Deputados estaduais e federais que se elegeram neste ano convocaram ou defenderam protestos por intervenção militar após Bolsonaro perder eleição; juristas explicam possíveis crimes que estariam cometendo
O deputado estadual reeleito Sargento Rodrigues (PL-MG) publicou um vídeo no story do Instagram (postagem que tem duração de 24h), nesta quarta-feira (2/11), incentivando a população a ocupar as ruas para que as Forças Armadas tomem o poder, ou seja, deem um golpe.
“Passando aqui para deixar uma singela contribuição para reflexão de todos os patriotas. Hoje, 2 de novembro de 2022, assistimos a belíssimas manifestações e exemplo de cidadania por todo o Brasil”, disse. “Mas, se queremos de fato alcançar nosso resultado de forma efetiva, de forma prática, nós devemos ter como exemplo o que aconteceu no Egito em fevereiro de 2011, onde 20 milhões de egípcios ocuparam a praça em frente à sede do governo e só saíram de lá depois de o ditador Hosni Mubarak foi destituído e o poder entregue às Forças Armadas. Se queremos, de fato, o reestabelecimento da ordem constitucional, o respeito à democracia e à nossa bandeira, devemos canalizar as nossas energias para um único local: a Praça dos Três Poderes”.
Rodrigues se refere à renúncia do ditador Hosni Mubarak, que governou o Egito por 30 anos, após pressão popular. A comparação, contudo, não faz sentido, já que tanto o candidato que o parlamentar defendeu, o presidente Jair Bolsonaro (PL), e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), disputaram eleições num regime democrático no Brasil. Além disso, ele esquece de mencionar que no Egito, dois anos depois, as Forças Armadas praticaram um golpe contra o então presidente democraticamente eleito Mohammed Morsi, em 2013.
Na cidade de São Paulo, a presidente interina da Câmara Municipal, vereadora Rute Costa (PSDB), também postou em seu Instagram uma mensagem explicitamente golpista, mostra o jornal Folha de S.Paulo. “Se ele já foi descondenado, ele também pode ser deseleito”, escreveu em referência ao presidente eleito Lula, que teve as condenações da Operação Lava Jato anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após terem sido constatadas a incompetência da Justiça Federal de Curitiba (PR) para julgar o caso e a parcialidade do então juiz, hoje senador eleito, Sergio Moro (União Brasil), em abril de 2021. Com isso, Lula não teve um julgamento técnico e com amplo direito de defesa e, por isso, não é considerado culpado, já que a Constituição Federal prevê a presunção de inocência até que a pessoa seja condenada e não seja possível mais recorrer. Sem dever à Justiça, ele retomou seus direitos políticos e pode voltar a concorrer a um cargo eletivo.
De acordo com o jornal O Globo, o apoio da deputada federal reeleita Carla Zambelli (PL-SP) aos bloqueios feitos por caminhoneiros em rodovias fez o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinar a suspensão de todas as suas redes sociais por considerar que as postagens são “ilegais” e “de natureza grave” com “grande potencial” para tumultuar as eleições em andamento – um processo que termina “somente com o ato da diplomação”, em dezembro, – e que “atingem a integridade e a normalidade do processo eleitoral, incentivando, com base em falsas acusações de fraude, a recusa dos resultados e intervenção militar”.
Denise Dora, diretora da ONG Artigo 19, explica que manifestação e liberdade de expressão são direitos humanos, mas não absolutos. “Você pode fazer atos de solidariedade porque o seu candidato não ganhou, mas não pode organizar um movimento coletivo de ataque ao sistema eleitoral”, sinaliza. “No Brasil, temos tanto o direito ao protesto quanto a norma que delimita até onde esse direito pode se estender se faz um ataque às instituições”, aponta, ao citar a nova Lei de Segurança Nacional, aprovada em 2021.
Nas eleições de 2018, por exemplo, movimentos de esquerda protestaram dois dias depois de Jair Bolsonaro ter sido eleito presidente. No entanto, destacaram que se tratava de um posicionamento de “resistência” e não de negar o resultado das urnas. “As eleições acabaram no domingo, mas as fake news continuam. Nós lançamos esse ato de resistência democrática e eles se apressaram em dizer que a gente não reconhecia o resultado das eleições, que nós éramos maus perdedores”, declarou o deputado federal eleito e presidenciável na época Guilherme Boulos (PSOL-SP). “Nós reconhecemos, sim, o resultado das eleições. Nós não somos o Aécio Neves em 2014”.
