Faixa “Dissrepeito à mulher” joga no chão e escancara o machismo na cena pernambucana. “Hip-hop repete postura opressora contra as mulheres”, diz rapper Lady Laay
Na cultura hip-hop, as brigas, polêmicas, confrontos e desafetos também viram música. É a chamada “diss track”, quando um artista compõe uma faixa para externar a sua insatisfação com uma pessoa ou situação. A rapper Lady Laay, de Recife (PE) foi além é fez uma diss poderosa para jogar no chão e escancarar o machismo da cena pernambucana.
A rapper, de 24 anos, colocou os “pingos nos is” e detonou com muito talento e flow (fluência) todas as situações de opressão e desrespeito provocadas pelos artistas locais. “boa parte dos mcs dizem lutar contra o sistema, mas acabam sendo cópia fiel do mesmo, sendo tão opressor quanto. Sendo oprimidos de um lado, e opressores de outro”, diz.
O videoclipe da música “Dissrespeito à mulher” foi gravado em Recife, na Ilha de Deus, uma comunidade de pescadores na periferia da cidade, e no Recife Antigo, um dos pontos turísticos mais visitados da capital pernambucana.
“Desde pequena sempre gostei de estudar as revoltas populares que houveram durante a história, sempre tive o sentimento de indignação perante as desigualdades sociais, então quando conheci o gênero rap senti que finalmente havia encontrado um tipo de música que dissesse tudo que penso e sinto”, disse a rapper que faz parte do grupo Poder Feminino Crew e também tem uma carreira solo com o EP Audaciosa. Confira a entrevista que o Ponte fez com a rapper por e-mail.
Ponte: Como surgiu a ideia da música “Dissrespeito à mulher”?
Lady Laay: Depois de inúmeros atos de invisibilização, boicote, escanteio e desrespeito ao trabalho feminino (e à mulher no geral) na cena rap de PE/NE (e de todo Brasil), por parte das próprias pessoas que reclamam de invisibilizacão nordestina, mas fazem o mesmo as mulheres do próprio nordeste, senti que estava mais que na hora de fazê-los provar do próprio veneno. Todos os versos da música foram respostas às falas reais e atitudes que, de fato, aconteceram. Não teve nenhum verso pra encher linguiça. A música foi um apanhado das coisas que têm acontecido desde sempre e que continuam acontecendo aqui em Pernambuco e em todo Brasil.
Ponte: E qual foi a gota d’água?
Lady Laay: A gota d’agua que aconteceu há dois meses, em um evento organizado pelos mcs locais em uma ocupação contra a PEC [Proposta de Emenda Constitucional} que limita os gastos públicos com saúde e educação. Não havia nenhuma mulher na programação. As próprias mulheres do hip hop e as da ocupação (mesmo as que não eram do hip hop), dias antes do evento acontecer, postaram na página do evento no Facebook questionando a falta de representatividade feminina na line-up, foi então que iniciou-se o discurso de ódio e misoginia disseminado pelos mesmos.
Ponte: O que os mcs disseram sobre o questionamento de vocês?
Lady Laay: Disseram tudo que falei na música: que a mulher não tem espaço porque não tem qualidade, porque tem medo e insegurança, que não conhecem mulher no rap PE (ironicamente, no intuito de dizer que o trabalho de nenhuma presta), e que se quiséssemos tinha o microfone aberto (como consolo). Chegando o dia do evento, que em sua programação, além dos shows também tinha roda de diálogo, as mulheres foram em peso. Na roda de diálogo, propuseram um debate com os mesmos, cujo tema seria justamente o machismo e desrespeito contido nas atitudes, falas e letras de músicas deles, em que objetificam e insultam as mulheres.
Ponte: O que aconteceu então?
Lady Laay: Fugiram do debate, desligaram os microfones para silenciar as minas, e simplesmente encerraram o evento. Dias após o evento, o pai de um dos organizadores foi na página do meu grupo e fez um post em nosso mural nos insultando e tentando nos intimidar. Depois destes episódios decidi que tudo isso não poderia passar batido, não mais. Essa foi a real motivação de fazer a música.
Ponte: Quem dirigiu o videoclipe? Quem escreveu o roteiro?
Lady Laay: Liohm Audiovisual (Pedro Leão e Jonson Pereira). É uma produtora de audiovisual de Recife-PE. Uma das referências em qualidade audiovisual na cena de RAP de PE, e recentemente, inaugurou um projeto chamado RAPensantes, do qual estou participando de um dos episódios, voltado para valorizar os Mcs do Nordeste (independente do gênero), com cyphers, entrevistas, versos livres e documentários.
