Depois de vender seus versos pelas ruas de SP, Alexandre Ribeiro ganha edital e lança ‘Reservado’, seu primeiro romance; ele conta como virou escritor e o processo de se entender negro: ‘toda criança de favela quer ser branca’
No dia 16 de setembro de 2018, uma multidão fazia fila na entrada da sala Adoniran Barbosa, no Centro Cultural de São Paulo, à espera de Baco Exú do Blues. O rapper baiano tinha show marcado para 18 horas no local. Um jovem de cerca de um metro e sessenta e cinco de altura caminhava pelo público, majoritariamente de classe média, oferecendo poesia. Os cabelos cacheados e a camisa colorida eram a porta de entrada para a venda de um livro de fabricação caseira.
“Opa, desculpa atrapalhar vocês. Meu nome é Alexandre”, enquanto isso ele distribuía as pequenas impressões no papel pardo. “Sou artista independente e vendo meu livro de poesias assim, de mão em mão. O preço? Vocês decidem”. Rapidamente, de maneira genial, o artista saca uma maquininha de cartão antes de alguém justificar a falta de dinheiro vivo. Não deu outra. Em uma roda de cinco pessoas todos contribuíram e, em média, pagaram dez reais pelo livro de poesias, intitulado “Inflorescência”.
É assim que Alexandre Ribeiro, 20 anos, vive. De mão em mão, de livro em livro, de cartão em cartão. Um ciclo que faz com que ele possa fazer, sentir e viver sua arte de maneira independente. “É minha maneira de me manter vivo. A arte é meu respiro”, explica com um sotaque tão paulistano que chega a ser impossível negar sua origem, embora tenha na verdade, nascido e sido criado na cidade vizinha, Diadema, no bairro de Canhema. “Desde quando eu era pedreiro e ajudava o meu pai nas construções, até quando eu fui assistente em um hotel, eu fazia arte. Sempre fui meio louco”, define.
A vida complexa, como ele mesmo adjetiva, começou aos nove anos, quando, para ajudar a família, foi trabalhar como entregador de produtos de limpeza. Mas foi aos seis anos que entre os dedos nasceu o seu primeiro poema. O tema? Desigualdade social. “Ele [poema] fala um pouco sobre a relação de território, de que…”, antes de completar a frase Alexandre devaneia e pensa no quão “louco” é saber que isso saiu da cabeça de uma criança ainda no primário. “Eu escrevi uma parada que era tipo assim: ‘Eu queria morar em São Bernardo, porque talvez fosse mais perto da escola e aí eu ia ser uma criança mais feliz’”. Na época, todas as manhãs, o pequeno saía de Diadema em direção a São Bernardo do Campo, em busca de um ensino público melhor. Os escritos, guardados até hoje, viraram uma relíquia na trajetória do escritor. “Vou colocar no museu depois”, brinca enquanto exibe o metálico dos dentes, já que usa aparelho ortodôntico.
O pai foi fundamental na formação da personalidade de poeta dele já que, desde muito cedo, incentivava o filho a ler, apesar de adotar uma pedagogia, de certa forma, questionável. “Ele tinha uma parada de colocar uns livros, normalmente bíblicos, e me falava: ‘Ó, você tem que ler cinco páginas antes de dormir’”. Caso ele não cumprisse, ficava de castigo. Em 2011, a figura paterna se tornaria apenas uma lembrança. Depois de ser uma das vítimas da gripe suína, o pai do Alexandre faleceu. Com o filho, deixou a referência do que iria se tornar sua profissão. “Eu tenho uma relação muito forte com a palavra, porque eu lembro muito do meu pai quando estou lendo”, explicou.
Durante o luto, o moleque de quebrada que era a esperança da família acabou se tornando o seu próprio inimigo. O menino, que aos 9 anos ganhara o Campeonato Brasileiro de Astronomia, agora, desejava ostentar as “paradas” e seguir o rumo que o Estado almeja para a periferia. A dificuldade estava em entender a morte.
Revoltado, quase chegou a ser expulso do colégio e viu a família passar perrengue. Alexandre então se reencontrou com o hip hop. Em um show dos rappers Emicida e Rael, ele enxergou uma válvula de escape. Ali, em uma apresentação no próprio bairro, ele reviveu as rimas, figura presente no romance entre os seus pais. “No aniversário de 20 anos de casamento, meu pai deu um CD do Racionais MC’s para a minha mãe”, relembra. Assim, Alê conheceu o Renan do grupo “Inquérito” e foi viver uma nova experiência, ainda na mesma área. De pulo em pulo, a ascensão do garoto passou a ganhar mais um capítulo. O show de hip hop, que o botou de novo na realidade, seria mais um degrau na escalada da arte. Em dezembro de 2016, a empresa “Laboratório Fantasma”, chefiada por Emicida e Evandro Fióti, contratou o menino de Diadema para uma vaga em produção artística.
Dentro do escritório, localizado na Rua Conselheiro Moreira de Barros, no bairro de Santana, zona norte de São Paulo, o então produtor seria picado pelo sonho da escrita. O bichinho responsável por tirar Alexandre do backstage foi o Itaú Cultural, que viu no jovem a chance de narrar a vida da periferia e o contratou para uma coluna do site. “E aí, eu me joguei no mundão”, conta. Assim, em março de 2018, Alexandre entendeu que poderia ser protagonista em uma história sua e deixou o Laboratório Fantasma.
