Quatro PMs são condenados a 275 anos de prisão por Chacina do Curió, no Ceará

Após cinco dias, tribunal do júri decidiu condenar os policiais pelo massacre, que deixou 11 mortos em 2015. “É uma vitória da nossa periferia”, afirma mãe de vítima. Ao todo, 34 policiais devem ser levados a júri pelo mesmo crime

Júri popular durou cinco dias e foi acompanhado por familiares das 11 vítimas | Foto: Calvin Penna, TJ-CE

Após cinco dias de julgamento, a 1ª Vara do Júri do Tribunal de Justiça do Ceará condenou na madrugada deste domingo (25/6) quatro policiais militares acusados de participação na Chacina do Curió (ou da Messejana), em Fortaleza, que deixou 11 mortos em 12 de novembro de 2015. O julgamento era acompanhado com a expectativa por organizações de direitos humanos nacionais e internacionais por representar um marco no combate à violência policial no Brasil. 

Por volta ds 1h35, os réus Antônio José de Abreu Vidal Filho, Marcus Vinícius Sousa da Costa, Wellington Veras Chagas e Ideraldo Amâncio foram considerados culpados pelo cometimento de 11 homicídios qualificados consumados, três homicídios qualificados na forma tentada, três crimes de tortura física e um de tortura mental.

O colegiado de juízes fixou a pena de Wellington Veras Chagas em 275 anos e 11 meses de prisão, com início imediato. A medida se deve porque a pena ultrapassa 15 anos de prisão. Os outros PMs, Marcus Vinícius Sousa da Costa, Ideraldo Amâncio e Antônio José de Abreu Vidal Filho, também tiveram penas fixadas em 275 anos e 11 meses de prisão, em regime inicialmente fechado. As defesas dos réus manifestaram interesse em apelar da decisão.

“É uma alegria porque a gente não quer o mal da polícia, a gente quer apenas a condenação de quem praticou o crime bárbaro com 11 pessoas [mortas] e deixou sete feridas. Então isso é justiça, a justiça bramou dentro do estado do Ceará pela primeira vez”, saudou Edna Carla Souza Cavalcante, 50 anos, mãe de Álef Cavalcante, morto aos 17, e integrante do movimento Mães do Curió, após a sentença ser anunciada. “Todos os sonhos deles foram enterrados e os nossos sonhos também foram enterrados.”

“Essa vitória é da nossa periferia, é do nosso povo periférico, é dos nossos jovens, é libertar os jovens das mortes. Nosso povo periférico precisava dessa resposta”, saudou Edna.

Mais de 60 horas de julgamento

Desde terça-feira (20/6), do lado de fora do Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza, dezenas de pessoas acompanharam o julgamento, entre mães dos mortos e integrantes de movimentos sociais. Logo no início da manhã os presentes realizaram uma vigília em frente ao local, deram as mãos e prestaram uma homenagem aos mortos citando o nome de cada um deles. 

No banco dos réus do 1º Salão do Júri no Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza, estavam os policiais Antônio José de Abreu Vidal Filho, Marcus Vinícius Sousa da Costa, Ideraldo Amâncio e Wellington Veras Chagas. Ao todo, 34 policiais devem ser levados a júri popular até setembro acusados de participação na chacina. Outros 11 serão passarão por Auditoria Militar (como são chamadas as varas que atuam em processos de crimes militares). 

Segundo o Ministério Público do Ceará (MPCE), os crimes teriam ocorrido por vingança pelo assassinato do soldado Valtemberg Chaves Serpa, morto em um roubo ao intervir em uma tentativa de assalto contra a esposa, em Lagoa Redonda, horas antes da chacina.

O primeiro dia de julgamento foi marcado pela leitura da denúncia do Ministério Público e pelo depoimento de três sobreviventes da chacina. 

Uma delas contou durante o julgamento que assassinos chegaram em carros com os vidros semiabertos e que usavam gorros balaclava nos rostos. Ela relatou que foi colocada de joelhos e atingida por 12 tiros. Passou um mês e meio internado e até hoje sofre com traumas físicos e psicológicos. 

