“Reescreveram a minha vida, mas eu não pude escrevê-la”, conta vítima do Césio 137 em GO

    Loudes das Neves conta como conseguiu sobreviver à dor provocada pela radioatividade em Goiânia, ocorrida em 1987

    Não podemos esquecer jamais de setembro de 1987. Há 30 anos, ocorreu em Goiânia o maior acidente radioativo fora de uma usina nuclear, o caso do Césio 137. Sempre é preciso trazer à discussão o poder devastador do descuido com a energia nuclear e, no caso da tragédia azul, como é costumeiramente denominado o drama vivenciado por Goiás, que ficou sitiado pelo preconceito e medo, a falta de preparo com o trato com a radioatividade.

    Dois jovens carregaram de um prédio em escombros parte de um aparelho de raio-x contendo o elemento químico. Eles venderam o equipamento a um ferro-velho, cujo dono, Devair Ferreira, se deslumbrou com o brilho azul que emanava do pó que insurgia de um pedaço da peça, chamada de “marmita”.

    Devair espalhou o pó entre a família, vizinhança e amigos. Ainda não há consenso para o número de vítimas, mas 530 pessoas recebem pensões do Estado de Goiás, cerca de R$750, e 250 recebem benefícios do Governo Federal. Destas, 130 recebem os dois benefícios. Os valores são, contudo, insuficientes para que banquem as medicações necessárias. A maioria não consegue trabalhar devido aos efeitos das doenças que surgiram quando tiveram contato com a radiação.

    A Ponte entrevistou Lourdes das Neves Ferreira, mãe de Leide das Neves, que morreu no Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. A menina é considerada a pessoa que mais tempo sobreviveu à radiação. Depois de o pai, Ivo Ferreira, irmão de Devair, ter levado um pouco de Césio 137 para casa e dado para a menina brincar, Leide, sem lavar as mãos no jantar, comeu um ovo. Na mesma noite teria os primeiros sintomas da radiação, mas que persistiria durante dias.

    Após três décadas, ela segue morando na capital goiana | Foto: Anne Ribeiro

    A tia de Leide, Maria Gabriela Ferreira, mulher de Devair, percebeu que todos da redondeza no Centro de Goiânia, estavam com sintomas parecidos. Ela deduziu que poderia ter alguma coisa a ver com aquela coisa que o marido passou a endeusar, carregando para todos os cantos e deixando próximo à cortina da sala. Decidiu levar o objeto para a Vigilância Sanitária.

    Tão logo soube do ocorrido, o Estado isolou áreas, levou contaminados para o Estádio Olímpico. O doloroso processo de isolamento e descontaminação não pôde ser esquecido pelas vítimas, sobretudo Lourdes das Neves. Foi em frente ao Estádio Serra Dourada que viu a filha Leide pela última vez viva. Dias depois, a menina foi enterrada sob enorme protesto em Goiânia, em um caixão de chumbo.

    Leia a entrevista completa:

    Como a sra. reescreveria sua vida?
    Apagaria o acidente de minha vida e retomaria a vida anterior. Eu voltaria, deste modo, ao que era antes. Reescreveram a minha vida, mas eu mesma não pude escrevê-la.

    Além da sua casa, na Rua 26-A, no Setor Aeroporto, o que mais foi concretado em sua vida?
    Minha vida toda. Toda. Minha identidade. Tudo.

    O que sobrou daquilo que a sra. tinha em 1987?
    Sobraram meus dois filhos e, por intermédio de minha filha, vieram meus netos e bisnetos. Só.

    Qual o maior sonho da sra.?
    Que meus netos e bisnetos sejam pessoas de bem.

    Se pudesse rever Leide das Neves e falar com ela, o que diria?
    Diria que me faz muita falta. [Lourdes silencia-se, como se estivesse ausente.] O que eu sou hoje, agradeço muito a ela. Iria relembrar tudo de bom que vivi com ela… [mais silêncio].

