‘A maior tortura dentro do cárcere é a falta de informação do processo’

    Fala de Tempestade, egressa do sistema prisional, destaca um dos apontamentos feitos ao longo do primeiro Seminário Internacional da Amparar, que reúne movimentos sociais, ativistas e juristas para debater o fim do encarceramento em massa

    I Seminário Amparar: “Resistência das familiares: do sofrimento à luta pelo fim das prisões” | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    O Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no Largo São Francisco, região central da cidade, tem sido palco de muitos debates sobre o futuro de movimentos sociais e de luta. Nesta quinta-feira (4/7), reuniu dezenas de pessoas para debater o sistema prisional brasileiro em um evento organizado pela Amparar (Associação de Parentes e Amigos de Presos).

    A plateia, composta em sua maioria por mulheres e pessoas negras, acompanhou atenta cada fala do primeiro dia do I Seminário Amparar – “Resistência das familiares: do sofrimento à luta pelo fim das prisões”. Antes, esse mesmo espaço, costumava reunir outros corpos: homens, brancos e da elite. Essa mesma faculdade formou nomes importantes do direito penal brasileiro, entre juízes, promotores, procuradores, defensores públicos e advogados, responsáveis pela máquina do sistema judicial.

    Seminário durou cerca de 8 horas | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    O primeiro dia do seminário contou com três mesas. Na primeira, intitulada “Prisão, direito à defesa e assistência jurídica“, que contou com a presença de Miriam Duarte (Amparar), Patrícia Oliveira (Mecanismo Estadual de Prevenção à Tortura do Rio de Janeiro), Tempestade (Sobrevivente do Sistema Prisional) e Thiago Luna Cury (Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo), com mediação de Leonardo Borges Martins (Amparar), o debate ficou em torno do papel de controle social que as prisões tem na sociedade.

    Para Miriam Duarte, uma das fundadoras da Amparar, é impossível falar da luta da ONG sem falar das mães que têm filhos apreendidos na antiga FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), atual Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente). “Essas mães, essas famílias, lutam todos os dias, choram todos os dias. A gente não sabe expressar o sentimento de cada uma delas. Nós familiares, quando cegos, surdos e mudos, somos invisíveis, somos totalmente invisíveis. Quando acordamos e percebemos que a culpa que a gente carregava ao longo do tempo não é nossa e percebemos que essa culpa é além daquilo que imaginávamos, a gente começa a se tornar visível”, disse durante a mesa.

    Miriam Duarte, uma das fundadoras da Amparar | Foto: Sérgio Silva /Ponte Jornalismo

    Miriam relembrou a sua trajetória na porta da antiga FEBEM. “A gente perde o medo e vem a coragem pra gente lutar. Começamos a luta como ‘Mães da FEBEM’. O que a gente fazia eu não sei se sou capaz de fazer hoje. Eu não sei se eu conseguiria dormir dentro de uma unidade pegando fogo como eu dormia. Eu não sei se eu seria capaz de ficar em uma unidade com 180 meninos e todo mundo fugir enquanto você tenta amenizar para que eles não coloquem fogo e nem ninguém mate eles. Quando nós, ‘Mães da FEBEM’, ficávamos dentro da unidade, eu posso garantir que não tinha menino morto, não tinha funcionário morto. A gente conseguia amenizar a situação, a gente conseguia dialogar com esses meninos, para mostrar uma igualdade de sofrimento. Foi assim que começou a nossa luta”, lembra Miriam.

    Para ela, a Fundação CASA serve como porta de entrada para os CDPs (Centros de Detenção Provisórias). “Assim vai até chegar as penitenciárias, assim vai até chegar no cemitérios dos vivos-mortos. Nós, mães, quando despertamos, a gente descobre uma imensidão dentro da gente, que nos dá força e coragem. A luta vem nos fortalecendo e nos levantando”, argumenta.

    Para Patrícia de Oliveira, do integrante do Mecanismo Estadual de Prevenção à Tortura do Rio de Janeiro, o seminário é um marco histórico. “No momento em que estamos vivendo, com tantos retrocessos, conseguir juntar tanta gente, de vários estados para debater, é muito importante. É dizer que, sem a luta dos familiares, a gente não consegue ter esse espaço, ter esses diálogos. Que esse evento possa mobilizar mais familiares porque eles têm que entender que eles têm que falar, que o espaço é deles. Muitos familiares não têm o conhecimento, não têm informação sobre os seus direitos”, comemora Patrícia em entrevista à Ponte.

    Patrícia de Oliveira, do integrante do Mecanismo Estadual de Prevenção à Tortura do Rio de Janeiro | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    Com muita emoção, Tempestade, sobrevivente do sistema prisional, finalizou a primeira mesa do dia contando a sua história. “Eu fiquei cinco anos dentro de uma prisão. Quando eu cheguei no sistema, eu queria ir embora. Como todo preso eu queria ir embora. O que interessa para o preso é a liberdade. Na hora que eu entrei, pensei em como poderia fugir. A maior tortura dentro do cárcere é a falta de informação do processo”, conta.