Ponte: Qual foi o seu primeiro contato com o rap e quando você começou a compor?
Lady Laay: Meu primeiro contato com o rap foi em 2008, aos 15 anos, depois de um amigo da escola me mostrar uma música do Facção Central. Desde pequena sempre gostei de estudar as revoltas populares que houveram durante a história, sempre tive o sentimento de indignação perante as desigualdades sociais, então quando conheci o gênero rap senti que finalmente havia encontrado um tipo de música que dissesse tudo que penso e sinto. A partir daí comecei a pesquisar mais a respeito, e descobri que havia todo um movimento, cultura e ideologia por trás, conheci os demais elementos do hip-hop: me tornando bgirl em 2012, depois também graffiteira, e em 2015 decidi me jogar também no rap.
Ponte: Quais são os seus interesses musicais e suas influências?
Lady Laay: Meu gênero musical preferido é o rap, mas também ouço bastante ragga/dancehall, e buscando dar uma originalidade maior a meu trabalho tenho estudado minhas raízes – os gêneros da cultura popular de PE: coco, maracatu, manguebeat, e principalmente o cordel e o repente (que é bem forte aqui no nordeste, e é muito parecido com o rap). Minhas principais influências e referências são: Jô Maloupas, Odisseia das Flores, Atitude Feminina, Primeiramente, Karol Ex-RC (e o RC), Eduardo, Rap Plus Size, Belladona, A286, Souto MC, Rapadura, Luana Hansen, ADL, Cintia Savoli, Mirapotira, Coruja BC1, Bruna Muniz, o Yabas – antigo grupo feminino de PE (que infelizmente chegou ao fim), Sinta Liga Crew entre outros.
Ponte: A sua música fala sobre as barreiras enfrentadas pelas mulheres no hip-hop. Na sua opinião, por que um movimento que tem a liberdade e a independência como suas principais bandeira repete comportamentos machistas? Não é um grande contrassenso?
Lady Laay: Infelizmente o buraco é mais embaixo, o machismo e misoginia são problemas viscerais. Não existem apenas no hip-hop, e sim enraizados na sociedade como um todo.Porém também acho que a questão é que boa parte dos mcs dizem lutar contra o sistema, mas acabam sendo cópia fiel do mesmo, sendo tão opressor quanto. Sendo oprimidos de um lado, e opressores de outro. A maioria tem cantado o que vende, o que vai virar hit, e não o que ele de fato vive, vivencia e pratica. O fato é que essa mesma ‘boa parte’ dos mcs tem perdido a essência, tratando apenas como produto, não tem mais a consciência de que deveriam ser e dar exemplo. Aquela coisa que a rua preza: conduta, postura e respeito, anda faltando muito, atualmente as pessoas preterem essas três coisas por outras três: status, fama e grana. E como você disse, isso é uma atitude que está bem intrínseca na sociedade como um todo mesmo, a maioria parece seguir aquele ditado: ”Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço!”.
Ponte: Fala um pouco da sua carreira até aqui.
Lady Laay: Faço parte do grupo Poder Feminino Crew – PFC, grupo/coletivo que utiliza o hip-hop (rap, graffiti e dança) como instrumento de luta em prol das mulheres, negros, periferia e etc, fundado em 2014 por mim e outra ex-integrante. E no meio do ano passado iniciei meu projeto solo em paralelo ao grupo. E não há como falar da minha carreira sem citar o DJ Novato, que é um renomado DJ em PE, e produtor fonográfico, que é uma das exceções no que tange a homens apoiando o rap feminino.
Ele já ajudou várias mulheres do rap pernambucano, é produtor de quase todos os meus sons já lançados, e está fazendo toda a produção/direção musical do meu 1º EP, intitulado Audaciosa, e do primeiro álbum da PFC: Subversiva, ambos com produção e direção musical do DJ Novato.
Ponte: A frase “somos herdeiras de Frida, jamais me khalo” é muito forte. Como o feminismo chegou na sua música? Em Recife as mulheres estão combatendo a misoginia e o feminicídio? Como é a articulação aí?