    Qual a maior mentira que já ouviu sobre o césio 137 e o acidente?
    São muitas. A Leide tinha 6 anos. Naquela época as crianças só iam para o colégio depois dos 7 anos, a não ser que fosse escolinha particular. Alguma coisa me dizia que ia acontecer algo muito ruim, por isso queria curtir a Leide o máximo. Os vizinhos falavam para eu colocá-la na escola, porque achavam que era muito inteligente. Mas eu queria curtir minha filha. Quando ela fosse para o colégio, não ia curtir tanto. Todo final de semana, pagava as fotografias que eu tirava dela. Queria registrar tudo. A Sueli [Lina Morais, presidente da Associação das Vítimas do Césio 137] me contou que tinha uma mulher que queria minha ajuda, porque a filha dela tinha estudado com a Leide e ela queria assistência igual a nossa. Pura mentira. Vizinhos falavam que brincavam com a Leide e vieram pedir ajuda para ter pensão. Isso não aconteceu.

    Tentam usar a Leide das Neves…
    Infelizmente, o que me deixa muito triste.

    Como a sra. curtia a Leide das Neves?
    A gente viajava, ia para Anápolis. Passeava, fazia as coisas que ela gostava. Levava-a ao Zoológico, à Pecuária, festas da Praça Cívica no final do ano.

    Lourdes guarda foto em que mostra retrato de Leide das Neves, sua filha, uma das vítimas fatais do Césio | Foto: Anne Ribeiro

    O que faltou contar sobre a sua vida?
    Meio retorcido, mas acho que falaram tudo.

    “Retorcido” em que sentido?
    Até dois ou três anos depois do acidente, saía matéria em jornal “informando” que a Leide era filha do Devair. Devair é tio, irmão do Ivo, meu marido e pai da Leide. Um dia, estava limpando o túmulo da Leide. Ele é muito visitado. Chegou uma turma. Um homem apontou para o túmulo e falou: “Olha, esse daqui é da menininha e aquele dali da mãe dela, a Maria Gabriela”. Aquele momento era meu. Eu estava curtindo a Leide. Fiquei calada. Tem a história de que a Leide comeu pão com ovo. Foi só ovo. Um dia teve uma palestra no colégio de uma das minhas netas. E se tem uma coisa que elas têm medo é de que na escola saibam que são filhas de vítima do acidente. Uma delas estava sentada no cantinho, lá no fundo. A diretora da escola disse que a Leide comeu uma banana com uma mão suja de césio. Ela chegou em casa chorando, mas não teve coragem de corrigir. Isso tem muito tempo, mas é um exemplo.

    Suas netas e bisnetas não são reconhecidas como vítimas, mas sofrem o impacto até hoje do acidente.
    Minha filha é do Grupo 3 e recebe apenas uma das pensões. A do governo federal. Recebia medicação na Fundação, agora é o Cara [Centro de Assistência aos Radioacidentados]. Só temos os médicos, que são muito bons, os carros que buscam a gente. Remédio não dão mais. Como o dinheiro das duas pensões que recebo não dá, a gente fica sem.

    Hoje a senhora está sem remédio?
    Eu deveria tomar seis medicações de uso contínuo. Estou com duas.

    Quais são as consequências disso?
    Não sei.

    O que os médicos explicam?
    Um cardiologista diz que preciso comprar porque se trata de um “investimento”. Mas eu não tenho condições.

    Como a sra. sobreviveu às dores e à descontaminação? E como ficou ao ver sua filha sendo levada para longe, depois sendo enterrada, e tendo de lutar por justiça e, agora, ficar sem medicamentos?
    Milagre de Deus. Muita força que a Leide me dá.

    Qual sua relação com a história da Leide das Neves?
    É uma força espiritual.

    Acredita piamente nisso?
    Acredito muito. Às vezes estou lá no fundo do poço, mas, de repente, me lembro dela. Penso: ela está segurando minhas mãos, Deus está comigo. Eu vou em frente, não vou fraquejar.