    “Toda prisão é uma prisão política com certeza. A prisão é um lugar em que muitos ganham dinheiro, é uma corrupção geral, ninguém pensa no preso. Quando eu sai de lá eu não queria mais ver cadeia pela frente, mas eu fui em uma audiência pública da Amparar que tinha as Mães de Maio, Andréia MF, e foi uma bofetada na minha cara como se diz: elas nem caíram em cana e lutam pelos presos, e eu que estava lá dentro, que lutei lá, não poderia ficar parada aqui. Não tinham egressos dentro dessas lutas, essas lutas eram feitas por pessoas que nunca estiveram presas”, continua Tempestade, que hoje é militante contra o encarceramento.

    Tempestade, sobrevivente do sistema prisional | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    Na segunda mesa, “Prisão provisória nas Américas: Argentina, Brasil e Estados Unidos”, participaram Andreia Casamento (ACIFAD – Asociación de Familiares de Detenidos), da Argentina), Joneisha Rae Roma James (National Council of Incarcerated & Formerly Incarcerated Women and Girls) e Yana Starr Aubourg (Families for Justice as Healing), dos Estados Unidos, Maria Railda da Silva (Amparar). A mediação ficou com Pedro Rivellino (Amparar). A discussão trouxe à tona as semelhanças que há no sistema carcerário dos países da América, principalmente no que se diz respeito às prisões forjadas, quando agentes de segurança colocam drogas ou armas para incriminar o suspeito, e as prisões irregulares e injustas, como os casos de Rafael Braga e Babiy Querino.

    Em entrevista à Ponte, Fábio conta como foi a construção do seminário. “A escolha das mesas veio no sentido de criar esses nexos, criar essas articulações, e colocar o sistema prisional no centro desse debate. É importante reforçar o que os palestrantes estão falando, pois são pessoas que vivenciam isso no seu cotidiano, são pessoas atingidas diretamente por isso, e elas trazem isso para outras perspectivas”, explica. 

    Para Pereira, falar do sistema prisional, pelo olhar de quem vivencia de alguma maneira essa realidade, é lembrar quem está por trás das prisões e do genocídio da população negra, pobre e favelada. “É o Estado que determina se nesse momento algumas pessoas vão ser encarceradas e outros vão ser mortos. A maioria das vezes as pessoas que são mortas porque já tiveram uma relação direta do cárcere. O Estado legitima a ação da polícia, perspectiva essa que é construída também pelo pacote anticrime do [Sergio] Moro”, argumenta.

    Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    Por isso, explica Fábio, os debates trazidos no seminário dialogam sobre o encarceramento em massa. “Somos o terceiro país que mais encarcera no mundo e há uma perspectiva de ultrapassar os dois que estão na frente, que são EUA e China, pois enquanto eles têm reduzido sua população carcerária, o Brasil tem construído perspectivas pensadas no recrudescimento e o aceleramento do número de pessoas presas”, defende Pereira.

    A terceira e última mesa do dia trouxe o tema central quando se fala em sistema prisional no Brasil: “Racismo e encarceramento em massa“. Isadora Brandão (Defensoria Pública do Estado de São Paulo), Katiara Oliveira (Kilombagem), Milton Barbosa (Movimento Negro Unificado) e Andréia MF (Mães em cárcere) trouxeram à tona como a estrutura do racismo alimenta as prisões e os assassinatos da população negra e pobre. A mediação ficou com Fábio Pereira, da Amparar.

    Para Milton Barbosa, um dos fundados do MNU (Movimento Negro Unificado), as prisões fazem parte do projeto de genocídio da população negra. “Na década de 70, já falávamos que deveria ter uma ação nas prisões, pois em sua maioria eram pessoas negras, trabalhadoras e menos remuneradas no sistema prisional”, relembra Milton. “O racismo está estruturado para explorar, dominar e dividir. Por isso, quando se fala em cotas, estamos falando em reparação histórica. Esse país deve reparação histórica para negros e indígenas. Esse é o único caminho para a paz. Precisamos discutir de maneira sistemática as questões fundamentais do racismo”, completa Barbosa.

    Milton Barbosa (à esq.), um dos fundados do MNU (Movimento Negro Unificado) | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    Em sua fala, Isadora Brandão, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, defende que o encarceramento em massa e o genocídio negro fazem parte do racismo estrutural e institucionalizado que perpetua o sistema prisional. “Quando a gente fala em encarceramento em massa, não falamos de um fenômeno ocasional e não é um fenômeno desracializado. Ele é fruto de uma política pensada e afeta de forma mais intensa a população negra. Ele dialoga com o processo de criminalização seletiva de corpos de jovens negros e periféricos. Ou seja, quanto falamos de criminalização seletiva, dizemos que o sistema penal existe para punir e criminalizar corpos específicos”.

