Reconhecido por foto 3×4, Alexandre está preso há seis meses acusado por crime cometido quando ele estaria em casa

Acusado de participar de um latrocínio, carregador negro foi preso no dia 31 de agosto do ano passado após um reconhecimento irregular; para especialista, não há elemento que o coloque na cena e no momento do crime

Alexandre dos Santos, 33, trabalha como carregador e é pai de duas crianças. | Foto: arquivo pessoal

Era o início da tarde do dia 31 de agosto de 2021 quando um oficial de justiça bateu na porta da casa de Alexandre do Santos, homem negro de 33 anos que trabalha com carga e descarga de caminhão, para informar sobre um boletim de ocorrência em seu nome. O carregador, que estava com seus dois filhos de 2 e 8 anos, foi pego de surpresa com a acusação de ter participado de um latrocínio (roubo seguido de morte) a 15 km de sua residência, na Travessa Alfredo Bastos, zona leste de São Paulo, no dia 22 de junho.

A auxiliar de limpeza e esposa de Alexandre, Ana Carolina Barbosa dos Santos, 29, relata à Ponte que, naquele dia, policiais militares ofereceram ao marido que pagasse R$ 400 ou que prestasse serviços comunitários para ele não ser levado à delegacia. Ao negar as propostas, o carregador disse que não tinha envolvimento com o caso e aceitou ir até o 55º DP (Parque São Rafael), onde eram conduzidas as investigações. “Ele foi, minha mãe pegou uma calça para ele, um tênis e as crianças já começaram a chorar. Ela falou: ‘o pai já vem, só vai ali falar com os policiais, já vem’. E nisso ele não voltou mais”, detalha.

Passados mais de seis meses, Alexandre segue preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Guarulhos I, na Grande São Paulo. Ele e outras duas pessoas, Tiago Martins de Lima e Milena Novais Silva, apontados como suspeitos de participarem de uma “quadrilha do Pix”, foram alvos de um reconhecimento fotográfico, que não seguiu os procedimentos previstos no artigo 226 do Código de Processo Penal. A investigação policial, no entanto, não explica a origem da foto 3×4 de Alexandre, que segundo a família é um registro antigo, e de que forma ele se tornou suspeito pelo crime.

Imagem 3×4 de Alexandre anexada nos autos do processo. | Foto: Reprodução

Provas inconsistentes

De acordo com o boletim de ocorrência, registrado no 49º DP (São Mateus) e assinado pelo delegado Thiago Hideo Maebara, duas vítimas disseram que elas e mais duas pessoas da mesma família foram até a Trevessa Alfredo Bastos, por voltas das 21h30 do dia 22 de junho, a fim de comprar um veículo Fiat Palio Weekend que estava anunciado em uma página do Facebook. Quando chegaram a casa da suposta vendedora, foram surpreendidos por três assaltantes, que vieram do outro lado da rua – um deles armado com um revólver calibre .38, da Taurus – e exigiram celulares e carteiras.

Além disso, os criminosos também perguntaram sobre a pessoa que buscava o veículo e exigiu que ela fizesse uma transferência via Pix, se não levariam seu carro. Nesse momento, uma das vítimas relata que seu pai chegou a reagir e foi atingido por disparos. Seu marido também foi baleado ao partir para cima dos assaltantes, que fugiram em seguida levando celulares, cartão bancário e dinheiro, mas deixaram a arma e um celular modelo Samsung que foram apreendidos pela polícia. Ambas as vítimas baleadas foram socorridas, mas chegaram sem vida ao hospital.

Segundo o processo, vinte e seis dias depois, as vítimas que registraram a ocorrência apontaram em auto de reconhecimento fotográfico que Alexandre seria o suspeito que teria deixado o celular Samsung cair, que Tiago seria quem portava a arma e que Milena seria a terceira suspeita que fez uma revista.

O relatório final da investigação da Polícia Civil, assinado pelo delegado José Francisco Rodrigues Filho, somente apontou depoimentos colhidos na região e os reconhecimentos como provas, sem apresentar perícia do celular e da arma deixados no local do crime. Mesmo assim, o promotor Guilherme Peruchi se manifestou a favor da prisão preventiva dos três, que foi decretada pela juíza Thais Fortunato Bim, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), no dia 5 de agosto de 2021.

À Ponte, Nathalie Guimarães, advogada de defesa de Alexandre, conta que a polícia até então só tinha pedido a perícia papiloscópica (que identifica digitais) do local e dos objetos apreendidos, sem que fosse enviado o celular ao Instituto de Criminalística (IC) para averiguar o seu conteúdo. “No dia da audiência [em setembro], as vítimas falaram que o celular que foi encontrado no local dos fatos estava ligado e que a todo momento tocava e subia notificações do WhatsApp. Esse celular foi deslacrado no 55º DP, como informado no processo, para eles procurassem alguma pista que chegasse aos criminosos. Depois, eles lacraram de novo, informando para o juízo que eles não conseguiram nenhuma informação dentro do celular porque estava bloqueado”, afirma.

A advogada explica que pediu a perícia dos aparelhos do próprio Alexandre, modelo LG K10, e naquele da cena do crime, modelo Samsung, para mostrar que o chip não estava cadastrado no nome do carregador. O IC concluiu que não seria possível realizar perícia no modelo Samsung pois o celular estava formatado, ou seja, com todos os dados apagados.

