Defensores do racismo, estupro e pedofilia, membros do Dogolachan criam fraudes para atacar desafetos, que vão de feministas a jornalistas
É um canto escuro e triste da internet. Se tivesse um odor, seria o de mofo, frustração e restos secos de ejaculações solitárias. Reunidos no fórum Dogolachan – que, como outros fóruns do tipo chan, tem como regra o anonimato dos participantes –, homens sem rosto se reúnem todos os dias para falar sobre a frustração e a raiva que os unem.
Criado em 2013 pelo hacker Marcelo Valle Silveira Mello, conhecido como Psy ou Batoré, dono de um longo histórico de crimes de ódio, o Dogolachan reúne homens que têm raiva de muita gente: negros, gays, lésbicas, trans, esquerdistas, judeus… Mas nenhum ódio merece tantos posts e desperta uma torrente tão caudalosa de ofensas quanto o ódio que sentem pelas mulheres.
Mulheres, para os membros do Dogolachan, são “depósitos de porra”, as “criaturas mais hipócritas e deploráveis do universo”, vadias que “só sabem dar para o pior tipo de lixo”. Nos posts do fórum, celebram autores de feminicídios como “heróis” e elogiam a beleza de lolitas russas de cinco anos, por serem livres de “miscigenação e essa degeneração toda”, enquanto debatem a respeito das melhores técnicas para sequestrar e estuprar adolescentes.
A misoginia faz com que as mulheres sejam os principais alvos dos ataques virtuais que os membros do Dogolachan realizam periodicamente. A professora de literatura Lola Aronovich, autora do blog feminista Escreva Lola, conta que já registrou dez boletins de ocorrência contra Marcelo Valle Silveira Neto e outros membros do grupo que criou o site. Além de incontáveis ameaças de morte contra a professora e sua família, o Dogolachan criou em 2015 um site falso, com o nome da Lola, que pregava o aborto de fetos masculinos e a castração e infanticídio de meninos – na época, o cantor Roger, ex-Ultraje a Rigor, foi um dos que acreditou na trollagem e divulgou o site como se fosse real.
Na última investida do grupo contra a feminista, o site estampou que o Dogolachan seria propriedade do marido de Lola, “que se responsabiliza civil e criminalmente por todo o conteúdo” do fórum. “Meu marido obviamente não tem nada a ver com o chan, mas Marcelo sabe que o chan está sendo investigado, e então tenta jogar a culpa em outras pessoas”, explica Lola.
Criar conteúdo ofensivo e atribuí-lo a desafetos, para que sejam perseguidos e tenham problemas com a polícia, é uma das táticas mais usadas pelo grupo. O mesmo modus operandi foi adotado num e-mail com ameaças de ataque terrorista do Estado Islâmico enviado à USP (Universidade de São Paulo), em 4 de dezembro deste ano, que ameaçava “matar o maior número de viados, travestis, esquerdistas e feministas”.
O e-mail levava a assinatura de Murilo Ianelli Chaves, um desafeto do Dogolochan. Por causa da mensagem falsa, Murilo teve de comparecer ao 93º DP (Jaguaré) para prestar esclarecimentos e viu seu nome associado na internet ao terrorismo fundamentalista. No Dogolachan, os membros comemoraram a trollagem contra Murilo. “Esse cara vai ter problemas quando tentar tirar o visto americano”, disse um deles.
Pessoas que acompanham o Dogolachan vêem o mesmo modus operandi em ameaças que foram enviadas no ano passado para a jornalista Joice Hasselmann (ex-Veja) e, neste ano, para advogada Janaína Paschoal, autora do pedido de impeachment da presidenta Dilma. Nos dois casos, as ameaças de morte e estupro, dirigidas contra as mulheres e seus familiares, eram assinadas por desafetos do fórum. “Em geral eles ameaçam mulheres de esquerda, mas chegaram a atacar reaças”, afirma Lola. Para o Dogolachan, o ódio às mulheres supera outras possíveis afinidades ideológicas.
Jornalistas que denunciam os crimes do Dogolachan também entram no radar de ameaças do grupo. Após a Ponte publicar da reportagem “Fórum de extrema direita comemora ‘trollagem’ com ameaça terrorista à USP”, membros do fórum estamparam uma foto do repórter Arthur Stabile seguida de um aviso: “Não esqueçam esse nome, novidades em breve”. Um outro membro sugeriu: “Não ameacem ele diretamente, isso sempre acaba em feijoada, além de oferecer o papel de vítima. Façam ameaças à personalidade em nome dele. Ameacem os Bolsonaro ou a embaixada americana em Brasília no nome dele”.
E um homem que se identificou como o próprio Marcelo Valle Silveira Mello anunciou que iria processar a Ponte, postando no fórum o que seria o início da petição inicial, com os seus dados completos.
Morador de Curitiba (PR), formado em ciência da computação e hoje estudante de direito, Marcelo tem 32 anos. Em 2009, incluiu o seu currículo o feito de ser o primeiro condenado da Justiça brasileira por crime de racismo na internet, ainda que não tenha chegado a passar um dia na cadeia. A situação mudou três anos depois, ao ser detido pela criação de uma rede que defendia a legalização do estupro e da pedofilia. Solto em 2013, logo voltou a ser alvo de novas acusações.
A Ponte não conseguiu uma forma de entrar em contato com Marcelo. Também não é possível saber se ele teria algo a dizer. Quando foi confrontado por um jornalista, o repórter Guilherme Belarmino, do Profissão Repórter (Globo), Marcelo não defendeu qualquer ideia: só gaguejou, xingou e saiu correndo. Horas depois, confinados aos ambientes seguros de suas postagens anônimas, ele e outros Dogolochans atacaram o repórter por ser negro, chamando-o de “cotista”.
“Fora do alcance”
Acompanhando os posts do Dogolachan, fica evidente que o ódio de seus membros pelas mulheres tem origem na dificuldade que possuem para se relacionarem com mulheres reais, como eles próprios admitem. “Não aguento mais sair na rua e ver JBs [meninas com jeito de mulher] branquinhas que eu nunca irei tocar”, desabafa um deles, num post em que os Dogolachans debatem as possibilidades de conseguir sexo com a youtuber e ex-Master Chef Valentina Schulz, 14 anos. “Ela nem é mais menina, já esta crescida”, lamenta um deles.
“Lidem, meninas novinhas branquinhas (…) estão ABSOLUTAMENTE fora do alcance de qualquer um aqui”, retruca um colega. Ao reclamar dos resultados frustrantes que obteve num aplicativo de paquera, um Dogolochan lamenta: “é humilhante saber que só consigo match com gorda e travecos”, para logo em seguida acrescentar que prefere desistir de continuar as tentativas de fazer sexo e continuar a se masturbar.
Prisioneiros do próprio machismo, os Dogolachan enxergam a posse de mulheres como uma necessidade para afirmar a própria identidade masculina, mas, ao mesmo tempo, se decepcionam ao constatar que as mulheres não estão ao seu alcance, mergulhando em um moto-contínuo de produção de frustrações. Talvez venham daí as referências tão constantes do fórum à pedofilia e à defesa do estupro de meninas e adolescentes, possivelmente vistas como menos ameaçadoras do que as mulheres adultas.
Protegido pelo anonimato, um Dogolachan relata sua fantasia de estuprar uma adolescente na saída da escola, descrita como a única possibilidade de contato com o sexo feminino:
Da frustração sexual, muitos Dogolachans descambam para a impotência, a julgar pelos relatos constantes de dificuldade de ereção ou perda de libido. “Nunca bebi nem sequer fumei, e ainda assim tenho alguns problemas com a libido que começaram recentemente. E só tenho 21 anos”, um Dogolachan escreveu nesta semana. Relatos assim são frequentes, um deles reconhece: “Já vi diversos confrades por aqui relatando impotência, baixa libido, confusão mental & depressão”.
“…é preciso entender esse grupo como pessoas que fracassaram no mundo real e se refugiaram no mundo virtual. São homens sem emprego, sem perspectivas na vida e, por extensão (como eles declamavam), sem namoradas. (…) Em consequência de seu fracasso, o conceito distante e abstrato de mulheres de carne e osso provoca neles sentimentos de humilhação e rejeição”, escreveu o quadrinista americano Dale Beran a respeito de outro chan, o 4chan, que se tornou o coração da alt-right americana e grande plataforma de apoio a Donald Trump. Ainda que o conteúdo de preconceito explícito e criminoso do Dogolachan seja muito pior do que as postagens do 4chan, as observações de Beran parecem casar bem com os dois fóruns.
Quando Beran afirma que “a cultura de desesperança” do 4chan “abraça a condição de perdedor”, parece também estar descrevendo os membros do Dogolachan, que quase sempre se reconhecem como perdedores – ou “jorges”, como se definem, um termo surgido nos chans para definir filhinhos de mamãe que tentam chocar os outros com ações ridículas. “Praticamente todos nós aqui estamos lesados da cabeça por frustrações não-resolvidas na adolescência”, reconhece um deles.
O racismo e a misoginia que os Dogolachan despejam na internet não são a do homem branco que se vê como membro de uma casta superior. Ao contrário, são o racismo e a misoginia de seres que se vêm como inferiores: como dizem em vários posts, os anônimos do fórum se acham mais feios, mais patéticos, mais gordos ou mais pobres do que seus semelhantes. Talvez por isso, enxerguem na sua identidade de homem branco a última possibilidade para se agarrar em busca de algum fiapo desesperado de amor-próprio. Como que saudosos de um tempo mítico em que teriam acesso às mulheres do mundo apenas pelo fato de serem homens e brancos, os jorges do Dogolachan passam a lamentar a “decadência da civilização ocidental” por dar poder às minorias.
Frustrados, tristes e brochas, mas incapazes de enxergar algum erro em suas próprias atitudes, aos Dogolochan só resta o refúgio do ódio.
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