Vítima de roubo diz ter reconhecido Victor Hugo ‘pelos olhos’, já que ladrões estavam encapuzados; escola afirma que, na noite do crime, jovem estava na sala de aula
Um reconhecimento feito por duas vítimas que afirmam ter visto apenas os olhos dos ladrões mascarados que assaltaram suas casas. Foi o que bastou para o Tribunal de Justiça de São Paulo colocar na cadeia o estudante Victor Hugo Campos Terkeli, 19 anos, acusado de roubo qualificado. Nesta quinta-feira (12/7), Victor completou um mês aprisionado no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Jundiaí, na Grande São Paulo.
Para a Polícia Civil e o Ministério Público Estadual, o estudante fazia parte de um grupo de quatro homens mascarados que, em 1º de março deste ano, às 20h30, invadiu e roubou duas casas no bairro do Caxambu, em Jundiaí. Uma das vítimas é uma juíza.
No horário do crime, Victor estava a 83 quilômetros dali, na escola estadual Professora Neusa Demétrio, na cidade de Taboão da Serra, onde cursa o terceiro ano do ensino médio — segundo uma declaração oficial assinada pelo diretor da escola e anexada ao processo pelo advogado da família. A Ponte conversou com o diretor da escola e confirmou a autenticidade do documento.
No mesmo dia do crime, antes de ir à escola, Victor havia passado todo o dia na confecção onde trabalha como auxiliar de produção. Entrou às 7h e saiu apenas às 17h40: os horários constam dos registros de ponto da confecção e de uma declaração na qual a empresa, além de confirmar os registros, ressalta que Victor “ao longo do seu contrato sempre manteve um bom comportamento profissional, competente, pontual e ética”.
Os documentos, porém, não foram levados em conta por nenhuma das autoridades responsáveis pela prisão de Victor: o delegado Carlos Eduardo Barbosa Soares, da DIG (Delegacia de Investigações Gerais) de Jundiaí, o promotor Jocimar Guimarães e a juíza Jane Rute Nalini Anderson. As autoridades preferiram se basear apenas no reconhecimento feito por três vítimas do roubo. As vítimas, porém, nunca viram o rosto de Victor.
Em depoimento à polícia, as vítimas contaram que os ladrões usaram toucas ninjas, roupas pretas e luvas durante todo o tempo nos assaltos. “Eu os reconheci pelos olhos”, disseram duas das testemunhas durante o reconhecimento na delegacia, a respeito tanto de Victor como de outros três suspeitos detidos pelos crimes: Miguel Azevedo Ramos, 29 anos, Alex Sandro Ferreira da Silva Catuaba, 38 anos, e o irmão de Victor, Tiago Campos Terkelli, 32 anos.
Antes de colocar os suspeitos diante das vítimas, a Polícia Civil pediu que fizessem uma descrição dos ladrões, como determina o artigo 226 do Código de Processo Penal sobre o reconhecimento pessoal. Duas das vítimas informaram apenas que os ladrões eram homens de estatura mediana. Uma terceira vítima foi um pouco mais detalhada, mencionando alturas aproximadas e cor da pele de três dos suspeitos.
‘Solta o inocente, seu juiz’
“Tenho certeza de que ele foi confundido. Estou indignado que um jovem trabalhador, sem passagem pela polícia, foi dormir inocente e acordou com a polícia o arrancando da cama como um criminoso”, afirma o pai de Victor, o marceneiro Miguel Terkeli, 56 anos. Segundo ele, o jovem é estudioso, tira boas notas na escola e “sonha em terminar o colegial para cursar direito”. Nas redes sociais, há várias publicações de protesto, de amigos e parentes indignados com a prisão de Victor. “Solta o inocente, seu juiz”, afirma um dos comentários.
Sobre o outro filho que está preso, Tiago, que já teve passagem pela polícia, Miguel Terkeli conta que “durante a adolescência quebrou um pouco a cara” e “deu um pouco de dor de cabeça”, mas prefere acreditar que também seja inocente. “Nos últimos anos o Tiago tem se esforçado para ter uma vida honesta. Trabalhou por dois anos comigo na marcenaria e nos últimos meses como servente de pedreiro para ganhar a vida. Veja só, acha que se tivesse uma vida de assaltos precisaria estar trabalhando de ajudante de pedreiro?”, pergunta.
Ouvido pela Ponte, o advogado criminalista Hugo Leonardo, vice-presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), afirma que o reconhecimento feito a partir dos olhos é “de uma fragilidade absurda”, levando em conta os disfarces usados pelos ladrões e os traumas do assalto. “Evidentemente, com esse nível de disfarce, combinado ao nervosismo da vítima, nós podemos esperar um critério irrisório de certeza no reconhecimento”, afirma. “Jamais isso deveria ser o suficiente para levá-los à prisão.”
Embora o reconhecimento feito durante a investigação policial tenha que ser confirmado ao longo do julgamento, Hugo afirma que as vítimas costumam manter suas impressões, já que guardam memórias negativas dos suspeitos a que foram apresentados na delegacia. “O problema é que o reconhecimento mal feito na fase de investigação pode nunca mais ser corrigido e invadir toda a reflexão criminal”, diz.
‘Como uma desembargadora não tem dinheiro?’
Na noite do crime, os ladrões invadiram inicialmente a residência de um casal, por volta das 20h30. A polícia acredita que entraram nessa casa por engano, já que, ao não encontrar a quantia em dinheiro que procuravam, perguntaram: “Como uma desembargadora não tem dinheiro?”. Segundo o depoimento do casal, os ladrões estavam em cinco. Saíram de lá levando uma caixa de joias e celulares. Minutos depois, chegaram à casa de uma juíza, na mesma rua.
