Clément Voule esteve no país durante 12 dias e verificou uma série de problemas para os direitos humanos: “há uma geração inteira de garotos negros que foram equivocadamente assassinados pela polícia”
O relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos à liberdade de reunião pacífica e de associação, Clément Voule, foi enfático ao dizer, em coletiva de imprensa na tarde desta sexta-feira (8/4), que a guerra às drogas serve como justificativa para as forças de segurança brasileiras matarem jovens negros em comunidades periféricas.
O representante das Nações Unidas esteve durante 12 dias no país visitando Salvador, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Além da violência policial, Voule demonstrou preocupação em relação à violência política contra parlamentares negras – citando o caso Marielle Franco e Anderson Gomes –, o desmonte dos conselhos de participação popular de diferentes setores como meio ambiente e a causa agrária, a falta de credibilidade do Judiciário frente à população e as incertezas geradas diante o processo eleitoral deste ano.
“Estou impressionado com a sociedade civil robusta, ativa e diversificada no Brasil, que tem desempenhado um papel crítico na luta pela justiça social, para preservar a democracia e o estado de direito, e, mais recentemente, para combater a Covid-19. Por outro lado, estou chocado com níveis de violência contra defensores de direitos humanos, comunidades tradicionais, incluindo quilombolas e povos indígenas, bem como líderes comunitários nas favelas, motivado por fatores estruturais como o racismo”, destacou Clément Voule.
Na próxima segunda-feira (11/4), será lançado um relatório prévio com as principais observações feitas por Voule, junto com recomendações ao governo brasileiro para melhorar a defesa dos direitos humanos e garantias da para liberdade de reunião pacífica e de associação. Um documento completo sobre a visita do relator ao Brasil será publicado apenas no próximo ano.
O observador da ONU lembrou dos cerca de 20 projetos de lei no Congresso Nacional, criados sob o pretexto de fortalecer a segurança nacional e a luta contra o terrorismo, em especial os PLs 1595/19 [do deputado Major Vitor Hugo (PL-GO)], 272/16 [do senador Lasier Martins (Podemos-RS)] e 732/2022 [proposto pelo executivo federal], que, se aprovados, irão criminalizar as atividades dos movimentos sociais. Ele pediu ao governo que altere os projetos de lei de acordo com padrões internacionais.
“Eu percebi que os projetos de lei antiterrorismo estão passando por mudanças de definição. Foi muito difícil pra mim, ao sentar com muitas lideranças, entender a preocupação e o risco que o Brasil enfrenta. A maioria das autoridades disseram claramente que o Brasil não é alvo de ataques terroristas. Isso resume que o objetivo de ampliar essa legislação é criminalizar os movimentos sociais”, destacou Voule.
Guerra às drogas e violência policial
Segundo o relator da ONU, o Brasil precisa urgentemente extinguir sua política de combate ao tráfico de drogas que, de acordo com ele, não vem sendo eficiente e está sendo usada pelas forças policiais como justificativa para o alto número de mortes em ações dentro de comunidades pobres do país. Uma das saídas dadas por Clément Voule para o problema das drogas seria a descriminalização.
“O protocolo de luta contra às drogas no Brasil está defasado. Eu diria que 80% dos casos de injustiça que eu encontro nesse país são sempre justificados pela guerra às drogas. É importante que seja revisado esse padrão de combate ao tráfico para garantir que não seja usado pela polícia para reprimir especialmente jovens negros. Há uma geração inteira de garotos negros que foram equivocadamente assassinados”.
A falta de clareza da lei de drogas do Brasil, que não determina qual é quantidade mínima de substância que diferencia o usuário de um traficante é um dos pontos que levam o país a criminalizar que apenas faz uso recreativo de entorpecentes, principalmente se essa pessoa for negra e viver em um território periférico, destaca Voule.
“Qualquer jovem negro que está segurando um beque, e esse jovem sendo criminalizado, preso e até assassinado, é completamente equivocado. Em muitos países há processos de descriminalização que garantem que os usuários tenham acesso à saúde pública que os ajude a tratar da dependência. Temos a diminuição no consumo de drogas nos países que descriminalizaram”, defende o relator da ONU.
Impunidade e Justiça falha
Uma das questões apontadas por Clément Voule como consequência do ciclo de violência contra os mais pobres no Brasil é a falta de confiança no sistema de justiça. Ele afirma que o caso da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes são um exemplo de como os mecanismos do judiciário são lentos e muitas vezes ineficazes.
“Uma pessoa vê o caso da Marielle Franco, que era uma política combativa e defendia os interesses do seu território, e mesmo assim estamos há quatro anos sem saber quem foram os mandates do assassinato. Essa mesma pessoa que não tem nenhuma visibilidade não vai acreditar que algum caso de violência acontecido na família dela também vá se resolver de forma rápida e justa”.
O relator da ONU informou que conversou com policiais para tentar entender o porquê da alta letalidade nas ações dos agentes do Estado e percebeu que o que falta nas corporações é um protocolo unificado do sobre a forma de atuar dentro dos territórios periféricos. Para ele, é preciso pensar urgentemente em um método único de trabalho de todas as polícias do país.
“Eu perguntei para todos qual era protocolo unificado para uso da força policial. A verdade é que eu não consegui acessar nenhum protocolo. Me disseram que existiam regras internas, mas cadê o protocolo escrito? Uma das minhas recomendações é que o Estado precisa ter esse protocolo unificado que esteja de acordo com os padrões internacionais e que possa garantir o direito fundamental de proteção do cidadão”.