Quilombos virtuais: a resistência coletiva das mulheres negras no Brasil

    Uma breve – e não menos profunda – imersão nos encontros digitais que vêm aproximando mulheres negras de todo o país

    Ilustração: Antônio Junião

    Em uma busca em grupos no Facebook relacionados a pessoas negras e emprego encontro um que me chama a atenção: Indique uma Preta. Ao entrar, esperava encontrar pedidos angustiados por trabalho e divulgação de vagas. Mas, para minha surpresa, havia algo mais.

    Em uma postagem, Beatriz Pagéu, uma jovem de 19 anos de Salvador, conta sua história: “Começo a trabalhar na segunda. Estou feliz, mas ao mesmo tento destruída”. Explica que está em uma relação abusiva que desencadeou crises de ansiedade. Ela quer sair da casa que vive com o namorado, mas não tem como pagar aluguel sozinha e não conhece ninguém para dividir. Ao final do post, ela pergunta se uma de nós poderia ajudá-la.

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    Sua mensagem chega às sete mil mulheres do grupo. Todas somos negras, representamos 28% da população brasileira, de acorda com a PNAD 2019 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Abaixo da postagem, seguem dezenas de respostas: “Força, gata”, “Olha, flor, procure em grupos de estudantes. Não sou de Salvador mas fiz isso aqui no Rio”, “Tia Cida, pode ajuda-la?”. Beatriz pode não encontrar alguém para dividir um apartamento, mas encontra apoio. Um dia no grupo e é possível ver que o ambiente está além da busca de trabalho. É espaço de escuta compassiva, um lugar onde nossas dores são compreendidas.

    O mercado de trabalho é um ambiente hostil: nos ama quando cuidamos dos lares e criamos seus filhos, mas quer nos afastar quando buscamos cargos de liderança. A pesquisa “Potências (in)visíveis”, feita por Indique uma Preta e a Box 1824, agência de pesquisa de tendências de comportamento, traz números que demonstram isso. No Brasil, uma mulher negra ganha 44% do salário de um homem branco. Apenas 6% das negras alcançam cargos de chefia na cidade de São Paulo.

    Sigo rolando a página do grupo e encontro Talita, uma ex-contadora que agora faz tranças em cabelos afro. “Trabalhei no setor corporativo por seis anos e saí por não ter mais saúde física e mental. Há três anos, comecei a trabalho no que gosto”, desabafa. Está no grupo para conseguir clientes, mas não para buscar emprego. Como ela, há muitas mulheres que deixam trabalhos que não as valorizam ou as fazem sofrer e se convertem em empreendedoras.

    Emily sonhava em ser supervisora na livraria onde trabalhava. Inclusive, fazia cursos e oficinas para se preparar. “Mas me boicotaram para que não fosse chefe”, conta. Graduada em Letras, ela faz um MBA em Turismo. Quer fundar uma agência de turismo afrocentrado no Rio. E não é a única: 49% dos donos de pequenos negócios no Brasil são mulheres negras.

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    Quanto mais a sociedade nos afasta de lugares de poder, mais buscamos o apoio de nossas irmãs. Em grupos como o Indique uma Preta falamos de nossas profissões, mas também de cursos, filmes, eventos, desabafos sobre nossos amores ou solidões. Nos indignamos quando o Estado mata um dos nossos irmãos ou filhos e comemoramos a vitória das outras.

    Amanda Abreu, Dani Mattos e Verônica Dudiman são as fundadoras do grupo, que agora também é uma consultoria que busca conectar o mercado de trabalho com o universo diverso de profissionais negros. A ideia de se apoiar mutuamente está tomando forma fora das redes sociais.

    “É um quilombo: está aí como um espaço seguro”, explica Verônica, trazendo um conceito que tem regressado com força: o quilombismo, que evoca a história de resistência dos negros escravizados que, depois de fugir, formavam comunidades contra o poder colonial.

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    Um quilombo virtual, podemos chamar o grupo assim. Foi este espaço encontrado por Beatriz, a jovem que buscava um lugar para viver. Durante nossa conversa, ela disse que uma amiga indicou o grupo no início do ano quando estava desempregada e ganhava um troco vendendo brigadeiro. “Quando fiz esse post recebi um grande apoio, tantas palavras amáveis, de alento. Me senti acolhida por mulheres que nunca vi na vida. Senti, mais do que nunca, que as mulheres estavam dispostas a se ajudar mutuamente”.

    Malu Barros, pesquisadora cultural e estrategista de conteúdo da Box 1824, aponta que o mesmo aconteceu nos grupos formados para a pesquisa “Potências (in)visíveis”. As mulheres, mil ao total e todas negras, compartilharam seus problemas ao longo das conversas e formaram um movimento para se ajudar. Algo quase natural para nós. Estamos aí para nos apoiar e caminhar juntas.

    “Essa é a frase da Angela Davis materializada, quando uma mulher negra se move, tudo se move”, disse Verônica. E, vendo o grupo do Facebook e outras iniciativas virtuais, é possível notar esse movimento, lento, mas constantes. Lugares de resistência com milhares de mulheres negras, juntas, em constante troca, ocupando espaço, lutando contra um sistema que quer nos manter sempre na base, longe dos espaços de decisão.

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    Volto a falar com Beatriz por whatsapp. Quero saber como está agora, pergunto como termina sua história. Sua tentativa de encontrar trabalho no grupo não funcionou, mas permaneceu ali enquanto vendia seus doces. Encontrou trabalho em outubro. Mas as coisas já não estavam bem com o namorado, eles viviam no quintal de trás da mãe dele. A situação chegou a tal ponto que Beatriz passou a ter ataques de ansiedade durante a madrugada e foi nesse momento que decidiu encontrar outro lugar para viver. E que espaço melhor do que o do grupo para pedir ajuda? E bem, ela encontrou apartamento já perto do final do ano. Agora vive com quatro jovens em Salvador.  

    “A todas que passaram e estão na minha vida, gratidão pela empatia, pela vontade de ajudar. Se estivesse sozinha, certamente não teria chegado tão longe”, disse a jovem no final da nossa conversa. “Para nós, as mulheres negras, desejo que a luta por liberdade e a igualdade não se detenha, porque fui um longo caminho até chegar aqui”.

    Texto publicado originalmente em espanhol no portal argentino Periodismo Situado

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