‘Todo mundo quer ser branco quando é criança’
Aos dezenove anos, Alexandre criou o próprio selo para poder se publicar: a Editora Miudeza. O livro de poesias era uma maneira dele florescer de dentro para fora. “Inflorescência” nasceu da tentativa de ele encontrar lembranças afetivas que estavam perdidas dentro de si. Lançado em maio de 2018, no Sesc 24 de Maio, as poesias encadernadas chegaram nas mãos de pessoas como o ex-senador Eduardo Suplicy e a cantora Liniker. Cada detalhe foi pensado para uma experiência particular. O papel pardo diz muito mais sobre o menino de um metro e sessenta e cinco. Quando criança, Alexandre se via como branco. “Todo mundo quer ser branco quando é criança”. Filho de um homem preto e uma mulher branca, o pequeno aprendeu nas vielas da favela que branco era sinônimo de bom e preto era mau. “Eu demorei muito tempo para me encontrar como uma pessoa parda, que é como eu me leio hoje”, explica.
A pequena editora de selo próprio e independente brotou como consequência. Pobre e periférico, o jovem de 20 anos nunca almejou ter seus livros distribuídos por uma grande empresa, já que lá nunca teria sua identidade valorizada. “Eu quero que as grandes editoras se fodam. Eu quero que elas queimem que nem estão queimando aí, porque são um bando de branco safado que só fazem panelinha entre eles e isso é um reflexo do mundo em que eles vivem”, critica.
Ao falar sobre o processo de compreensão de sua negritude e do território do qual fala, lembrou de uma abordagem policial que sofreu ao oferecer sua arte. Um dia, sem mais, nem menos, um homem fardado chegou batendo na mão do jovem e perguntando o que ele estava fazendo. Com paciência, ele explicou que vivia daquilo, que escreve, produz e vende livros. “No final os caras acham daora o trampo, mas nunca pedem desculpas pela truculência”, reclama.
Justamente por já ter sido abordado mais de 10 vezes, Alexandre escolhe, pela sobrevivência, os bairros ricos para lucrar: “Se eu fizesse isso [vender livros] na minha quebrada era capaz de nem estar mais aqui. Porque na quebrada a violência nunca espera esse tapa que eu tomei, ela já vem de bala mesmo”.
O bairro dos Jardins, localizado nos limites entre o centro e a zona sul de São Paulo, também é um lugar que o rapaz de cabelos cacheados mantém distância. Uma vez, um policial militar o abordou sem entender o porquê do garoto passear por ali. “Você está fazendo o que aqui, andando?”, questionou. “Eu respondi: ‘ué, estou andando’”. Nisso, os dois entraram em um “bate-boca meio bobo” e o policial pediu para que o abordado se retirasse do local. “Às vezes eu perco um pouco a cabeça e esqueço que os caras podem me matar”.
Para ele, o Estado não entende quando a periferia deixa de servir para produzir a sua própria arte. A truculência é um ato de silenciamento de quem não enxerga a produção intelectual fora da elite. “É muito fácil escrever ouvindo Tchaikovsky no décimo andar da Paulista, quero ver escrever literatura escutando barulho de tiro na quebrada”. Para Alexandre a literatura é isso, a vida real.
No dia 14 de dezembro de 2018, com o termômetro marcando 32 graus, Alexandre saca 20 reais da carteira. Assim como ele, um artista independente vendia CDs gravados de modo caseiro pelo valor de dez reais. “Oi gente, tudo bem? Eu sou músico, estou aqui vendendo o meu CD de reggae pelo valor de dez reais. Será que vocês podem contribuir? Hoje eu vou lá para Pirituba fazer um show”, disse o artista. “Ôo, mano. Seu trampo é o mesmo que o meu. Tem troco aí para vinte? Vai se apresentar lá em Pirituba, conheço lá”, respondeu Alexandre. Eles trocaram algumas informações sobre o local do evento e se despediram. “Vou deixar aqui um presente para você, fortalecer a nossa base artística. Esse livro é meu. Sorte aí para nós”, finalizou.
Um busão reservado na quebrada
Neste sábado (23/2), o jovem escritor de Diadema lançou seu primeiro romance, intitulado “Reservado”, na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, na zona oeste da capita paulista. O livro só foi possível porque Alexandre foi contemplado com o PROAC (Incentivo à Cultural do Estado de São Paulo) no ano passado. A trama conta a história de um menino encafifado com um ônibus na quebrada que leva a população a um destino reservado. “Reservado conta a história de João Victor, um moleque que conta um pouco de mim, um pouco de todos nós que somos jovens de quebrada. Um dos sonhos dele é saber para onde vai um ônibus reservado. Ele pensa: ‘Carai, para onde esse busão vai’?”, explica.
Quando, enfim, o menino entra no ônibus a vida dele é tragicamente transformada. “Ele se liga que está sendo levado para o velório do pai dele. Aí eu quero contar o que está reservado para o futuro desse moleque nem tão preto e nem tão branco, pobre, favelado”, continua. Neste domingo (24/2), Alexandre lançou o título na Fábrica de Cultura de sua cidade natal.
[…] Depois de vender seus versos pelas ruas de SP, Alexandre Ribeiro ganha edital e lança ‘Reservado’, seu primeiro romance; ele conta como virou escritor e o processo de se entender negro: ‘toda criança de favela quer ser branca’ Por Mariana Ferrari | Ponte […]