    O que passa pelo seu coração quando sabe que o túmulo da Leide das Neves é visitado até hoje?
    No início, pelo menos, foi muito complicado para mim; hoje, entendo. Quase não gosto de comentar isso. É a primeira vez que falo disso para um jornalista. Tem gente que acha que quero tirar proveito. Comentei com amigos apenas. Alguns criticam a gente, não acreditam. Nas primeiras semanas depois da Leide morrer, eu estava isolada no prédio da Febem e uma pessoa me ligou e disse que me acompanhava pela televisão e me achava uma pessoa muito simples, muito humilde. Um homem queria me contar o que tinha acontecido com ele e tinha medo de eu mudar o meu jeito de ser. Mesmo assim, ia me contar, mas eu tinha de continuar sendo humilde. Ele teve um problema de saúde muito sério na família e pediu para a Leide ajudá-lo. Não lembro, porque eu vivia dopada de remédio se era filha ou mulher dele. Ele se apegou com a Leide para que a enfermaria fosse tirada. Eu sei que ela foi curada. Foi o que ele disse. Depois teve outra história que envolve uma mulher e minha irmã Odete. Somos irmãs apenas de parte de mãe. Ela é negona. O Ivo passou o papel sujo do pó de césio no pescoço dela. E o Ivo disse que, quando o Kardec, o marido dela, chegasse, iria encontrá-la no escuro porque estaria brilhando. A mulher perguntou o que era aquela mancha no pescoço dela. Minha irmã contou sobre o acidente e a mulher começou a chorar. Ela disse para a minha irmã que seu maior sonho era me conhecer.

    Por quê?
    O médico falou que ela não podia engravidar. A sra. apegou-se à Leide. Ela disse que se ficasse grávida e, nascesse uma criança saudável, seu nome seria Leide. Então, nasceu uma menina. O pai, japonês, morava no Japão. Ela colocou o nome de Leide Yuri no bebê. Eu fazia unha com uma jovem que falava de maneira fanhosa: “A mulher do japonês está ‘doidinha’ para conhecê-la. Ela é chique, tem dinheiro”. Eu nem imaginava que era a mulher que havia se encontrado com minha irmã. O salão era pequeno e um dia eu estava sentada e entrou uma menina bonita, dona de um cabelão, e foi diretor padra o espelho. Ela virava e mexia o cabelo. A mãe começou a dizer: “Leide Yuri, você derruba o espelho!” A manicure me disse: “É a mulher que quer conhecê-la”. E me apresentou: “Esta é a Lourdes, a mãe da Leidinha”. A mulher me abraçava e chorava. Quando se acalmou, me contou a história. E a menina continuava se observando no espeço — igualzinha a Leide. A sra. tinha todas as reportagens que contavam a minha história.

    Em tratamento contra efeitos da radioatividade, Lourdes tem de tomar seis medicamentos, porém pensão do Governo Federal banca apenas duas | Foto: Anne Ribeiro

    Por que a senhora decidiu contar?
    Preciso contar. Mesmo que tenha quem critique a gente. A mulher chamou a menina para me cumprimentar. Ela me falou: “Do jeitinho que você fala que a Leide era, a Leide Yuri também é. Inteligente, muito vaidosa”. Durante anos ela me ligava, cada degrau que a menina subia fazia questão de me contar. Morou aqui pertinho. Vinha aqui em casa. Ela morreu em 2016. A menina é formada em Biomedicina. Ela falava: “Te agradeço, sua filha deu muita inteligência para a minha filha”.

    Isso é algo normal para a sra.?
    Eu paro e penso: eu, uma pecadora… não sabia conduzir, viver.

    A sra. estaria considerando Leide das Neves como uma “santa”?
    Penso que sim. Nem gosto de comentar, mas é isso. Eu sou católica, às vezes vou à missa.

    A sra. já contou esta história para um padre?
    Ainda não. Talvez fosse bom para eu ter uma ajuda, entender.

    E se a história chegar ao papa Francisco?
    Fico emocionada só de pensar que o papa Francisco pode ficar sabendo disso algum dia. Eu pediria a ele para enviar uma mensagem para nós. Lembro-me o dia em que o papa João Paulo 2º desceu no Aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia, e abençoou as vítimas do césio no Estádio Serra Dourada.

    Como a sra. recebeu a bênção do papa João Paulo 2º?
    Foi demais. Quase derreti de chorar. Eu acompanhava pela televisão. Era tanta gente que nem conseguiria chegar perto dele.

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