Ali, renderam a juíza no momento em que ela chegava à residência em seu carro. Após entrar, a quadrilha agrediu o pai da juíza com coronhadas no peito e nas costas. Os bandidos passaram cerca de 40 minutos no local e fugiram no automóvel da vítima, levando joias, dinheiro, bebidas, celulares e um aparelho de tevê. Dois quilômetros adiante, abandonaram o automóvel incendiado. Em seu primeiro depoimento, no 3º DP de Jundiaí, a juíza e seus familiares contaram que os criminosos eram quatro e que “puderam ver apenas os olhos” dos ladrões, “dificultando assim a realização de um auto de reconhecimento fotográfico”.
Para chegar aos suspeitos, os investigadores da DIG de Jundiaí analisaram as chamadas telefônicas feitas à torre de celular mais próxima da casa da juíza, entre as 19h e 22h da noite do crime. Dentre todas as chamadas, selecionaram sete linhas telefônicas cadastradas em outros municípios. Uma dessas linhas estava registrada em nome de Miguel Terkeli, pai de Victor e Tiago. Como Tiago já tinha passagem pela polícia, os policiais suspeitaram dele. A partir dessa informação, mostraram fotos dos irmãos para as vítimas, que disseram ter reconhecido ambos “pelos olhos”.
Segundo a família, as ligações efetuadas naquela noite eram de Miguel e sua esposa, Vera, para o filho Tiago, que, na época, trabalhava em Jundiaí como servente de pedreiro. “Era um hábito, a gente se falava todo dia pra saber como ele estava, já que não estava aqui no Taboão”, conta Miguel.
Para Hugo Leonardo, do IDDD, a trajetória da investigação que levou aos dois irmãos é questionável. “A possibilidade da ausência de vínculo desses sujeitos com os fatos é total. Porque não necessariamente o sujeito que cometeu o crime pode ter usado celular, não necessariamente todas as pessoas que passaram por lá e fizeram ligações participaram do crime. Então, o pressuposto para levar ao reconhecimento é também bastante falho”, diz.
Também por meio da lista de telefonemas realizados nas imediações da casa da juíza, a Polícia Civil chegou aos outros dois suspeitos, Miguel Azevedo Ramos, com quem a polícia afirma ter encontrado um dos celulares roubados, e Alex Sandro Ferreira da Silva Catuaba. Ambos também foram alvo de reconhecimento fotográfico. Foi aí que o delegado assistente da DIG, Carlos Eduardo Barbosa Soares, pediu a prisão temporária dos quatro.
Reconhecimento
Em 12 de junho, às 7h da manhã, os irmãos Victor e Tiago foram acordados por policiais civis na porta de sua casa, em Taboão. Após a prisão, ele e os outros dois suspeitos passaram por um reconhecimento pessoal, diante de quatro das vítimas. Destas, três afirmaram ter reconhecido os suspeitos e uma admitiu que não tinha como reconhecer qualquer pessoa. Os quatro suspeitos foram apresentados para o reconhecimento juntos. Apenas um quinto homem, que não era suspeito, foi colocado entre eles. O Código de Processo Penal determina que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.
A advogada criminalista Maíra Pinheiro, ouvida pela Ponte, afirma que o reconhecimento dos quatro suspeitos pode ter sido prejudicado pela decisão da polícia de “levar um número de pessoas a serem reconhecidas tão próximo do número de suspeitos” e que as vítimas deveriam dizer “com quantos por cento ela acredita que tem certeza na identificação”. A advogada, contudo, admite que procedimentos assim raramente são seguidos no Brasil. “No Brasil, a produção de provas geralmente é de baixa confiabilidade”, diz. “A nossa jurisprudência é extremamente permissiva em relação ao reconhecimento.”
“Se a vítima não viu os autores, falsas memórias podem ser produzidas pelo trauma do crime. O reconhecimento pelo olho é uma prova de baixíssima confiabilidade”, afirma Maíra. Ela aponta que a produção de provas apresentada pela polícia foi de baixa qualidade. “A defesa trouxe documento de fé pública, superior a da acusação, que não pode prevalecer neste caso.”
Para a criminalista, a posição social de uma das vítimas pode ter influenciado na qualidade da investigação. “O fato de a vítima ser juíza pode ter provocado uma celeridade e feito a polícia prender os primeiros suspeitos para mostrar resultados.”
Após o reconhecimento pessoal, a juíza Jane Rute Nalini Anderson, da 3ª Vara Criminal de Jundiaí, converteu a prisão temporária dos réus em preventiva. Em 21 de junho, o promotor Jocimar Guimarães, do Ministério Público Estadual, denunciou os quatro réus por roubo qualificado.
A defesa contesta a prisão dos irmãos Terdelli. Para o advogado da família, Wilson Brito da Luz Junior, manter os irmãos detidos é um “ato de constrangimento ilegal somado ao abuso de autoridade”, já que não havia motivo para a prisão cautelar (sem condenação), considerando que ambos foram identificados e possuem moradia fixa.
O pai diz que toda a família está envolvida e unida e que ele já nem consegue trabalhar há dias. A família tem esperança. “Será a nossa maior alegria ver nossos filhos com liberdade”, afirma Miguel.
O que diz o Estado
Procurados, a Secretaria de Segurança Pública do governo Márcio França (PSB), o Ministério Público de São Paulo e o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmaram, por meio de suas assessorias de imprensa, que não poderiam comentar o caso, por estar em segredo de justiça.
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