Hugo Albuquerque, advogado e mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Uninversidade Católica de São Paulo (PUC-SP), concorda com Dora e exemplifica que os manifestantes, incluindo parlamentares, violam o artigo 286 do Código Penal, que revisou a Lei de Segurança Nacional em 2021, sobre criar “animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade”.
“Golpe de estado é crime, não é um processo revolucionário, não é um levante popular, é dizer ‘Exército, intervenha ali’. Você está pedindo que um órgão de Estado se use do seu poder de Estado para interferir no curso normal do que é definido pela Constituição”, explica.
Raquel Scalcon, advogada criminalista e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), também soma o enquadramento, no caso dos bloqueios de rodovias, do artigo 359-L, que prevê “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”, também incluído pela nova Lei de Segurança Nacional. A Agência Pública fez denúncias de coações a passageiros para serem liberados. “Não se trata de um movimento legítimo, mas que busca reverter o resultado legítimo de um processo eleitoral”, afirma.
O jurista aponta que a imunidade parlamentar não acoberta cometimento de crime e não pode ser usada para atentar contra a ordem constitucional. “Em que sentido que o candidato dele foi prejudicado? Ele mostrou alguma evidência? Ele, como parlamentar, demonstrar irresignação é direito dele, mas pedir para que pessoas entreguem o poder às Forças Armadas porque o candidato dele perdeu é golpe de Estado”, pontua.
“Imunidade parlamentar não é impunidade parlamentar, ela diz respeito mais a um aspecto processual [por quem um deputado pode ser julgado e não sofrer perseguição pela atuação política] do que material, e isso não quer dizer que o Ministério Público não possa agir contra um parlamentar que está tentando violar a ordem”, enfatiza.
Denise Dora também indica que parlamentares podem “responder processos para discutir a legitimidade de seus mandatos, sofrer sanções, podem se tornar inelegíveis”, a depender do tipo de engajamento de autoridades engajadas nesses atos quando já ocupam um cargo público, mas se preocupa com uma Procuradoria-Geral da República omissa, já que Augusto Aras declarou que os bloqueios de rodovias eram “indesejáveis, mas compreensíveis”.
“Isso pode até explicar a postura da família Bolsonaro que não está diretamente incentivando as manifestações, o próprio Bolsonaro manda esses recados dúbios para não se ver ele próprio enfrentando uma ação que pode torná-lo inelegível por até oito anos pelo menos”, pondera.
Outro ponto é de que existe um consenso de juristas de que o artigo 142 da Constituição Federal, que define que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, não autoriza uma intervenção militar para “restaurar a ordem” nem interferir no Executivo ou no Legislativo pelo princípio de separação dos poderes previsto na Constituição, apesar de os grupos bolsonaristas insistirem em invocá-lo para os protestos.
Para o professor de Direito Constitucional, Teoria do Direito na FGV e especialista em STF Rubens Glezer, essa interpretação “estapafúrdia” do artigo é uma maneira de buscar respaldo para os atos. “É uma tentativa de fingir constitucionalidade, de poder fingir que estão pedindo uma ditadura como democratas”, analisa.
“É uma forma de angariar essa contradição do discurso que é realizado por esse grupo, como se fossem defensores da Constituição. Uma contradição também presente no discurso do presidente [Bolsonaro], que usa um bordão de que ele é o agente que age dentro das quatro linhas da Constituição, mas ele tomou ao longo do seu governo uma série de medidas para implodir o projeto constitucional e usou do seu poder por meio decretos sobre orçamento público e nomeação de cargos administrativos para inviabilizar, por exemplo, normas constitucionais que demandavam proteção ao meio ambiente.”
Para a professora Raquel Scalcon, o uso pode estar atrelado à falta de compreensão ou má-fé. “Aqui a desinformação/fake news está desempenhando um papel relevante, infelizmente. E as próprias Forças Armadas também não deslegitimam esse discurso, não se manifestam contra isso, o que torna a situação mais delicada”, pondera.
Há parlamentares que fizeram postagens contestando a cobertura da imprensa. O deputado federal eleito Capitão Alden (PL-BA) questionou o uso do termo “antidemocráticos” sobre os protestos e bloqueios em rodovias em uma chamada da BandNews.
“Atos “ANTIdemocráticos”!? Um monte de velhinhos(as), adultos segurando bandeiras do Brasil e crianças cantando o hino nacional brasileiro. Se isso é antidemocrático o que a esquerda sempre faz ao destruir patrimônio público e privado, pichar muros e tocar fogo e em carros é o que? Terrorismo? Claro que não! Democracia que eles defendem é outro nível!”, escreveu.
Outro que seguiu essa mesma linha foi o deputado federal eleito Paulo Bilynskyj (PL-SP) ao postar uma foto com uma chamada do jornal Folha de S.Paulo que diz Após três dias de bloqueios golpistas, Bolsonaro pede desobstrução de rodovias. “Essa é a nova narrativa suja criada pela mídia, que as manifestações espontâneas e democráticas são bloqueios golpistas”, escreveu.
E há quem participou ativamente dos atos, como o deputado federal eleito Coronel Ulysses (PL-AC), em frente ao Comando de Fronteira Acre, onde funciona o 4º Batalhão de Infantaria de Selva (BIS). “Parabéns aos acreanos que estão em frente ao 4º BIS. São famílias que dão um exemplo de fé e coragem, exercendo o direito de liberdade e expressão de forma ordeira, pacífica e patriótica.
Deus, Pátria, Família e Liberdade”, escreveu.
O deputado estadual de Santa Catarina Sargento Lima (PL) também fez uma live no protesto em frente ao 62º Batalhão de Infantaria de Joinville. “A população simplesmente não aceita o resultado das eleições. Um candidato sem popularidade vencer as eleições? Esse é o motivo da revolta”, diz, próximo a um cartaz branco com letras vermelhas pedindo “intervenção federal”. O parlamentar afirma que está transmitindo o protesto “antes que derrubem a página” e em contraponto à imprensa. “É uma manifestação pacífica, com crianças, mulheres, todo o povo brasileiro nas ruas totalmente inconformado com o resultado das eleições”, prossegue.
Scalcon esclarece que não são os métodos que definem um protesto ser democrático, mas o motivo de estar sendo realizado. “É uma linha muito tênue, sem dúvida. Contudo, a sua finalidade não é constitucional, porque se busca questionar o resultado de uma eleição absolutamente legítima. O problema não são apenas os métodos em si, mas a finalidade dos bloqueios. Essa finalidade não está amparada pela ordem constitucional. Pelo contrário”, afirma.
Hugo Albuquerque concorda. “O candidato [Bolsonaro], de certa forma, admitiu a derrota. O ministro da Casa Civil deu início ao processo de transição na forma da lei. Essas pessoas estão irresignadas pelo o quê? Levar as pessoas para um quartel para se manifestar pelo o quê se não apresentaram nenhum tipo de evidência de fraude na votação ou se o candidato foi prejudicado?”, diz.
Denise Dora, da Artigo 19, ainda lembra que é preciso fazer um olhar para casos fora do Brasil, como a derrubada do presidente eleito da Bolívia, Evo Morales, em 2019, em que a deputada Jeanine Añez se autoproclamou presidente (e que acabou presa e condenada em 2022 por participação no golpe de Estado). Añez já era citada por Bolsonaro há seis meses por receio de ter um destino igual ao dela.
Outro exemplo foi a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em janeiro de 2021, que deixou cinco mortos e mais de 180 policiais feridos por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, derrotado no pleito presidencial, que alegava fraude sem provas.
“Além de a gente ver como a lei nacional é, é muito importante olhar para fora e ver essas experiências desastrosas de tentativa de desestabilização do ambiente democrático em períodos pós-eleitorais que são organizados e capitaneados por grupos de extrema-direita, muitas vezes profissionais nisso, que acabam levando um conjunto de pessoas nem iriam se juntar a esse tipo de manifestação”, afirma.
O que dizem as casas legislativas
A Ponte procurou a Câmara dos Deputados e as assembleias legislativas de Minas Gerais e Santa Catarina a respeito da postura dos parlamentares eleitos e aguarda resposta.