“Queríamos a perícia para que fosse mostrada a localização do celular do Alexandre na timeline do Google. A polícia criou uma série de imbróglios para poder enviar esse celular para a perícia logo. A perícia ficou disponível no dia 17 de dezembro e eles só foram retirar o laudo no dia 7 de janeiro, mas informaram no processo que somente tiveram acesso no dia 20. Mesmo com o resultado, eles ficaram requerendo prazo para a juíza para deslacrar o aparelho e ver se tinha alguma coisa lá dentro”, detalha.

O laudo pericial apontou que Alexandre saiu do trabalho como havia informado e estava na rua da casa dele no momento do roubo. “Ainda assim, a polícia fez uma declaração inusitada nos autos do processo dizendo que eles tinham certeza de que o Alexandre era culpado, mesmo que a tese e as evidências que eles tentaram formar no inquérito policial tenham sido derrubadas em forma de cascata”, destaca. Além disso, em reconhecimento pessoal feito na audiência, uma das vítimas disse que nunca tinha visto Alexandre e informou que o assaltante que deixou o celular seria uma pessoa magra, de pele branca e tinha orelha grande e de abano, características diferentes do carregador.

Reconhecimento irregular

A advogada criminalista Débora Roque, integrante da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, que analisou o processo a pedido da reportagem, indica que o reconhecimento fotográfico foi feito de forma irregular por não ter apresentado Alexandre pessoalmente com pessoas de características semelhantes. “O reconhecimento fotográfico é um procedimento questionável já que ao ter contato com fotos antes do reconhecimento formal e legal, as vítimas podem ser influenciadas”, ressalta.

“Uma foto de repente apareceu, a vítima por qualquer motivo reconheceu e para além desse fato não há mais nada que coloque ele na cena e no momento do crime”. Segundo a advogada, a gravidade da ocorrência – com duplo homicídio – exigia uma investigação mais rigorosa por parte da Polícia Civil. Ela também diz que cabe ao juiz verificar a falta de reponsabilidade com os prazos, seja um problema com a defesa ou a acusação.

“Infelizmente, vivemos em um momento em que a sociedade busca punição. Há sim uma seletividade sobre quem são os ‘punidos’ e não tem como falar sobre esse assunto sem falar de racismo e preconceito, sobre classe social. Estamos assistindo os verdadeiros autores dos crimes se livrarem de suas responsabilidades e isso não é justiça. É esse pensamento que precisa ser inserido em nossa consciência, e principalmente na consciência de quem atua no sistema de justiça”, evidencia.

Família abalada emocionalmente

Ana Carolina afirma que, no dia do roubo, o marido trabalhou normalmente e voltou para casa, onde ficou conversando com um colega no portão como costumava fazer no dia a dia. O casal está junto há 15 anos e a ausência de Alexandre desencadeou uma série de traumas na família. Ela afirma que Alexandre tem chorado bastante e pedido apoio para dar visibilidade ao caso. “Ele sempre foi um pai muito presente, todos que conhecem ele aqui na rua pode falar isso. Fazia festinha, ia na escola”, conta.

“Hoje, eu faço acompanhamento com psiquiatra, tomo calmante pois tive muita ansiedade. E as crianças também que viram tudo. Meu menino de 8 anos ficou estressado, nervoso e cheguei a levá-lo para conversar com psicólogo. Agora ele está melhor porque converso com ele, que me pergunta: ‘quando o papai vem, mãe? Quando posso ir ver ele?”, relata.

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Cintia dos Santos Moura, 28, corretora e irmã de Alexandre, acredita que o irmão é vítima de uma série de injustiças: “A gente sabe que não foi meu irmão, mas estamos encontrando muita dificuldade porque o Ministério Público e a polícia estão empenhados, de qualquer forma, a ferrar o meu irmão. Ele é uma pessoa direita, tem família”, lamenta. Segundo ela, Alexandre já pensou em tirar a própria vida dentro do CDP. “Meu irmão mandou uma carta dizendo que passou a semana inteira comendo comida podre”.

A família agora aguarda uma manifestação favorável da juíza na sentença e deve entrar com uma denúncia na Corregedoria da Polícia para pedir apuração da conduta dos policiais civis do 55º DP.

O que diz a polícia

Ponte questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) sobre o reconhecimento fotográfico feito com o Alexandre e como a investigação explica o aparelho dos assaltantes ter chegado formato à polícia. A pasta encaminhou a seguinte nota:

“O caso foi investigado pelo 55º DP, por meio de inquérito policial já concluído e relatado
ao Poder Judiciário.”

Também solicitamos entrevista com o policial civil Renato Granai, responsável pela investigação, e com o delegado Jose Francisco Rodrigues Filho, do 55º DP, mas não obtivemos resposta.

O que diz o Ministério Público

Procurado pela reportagem e questionado pelo reconhecimento não ter seguido os procedimentos previstos pelo Código de Processo Penal, o Ministério Público afirmou que se manifestou nos autos do processo.

O que diz a Justiça

Já o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que “não emite nota sobre questões jurisdicionais. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente.”

Correção: matéria atualizada às 21h40 para corrigir a informação sobre a data do reconhecimento, que aconteceu 26 dias depois do crime e não seis como dito anteriormente.

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