Questionado pelo juiz, a testemunha disse que ouviu os matadores dizerem que eram policiais. “Mão na parede, é a polícia, fica de joelho”, teriam dito. 

Na quarta-feira, prestaram depoimento as testemunhas de defesa dos PMs. Das sete ouvidas, três eram policiais militares e uma era esposa de outro militar, próximo de um dos réus. Foi somente na quinta-feira que os quatro reus falaram. 

O primeiro a depor foi Antônio José de Abreu, por meio de videoconferência, já que ele mora nos Estados Unidos desde 2019, quando deixou a PM. Ele negou participação no crime, mas confirmou que esteve perto de local conhecido como “Praça do Crack”, próximo ao local da chacina, mesmo estando de folga naquele dia. Abreu contou ter ficado cerca de 20 minutos ali e que foi embora ao perceber que a ação não era algo “institucional”. O então policial dirigia um carro com placa adulterada e, em um primeiro depoimento, negou que teria estado no Curió.

Marcus Vinícius Sousa da Costa disse estar jogando futebol no momento em que recebeu um chamado para prestar solidariedade pela morte de um PM. Costa, então, teria ido para o local da chacina desarmado e visto policiais armados com os rostos cobertos. Ele negou ter visto pessoas feridas ou mortas. 

Já Wellington Veras Chagas contou uma versão parecida, dizendo ter ido à Praça do Crack após ser informado sobre a morte do colega. O PM contou que não saiu do carro e viu de 10 a 15 pessoas no local, entre elas um oficial. Ele relatou que foi até a Delegacia de Assuntos Internos (DAI) para prestar esclarecimentos e que se surpreendeu a ser considerado suspeito. 

Último a depor, Ideraldo Amâncio afirmou que estava em casa no dia da chacina, aproveitando a folga. Uma foto do carro dele foi tirada enquanto o veículo estava dentro da Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública (CGD) e teria sido usada como prova contra ele, mas a defesa argumentou que a imagem era ilegal. 

“Pra gente foi muito devastador reviver aquelas imagens. Até agora nós não nos recuperamos”, disse Edna Carla, se referindo aos vídeos exibidos pelo Ministério Público durante a sessão de sexta-feira (23), que retratavam os momentos de socorro às vítimas, entre elas o seu filho

Também na sexta, após a fala dos defensores dos PMs, teve início a leitura dos quesitos —  que são perguntas que o colegiado de juízes faz aos jurados sobre os fatos que estão sendo julgados. A sessão foi suspensa às 20h17min, após a defesa solicitar a impugnação de quesitos.

Familiares e amigos de vítimas da chacina do Curió protestaram durante o julgamento neste sábado. | Foto: CEDECA Ceará/Divulgação.

A sessão deste sábado começou por volta das 10h30 da manhã com a análise de pedidos de impugnações de quesitos, por parte da acusação e da defesa. Os quesitos são perguntas relacionadas ao cometimento do crime, que devem ser respondidas com “sim” ou “não”. Os juízes decidiram deferir o pedido de inclusão de quesito do Ministério Público e indeferir os sete de impugnação da defesa. Entre os pedidos da defesa, estava retirar o termo “concorreu para o crime” e utilizar o verbo “participou”.

Por outro lado, os magistrados autorizaram o pedido da acusação de incluir um quesito, para decidirem se uma testemunha de defesa prestou falso testemunho ao narrar uma história diferente do que disse em audiência na Vara. Essa testemunha, teria dito que não viu o PM Ideraldo Amâncio em casa no dia dos crimes. Mas, posteriormente no julgamento, disse que viu. Ao todo, o júri respondeu a 365 perguntas sobre os quatro réus, que foram acusados de 18 crimes. Na sequência a votação foi iniciada e posteriormente os réus foram julgados.

‘Certeza de impunidade’

Para o deputado estadual Renato Roseno (PSOL-CE), os policiais que atuaram na chacina tinham “certeza da impunidade”. “Você tem aí utilização de viaturas, policiais em serviço, fardados, que se deslocam para o território. A mobilização entre eles foi feita pela radiofrequência, então não houve sequer o cuidado de cobrir as provas”, afirma o parlamentar. 

Roseno afirma que ainda falta o Estado reconhecer sua culpa pela chacina. “Isso é um absurdo, na minha avaliação é um desrespeito a essas vítimas o fato de até hoje o Estado do Ceará não ter feito essa reparação simbólica”, pontua. 

No primeiro dia de júri, o governador de Ceará, Elmano de Freitas (PT-CE) publicou uma nota nas redes sociais prestando solidariedade às vítimas sem mencionar ou reconhecer culpa pelas mortes. O texto também aparece nas contas oficiais do governo. 

“O Governador do Estado do Ceará manifesta sua absoluta solidariedade com os familiares e amigos das vítimas dos homicídios ocorridos no dia 12 de novembro de 2015, quando 11 pessoas dos bairros do Curió, São Miguel, Lagoa Redonda e Messejana foram brutalmente assassinadas. Afinal, foi uma tragédia para toda a sociedade”, diz o texto. 

Chacina do Curió

Ocorrida entre a noite do dia 11 e madrugada de 12 de novembro de 2015, na Grande Messejana, região periférica de Fortaleza, a chacina do Curió vitimou onze pessoas. O motivo, segundo o Ministério Público do Ceará (MP-CE) foi a vingança pelo assassinato do soldado Valtemberg Chaves Serpa, morto em um roubo. Ao todo 45 PMs foram denunciados pelo MP cearense, fazendo com que essa se tornasse a maior chacina do estado em quantidade de agentes públicos envolvidos. 

Os ataques ocorreram no intervalo de menos de 6 horas nos bairros do Curió, Alagadiço Novo, São Miguel e Messejana, com práticas de tortura tirando a vida de Álef Sousa Cavalcante, 17 anos; Antônio Alisson Inácio Cardoso, 17 anos; Francisco Enildo Pereira Chagas, 41 anos; Jandson Alexandre de Sousa, 19 anos; Jardel Lima dos Santos, 17 anos; Marcelo da Silva Mendes, 17 anos; Marcelo da Silva Pereira, 17 anos; Patrício João Pinho Leite, 17 anos; Pedro Alcântara Barroso, 18 anos; Renayson Girão da Silva, 17 anos; e Valmir Ferreira da Conceição, 37 anos.

Dos 45 militares denunciados pelo MPCE pela participação nos assassinatos, 34 PMs são réus atualmente. O processo foi desmembrado em três ações penais, duas com 18 réus cada e a terceira, com oito. Agora 20 dos 34 acusados serão julgados pelo Tribunal do Júri, os outros responderão na Auditoria Militar. Essa primeira ação penal que conta com 18 réus, continuará em agosto e setembro.

Em entrevista à Ponte, a defensora pública geral do Ceará Elizabeth Chagas, que atuou como assistente da acusação, ao lado do MPCE avalia que o resultado alcançado no Tribunal do Júri é uma resposta parcial às mães. “Elas não recuperarão mais a vida dos filhos. Mas denota um recado público de que o Ceará não tolera a vingança como política de segurança pública, sendo um estado que respeita as leis e o ordenamento jurídico e que cumpre os ditames do Estado Democrático de Direito.”

Apoiadores acenderam velas no aguardo do veredicto | Foto: CEDECA Ceará/Divulgação.

De acordo com ela, “os familiares fazem jus ainda a uma reparação estatal de forma ampla e que responda à gravidade da violação do direito à vida das onze vítimas e o trauma aos sete sobreviventes e seus entes queridos.”

Nesse sentido, ela pontuou que ainda não existe uma reparação formal às famílias por parte do Estado. “Em 2019, a Defensoria entrou com uma Ação Civil Pública para essas reparações, mas a ação segue em tramitação, tendo garantido em decisão liminar apenas a assistência psicológica dos familiares e vítimas. A Defensoria seguirá acompanhando e assistindo as mães e familiares do Curió até a devida reparação”, esclareceu.

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