Lady Laay: Como o rap têm em sua essência a característica de narrar a realidade, como não usá-lo para relatar e denunciar o machismo que diariamente dificuldade nosso trabalho. Muitos reclamam que as músicas das mulheres estão na mesmice sempre voltadas para o feminismo, mas o fato é que enquanto continuar acontecendo esses atos, será impossível não bater na mesma tecla, porque precisamos de fato pressionar para que haja a mudança. Porém, vale ressaltar, que estes que reclamam disso, nunca se deram nem ao trabalho de ao menos procurar conhecer os outros trabalhos das mulheres antes de dizer que só falamos disto. Porém os nossos sons com outros temas são completamente ignorados, invisibilizados e escanteados.
Ponte: Como é a cena do grafite e do break em Recife?
Lady Laay: Além do rap, também trafego na cena grafite e break (que foram os primeiros elementos do hip-hop que comecei a praticar). Na minha percepção, dos quatro elementos (com exceção do 5º, o conhecimento), o breaking é o que mais tem preservado a essência da cultura hip-hop, pois é notório que os bboys daqui dançam unicamente com e por amor, porque estão na ativa em todos os lugares: independente do chão, e apesar de não terem nenhum apoio e nem retorno financeiro. Outro ponto que observo é que quase não há mais eventos que unam todos os elementos, é sempre evento de breaking, evento de rap, ou evento de grafite. Os elementos que mais interagem entre si são o rap, grafite e DJ, porém o elemento bboying não recebe a valorização que merece, e é um tanto quanto esquecido pelos demais, pois na maioria dos campeonatos de breaking, os bboys nem sequer recebem água, tem que pagar pra competir, quando na verdade eles são a atração do evento, e deveriam ser tratados como tal. Todavia, duas críticas construtivas ao bboys/bgirls são: Acho que deveriam se profissionalizar mais, porque para ser tratado como profissional, deve-se agir como profissional. Viver da dança atualmente no Brasil pode parecer uma utopia para a maioria, mas por isso é preciso ver formas de se fortalecer e tornar sua arte rentável, se não para lucro, mas pelo menos para poder mante-la, para poder ir para campeonatos em outros estados/países. E procurar ser mais auto-suficientes, parar de esperar que os poucos produtores culturais façam por eles, e sim fazer por si próprios, se unir, e fazer com o que a cena breaking de PE seja mais autônoma e autosuficiente.
Ponte: E o grafite?
Lady Laay: Sobre o grafite, acho que a cena está cada vez mais em ascenção, grandes grafiteiros tem se profissionalizado a tal ponto que se tornaram produtores culturais conseguindo recursos pra realizar grandes festivais, a exemplo do Recifusion e Pão e Tinta, que promovem o fomento e ascensão da cena. Sobre ambos, e o hip-hop como um todo, acho que carecemos de maior apoio e incentivo dos orgãos e secretarias de cultura. Não que vamos depender totalmente do poder público, a ideia é ser auto-suficiente, porém isso é nosso por direito, e precisamos lutar para que o hip-hop seja tratado como grande patrimônio cultural que é, e que receba o devido reconhcimento e incentivo financeiro do poder público. Não se trata de mendigar apoio, e sim cobrar o que de fato nos pertence.
Ponte: Quais são os seus próximos passos na música? Vai ter algum lançamento em 2017?
Lady Laay: Estou trabalhando em duas músicas que são feats com dois mcs de SP: A primeira intitula-se Não se perca com Jô Maloupas (do grupo Odisseia das Flores) que abordaa sociedade doente e falso-moralista – os típicos cidadãos de bem que bostejam discurso de ódio e tem se tornado cada vez mais insanos, e a outra música chama-seTroco da Escória com TFlow MC (forte militante da causaLGBT no rap), que como o nome já diz é o troco daqueles que a sociedade trata como escória, é a nossa vez de falar.
Também estou participando de uma cypher com outros nomes do Rap PE (homens e mulheres), intitulada: ‘Xapakenti’, que conta com produção instrumental de NL Beats e Bobby Aus, e audiovisual (clipe) por Liohm Audiovisual (produtora idealizadora do projeto).
Em abril serei a convidada do mês do programa Rima Dela, projeto idealizado por Becca Vilaça, do coletivo SoulDiRua (coletivo feminino recifense) em parceria com o RND, que consiste numa matéria-vídeo de um freeverse e entrevista. E em breve sai um feat também com Mariáh Médici de Sergipe, e uma cypher com várias mulheres mcs de Pernambuco.
Confira o videoclipe de “DISSrespeito à mulher”: