Governo de SP, Secretaria de Segurança Pública, MP, Justiça e TV Band: a Ponte questionou os envolvidos na prisão sem provas da dançarina
“Vocês estão satisfeitos com o que fizeram?”. Essa é a pergunta que Bárbara Querino de Oliveira, a Babiy, faria caso estivesse frente a frente com as pessoas responsáveis pela sua condenação e sua prisão.
A Ponte fez a provocação para Babiy dois dias depois de o Tribunal de Justiça de São Paulo a absolvê-la no processo por roubo a carro, no qual vítimas brancas a reconheceram como uma das criminosas pelo seu cabelo. A dançarina negra ficou um ano e oito meses atrás das grades, mesmo sendo inocente.
Leia também: ‘Quero ser conhecida pela dança, não pela prisão’, desabafa Barbara Querino
A única prova que ligava ela ao crime era o reconhecimento feito pelas vítimas. Eles se basearam em uma foto enviada pelo aplicativo WhatsApp, em que dizia que Bárbara era integrante de uma quadrilha. Inicialmente, a Justiça considerou a palavra das vítimas mais forte do que fotos e depoimentos que colocavam Babiy em outra cidade no dia do crime, em setembro de 2017.
“Bati o pé. Passei por muita coisa e hoje absorvo tudo isso, mas e um pedido de desculpa? Nem isso foram capazes. Poderia dar um novo significado pra minha vida. Fui presa com 19, hoje tenho 22”, prossegue Babiy. Depois da prisão, a jovem negra passou a atuar contra o encarceramento em massa de jovens negros e periféricos, além de mobilizar ações a favor das pessoas presas.
Mas, afinal de contas, quem é culpado pelo tempo de Babiy presa? Houve um passo a passo até a condenação e, neles, responsáveis dentro do sistema de Justiça. Tudo começou pela Polícia Civil, passou pelo Ministério Público e, depois, pela Justiça. Só na 2ª Instância, esfera superior, que o Judiciário entendeu não haver provas para que Bárbara fosse culpada pelo roubo.
Procurado pela Ponte para analisar o caso, o advogado cível Leonardo Furtado explica que a inocência decretada pelo TJ abre a possibilidade de Bárbara processar o Estado pelo período em que ficou presa injustamente. No entanto, ele detalha que este é um caminho complexo.
“O Brasil é muito ruim nisso. Temos uma cultura de não responsabilizar o Estado por atos que geram erros. É muito difícil. Alegam que houve erro, mas sem intenção. E, sem ter o dolo, um claro equívoco, o Judiciário tem dificuldade em reconhecer”, analisa o especialista.
Leia também: Barbara Querino, a Babiy: como a Justiça condenou uma jovem negra sem provas
“Aqui se prende a rodo, principalmente nas camadas mais pobres, se tem muita prisão preventiva. É regra para os pobres”, diz, como foi o caso de Babiy. “E é o contrário dos Estados Unidos. Qualquer erro lá se responde às autoridades. Tem uma cultura de o Judiciário ser muito forte contra as pessoas, mas se o Estado errar, também. As indenizações são multimilionárias”.
A Ponte detalha os caminhos e os responsáveis:
Secretaria da Segurança Pública
O delegado Francisco Solano de Trindade, do 99º DP (Campo Grande), foi o responsável pelo inquérito que incriminou Bárbara e a incluiu em uma quadrilha de roubo a carro. Os próprios integrantes do grupo diziam que ela não estava envolvida. O delegado considerou o reconhecimento, feito a partir de uma foto do Whatsapp, a prova mais importante. Depois, ao vivo na delegacia, as vítimas viram apenas uma foto de Bárbara — a mesma que a mulher do casal já tinha visto no Whatsapp —, uma prática chamada de show-up, que costuma ser causa de um grande número de acusações falsas.
O reconhecimento que levou à condenação de Bárbara não seguiu os procedimentos previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal, que disciplina como devem ser feitos os reconhecimentos, nem as recomendações da psicologia do testemunho usadas para garantir um reconhecimento livre de dúvidas. Trindade desconsiderou os depoimentos e imagens que indicavam que que Bárbara estava no Guarujá, no litoral paulista, e não na capital, local do roubo. Ele pediu a prisão preventiva de Babiy.
Youssef Abou Chahin, então delegado-geral da Polícia Civil, era chefe da corporação e, portanto, o superior máximo de Trindade.
A Ponte pediu à Secretaria da Segurança Pública entrevista com Trindade e Chahin, mas não foi atendida. Também questionou se ambos avaliam suas culpas pelo tempo em que Bárbara ficou presa injustamente e se pediriam desculpas para a jovem negra.
A pasta respondeu que “o caso foi investigado pelo 99º DP e as provas testemunhais e periciais foram anexadas ao inquérito, que foi relatado à Justiça em novembro de 2017. A jovem investigada foi reconhecida fotograficamente durante as investigações e presencialmente pelas vítimas durante audiência de custódia”. “A análise e a posterior condenação ou absolvição cabem ao Poder Judiciário”, pontua.
Governo de São Paulo
A reportagem também questionou o governo de João Doria (PSDB), chefe da SSP-SP, se ele considerava que houve erro na investigação que colocou uma inocente atrás das grades e se abriria processo para apurar se houve culpa de algum agente do Estado pela prisão. Porém, a assessoria do governador explicou que ele não se posicionaria sobre o assunto. “A SSP responderá pelo governo”, como informado por telefone por um de seus assessores de imprensa.
Ministério Público
O promotor Gilberto Gomes Peixoto, do Ministério Público Estadual, foi o responsável por acusar Bárbara levando em consideração somente o depoimento das testemunhas que a reconheceram pelos cabelos a partir de uma fotografia. Em seu pedido, no dia 4 de dezembro de 2017, ele não elenca quais provas confirmariam que Bárbara e os outros suspeitos teriam, de fato, cometido o roubo. No entanto, pede sua prisão pelo crime ser de “natureza grave” e ter sido cometido “com grave ameaça em pela luz do dia”.
A Ponte pediu entrevista com o promotor para a assessoria de imprensa da instituição. Questionou se ele considerava algum erro em seu trabalho, se considerava ter culpa pelo tempo de prisão injusta e se pediria desculpas à Bárbara. A assessoria do MPSP se limitou a responder que “ainda não tomou ciência do acórdão”.
Justiça
O juiz Klaus Marouelli Arroyo foi o responsável por condenar a dançarina a cumprir 5 anos e 4 meses pelo crime. Ele considerou mais relevante o reconhecimento das testemunhas do que falas de pessoas que estavam com Babiy no Guarujá, litoral paulista, no dia do crime e alegavam que ela trabalhava quando o carro foi roubado. No entanto, para ele, essas pessoas tinham “interesse” em depor a favor dela. Considerou que eram testemunhas com suspeição e optou pela a tese de acusação.
O desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, é superior de Arroyo e responsável máximo da Justiça paulista.
Assim como aos demais, a reportagem perguntou a Arroyo, via assessoria de imprensa do TJ, se ele considerava ter cometido algum erro na análise do processo de Bárbara, a condenando sem provas, e se pediria desculpas a ela. A assessoria explicou, por e-mail e por telefone, que juízes e desembargadores são proibidos de dar entrevistas, conforme o artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura.
TV Bandeirantes
Para Bárbara, a TV foi tão culpada quanto o sistema de justiça. Uma reportagem a colocava como integrante da quadrilha e “impulsionou tudo que aconteceu”, disse. Ela e seu advogado, Flávio Roberto de Campos, apontam que uma reportagem exibida no programa Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena, contribuiu para o reconhecimento errado feito pelas testemunhas ao apresentar uma foto da modelo e a ligá-la ao grupo que roubava veículos. A intenção da defesa é cobrar legalmente ressarcimento da emissora.
Em sua defesa, a Band explicou à reportagem que se baseou nas informações passadas pela Polícia Civil, de que Bárbara tinha um pedido de prisão, para veicular a matéria.
“A reportagem à época foi produzida com informações concedidas pelo delegado Francisco Solano, responsável então pela investigação do caso. O nome e a imagem de Barbara Querino de Oliveira foram divulgadas para os veículos de comunicação pela Polícia Civil”, diz a nota.