    Quem também falou nessa mesa foi Katiara Oliveira, da Kilombagem. Para ela, é importante reconhecer a importância da luta dos familiares que tem pessoas que se encontram presos. “Estamos em uma sociedade desigual, racista, machista, que nos coloca grades invisíveis a partir de ideologias. Eu costumo falar para os meninos na Fundação Casa que quem não está lá também está preso, está preso aos preconceitos, está preso ao medo do novo, das mudanças. Vamos falar em prisões de grades, mas também em racismo. É importante falar dele porque é uma realidade que inferioriza, que desumaniza, naturaliza a nossa morte”, argumenta Katiara.

    Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    Para Katiara, a partir do racismo das prisões é possível entender o Brasil. “O cárcere é como uma calça jeans rasgada no inverno. Ele é ineficiente, porque entra frio nos buracos, mas tá na moda. Ainda mais no governo [Jair] Bolsonaro, em que se coloca uma política pública para justificar que a democracia está funcionando”.

    Katiara Oliveira argumenta que falar em cárcere e em genocídio é falar de escravidão como herança para além da questão da pele: fala em território. “Favela é um território preto, então a polícia é autorizada para ser violenta lá e não importa quem tá na reta, se é mais clarinho ou mais escurinho. Aquele território é autorizado a ter um tratamento diferenciado. A gente sabia que a abordagem no Jardins é uma e na periferia é outra. É nesse sentido que a gente tem que entender o racismo, como uma ideologia, uma estrutura e um problema social”. 

    Oliveira reforça a importância de colocar pessoas negras como agentes de transformação. “Que revolução que vai ter se o nosso povo não estiver vivo? Que revolução estamos falando num país em que a cada 23 minutos uma pessoa parecida comigo é enterrada? Se a gente for falar em revolução, temos que falar que não se tem revolução sem vida. É revolucionário a gente convencer as massas de que o genocídio está em curso e que é o poder popular que pode barrar isso. Ao mesmo tempo que somos vítimas, somos o sujeito para mudar o sistema. Os caras temem que o morro desça organizado para o asfalto”, crava Katiara.

    Quem finalizou as falas no seminário foi Andréia MF, do movimento Mães em Cárcere. Andréia é outra sobrevivente do sistema prisional e também compartilhar a sua história com o público. “Eu poderia falar várias histórias, mas hoje eu decidi falar a minha, a gente não pode esquecer da onde a gente saiu para lembrar onde a gente quer chegar. Sou ex-presidiária sim, com doze passagens pela FEBEM e três vezes cadeia”, conta. “Minha mãe era faxineira. Quando ela faleceu, deixou-nos uma casa, mas logo em seguida a sua patroa nos tirou de lá. Eu fui viver nas ruas de São Paulo. Da rua para o cárcere é um pulo, a gente sabe disso. Eu sou uma pessoa que nunca usou droga, mas fui traficante sim. Por esse motivo a primeira vez eu fui presa, quando maior. Depois comecei a assaltar e cai mais duas vezes. Eu fui para o cárcere, mas queria ter sido tratada como um ser humano. Eu queria cumprir a minha pena com dignidade, com respeito. Hoje, 20 anos se passou, e sou defensora popular, sou líder de um movimento e trabalho com crianças da comunidade”, comemora.

    Andreia também contou momentos de ajuda que pode oferecer depois que saiu do sistema prisional e virou militante. “A grande maioria das mulheres no cárcere estão presas por amor. Amor ao filho, amor ao marido. Todas têm uma história que se for escrever é sempre a mesma. Em um dia das mães eu pude escrever algumas frases para se enviadas para dentro do cárcere. É muita responsabilidade quando você já passou por ali. Eu sei o que elas gostariam de ouvir e eu gostaria de colocar ali aquilo que ninguém tem coração de falar. Mas eu não posso falar qualquer coisa. Eu fiz umas três ou quatro frases. Quando ela disse que estava dentro, nas mãos das meninas do cárcere, eu chorei. Eu pude estar presente em uma visita como uma frase. Para alguns pode ser pouco, para mim é muito”, relembra.

    Para finalizar, Andréia lembrou a importância de falar dos importantes nomes dos movimentos negros enquanto eles estão vivos. “A gente fala de Zumbi, de Dandara, de Malcolm X, mas tá na hora da gente lembrar que eles já se foram. Eles deixaram um legado para quem Milton fosse lembrado amanhã, para que todos os outros fossem lembrados. Eu sou filha de Dandara, mas quero ser filha de Milton, quero ser filha de Railda, quero ser a filha de Débora”.

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