Refletindo a Liberdade | Emerson Ferreira: do cárcere à faculdade de Psicologia

Série da ONG Reflexões da Liberdade traz depoimentos de pessoas que passaram pelo sistema carcerário brasileiro; fundador abre a série explicando a importância de ouvir as vozes de quem viveu essa realidade

Emerson Ferreira, de detento a fundador da ONG Reflexões da Liberdade | Foto: Arquivo pessoal

Nunca imaginei que fosse ser preso, mas aconteceu. Me chamo Emerson Ferreira, tenho 34 anos. Aos 19, num momento em que estava conhecendo vários dos significados de liberdade, veio a minha prisão. 

Fui condenado a 8 anos por tráfico de drogas. Pensa bem: entrei quase adolescente e passei bons anos da fase adulta atrás das grades. A prisão transforma vidas para muito pior — essa é a regra. Poucos conseguem sair desse limbo, pois quando ganham liberdade estão completamente manchados, marcados por aquela experiência. Para a sociedade, não servem mais. O índice de reincidência é maior que 40%, segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Sem falar no que significa experimentar a prisão. Qualquer pessoa que já tenha visto uma amostra do que é o cárcere, sabe que essa instituição não serve para ressocializar.

Hoje sou psicólogo, membro do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo, além de diretor do Reflexões da Liberdade, ONG dedicada a fazer com que a sociedade repense as causas e consequências do encarceramento em massa. Nos últimos anos, me dediquei a falar e mostrar como é o sistema carcerário e quais os efeitos da vida pós-prisão. Em 2015 me juntei à Rede Justiça Criminal e fizemos um vídeo em realidade virtual, em que o cenário era uma cela superlotada. 

Fizemos algumas intervenções públicas. Uma delas aconteceu no Conjunto Nacional, na Av. Paulista. Eu representava o personagem principal da campanha, o responsável por passar a mensagem àqueles que assistiam. Ao fim da exibição, tive oportunidade de me apresentar ao público e pude falar da minha experiência. Acredito que muitos se surpreenderam de ver alguém sair vivo daquele lugar e com um discurso e modo de vida semelhantes aos deles, pessoas comuns. Imagina: ninguém gosta de se identificar com uma pessoa que fomos treinados a odiar. Só que às vezes isso foge ao nosso controle.

Nem sempre minha vida teve essa aposta na leitura e na educação. Isso surgiu recentemente. Durante a prisão para ser mais exato. Como muitos outros lá dentro, tive uma infância difícil.

Aos 8 anos, comecei trabalhar para ajudar minha mãe com as responsabilidades de casa. Meu pai gastava o dinheiro com álcool e em caça-níqueis. Trabalhei até os 16, e tive meu primeiro registro em carteira com 14 como garçom. Cheguei a trabalhar 10 horas por dia para ganhar R$ 550. Via esse dinheiro ser gasto em minutos pelos clientes que atendia. Desigualdade escandalosa.

Com 16, comecei a frequentar baladas e percebi que ali era possível complementar a renda para não gastar o que ganhava servindo mesas. Comecei no pequeno tráfico em festas e isso foi se tornando mais e mais uma coisa fixa. Cheguei ao ponto de fazer daquele o meu único trabalho. Três anos depois, fui preso.

Na prisão, percebi  que poderia permanecer na vida do crime. Se tornaria hábito entrar e sair da prisão. Escutei daqueles que ocupavam o topo na hierarquia do crime que, se pudessem, teriam feito diferente, que, se tivessem a mesma idade que eu, teriam feito outras escolhas. 

Foi então que decidi pôr um ponto final e recomeçar minha vida investindo na minha educação. Percebi que, na história da minha família, ninguém tinha entrado na universidade, mas vários passaram pelo cárcere. 

Meu objetivo era sair da prisão e entrar no ensino superior. Finalmente, em 2012, eu saí e comecei uma nova jornada, dessa vez na sala de aula de uma faculdade. Estudei Psicologia e segui, a cada ano, vencendo os desafios- o maior deles foi ter superado a prisão. Em liberdade, era tudo uma questão de constância e compromisso comigo mesmo.

Em 2017, decidi criar uma organização, Reflexões da Liberdade, que apoia o egresso e dá ferramentas para que ele possa se reestruturar e ampliar sua visão de mundo. Hoje, temos psicólogos, assistentes sociais e advogados na equipe. Distribuímos cestas de alimentos e estamos começando a oferecer qualificações profissionais.

Fundar o Reflexões foi uma maneira de contribuir não apenas para a sociedade, mas um gesto especial de agradecimento à minha família. Por muito tempo, senti culpa. Me senti egoísta por não ter feito mais pelos meus pais ou não devolver aquilo que fizeram por mim. Não reconheci que eles trocaram a liberdade deles, tanto suor e trabalho, para que eu e minha irmã tivéssemos o que comer, o que vestir e aonde morar. Não reconheci que eles entregaram para mim algo melhor do que eles receberam dos meus avós, pois a vida deles foi mais difícil do que a minha. Essa é a tal da “intergeracionalidade”. Para alguns,  é passada a certeza da entrada na universidade e do desenvolvimento pleno. Para outros, é miséria e até mesmo, o cárcere.

Criar a ONG é justamente ajudar a dar consciência da vida antes, durante e depois da prisão. É uma organização que pensa a inovação no sistema de Justiça, que sonha com o progresso coletivo e a dignidade do maior número de pessoas.

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Em parceria com a Ponte Jornalismo, decidimos contar outros relatos de pessoas que passaram pelo sistema carcerário, o que os levou até ali e suas dificuldades no momento seguinte, o de liberdade.

A série Refletindo a Liberdade é uma produção da ONG Reflexões da Liberdade, que, desde 2017, gera impacto social fazendo com que a sociedade repense os processos que enchem as prisões, ressignificando os territórios e desenvolvendo a comunidade para que reivindiquem a vivência das políticas públicas. A série traz os depoimentos de 5 egressos com diferentes histórias de vida, e será publicada ao longo desta semana, até o dia 24/3.

Entrevistas e depoimentos por Humberto Maruchel Tozze e edição por Thiago Ansel

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