com a intervenção, ainda não ficou claro qual será exatamente o papel das polícias. O que esperar?
Acho que estamos todos – inclusive eles – analisando ainda a situação. Isso tudo é um grande imbróglio e há a expectativa de ver como isso tudo vai funcionar na prática, de como vai ser o operacional. É aguardar para notar se isso vai virar um grande ato de ‘espetacularização’, com o intuito de aumentar a popularidade desse governo federal ilegítimo ou se, como já foi possível ver, vai ser mais uma ação baseada em militares revistando bolsas, mochilas de moradores de comunidade, inspecionando presídio. Fazendo papel de polícia, em suma. Qualquer um dos dois cenários, é catastrófico.
Alguns dias depois do anúncio, o General Villas-Boas disse que a intervenção tem que ser vista de uma forma muito clara para que daqui 30 anos não haja uma nova comissão da verdade. O que é possível entender com esse tipo de declaração?
Há o receio que as forças armadas estejam sendo usadas por grupos privados ou grupos políticos ligados a esses grupos privados para essas funções e o custo institucional e histórico depois é muito alto. A impressão que passa é que o exército não quer fazer isso, não quer ter esse papel. Há muitos anos, existe uma discussão qualificada dentro do exército, marinha e aeronáutica sobre, se isso é função deles ou não. Em 1992, não houve uma intervenção das forças armadas. Era uma operação conjunta porque estava acontecendo a Rio-92 e, como era o encontro de chefes de estado, aquilo era uma coisa completamente constitucional. E mesmo com os índices de violência não caindo as pessoas se sentiam mais seguras, porque tinha um “canhão” apontado para a Rocinha. O Haiti por sua vez foi um ensaio dos que acham que isso é grande mercado, mas também tem muita gente que acha que isso é um caminho sem volta, porque quando você politiza o exército, você sujeita os militares aos riscos cotidianos que os policiais têm. E é justamente isso que acontece em todo país do mundo em que se propõe um combate às drogas. Mas vale lembrar que o comandante das forças armadas é o Presidente da República. Existem divisões dentro do exército e não sei qual seria a majoritária hoje. Tenho visto declarações bem cuidadosas; muito mais cuidadosas por parte dos militares do que do Ministro da Segurança Pública [ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann], inclusive, que chegou a dizer que ia pedir mandado de busca e apreensão coletiva, o que seria um escândalo em qualquer lugar do mundo.