Parlamentar de Curitiba (PR) está passando por processo de cassação por falta de decoro após manifestação dentro de igreja: “de que lado Jesus estaria?”, pergunta
Renato Freitas (PT), de Curitiba (PR), está acostumado a ser uma presença incômoda em espaços que até pouco tempo não eram reservados a ele. Seja na Universidade Federal do Paraná, onde cursou duas graduações e um mestrado, ou na Câmara de Vereadores de Curitiba, onde exerce o seu primeiro mandato parlamentar, depois de disputar três eleições.
Recentemente, imagens do vereador, de 38 anos, liderando uma manifestação dentro de uma igreja pedindo para que pessoas negras deixem de morrer de forma violenta no país acabaram viralizando nas redes sociais. Pelo episódio, Freitas está sofrendo um processo de cassação que, se for efetivado, será a primeira vez que um membro do parlamento municipal de Curitiba perderá o seu mandato, mesmo após a publicação de uma carta da própria Arquidiocese de Curitiba se manifestando contra o processo.
Para quem conheceu o pai quando este ainda estava preso, perdeu um irmão de forma violenta e foi alvo de pelo menos 15 abordagens policiais truculentas, parte delas já quando parlamentar, esse é mais um momento de desafio na vida de alguém que chegou na política através do rap. Mesmo sentindo-se abandonado por parte daqueles com quem ele deveria contar, Renato encontra forças para encarar essa fase na filha recèm nascida.
Ponte – Como começou seu interesse por política?
Renato Freitas- Eu sempre fui conectado, tá ligado? Só que sem saber que era política, sem saber que era o que era um partido. Eu não sabia nada. Mas o rap foi uma bússola para mim desde criança. Eu sou de 1983, eu estou falando ali entre oito, nove, dez anos de idade. A música construiu uma identidade numa criança negra de um estado do Sul do Brasil. Morava em Piraquara (PR), periferia muito violenta e excludente [de Curitiba], que é o maior legado de um complexo penitenciário. Meu pai estava preso lá e eu morava com a minha mãe
Ponte – Como era a sua relação com um pai preso?
Renato Freitas – Ele morreu assim que saiu da cadeia, depois de uns 15 anos preso. Não tive muito convívio com ele. Foram poucas visitas que eu fiz para ele durante esse período. Então não tive um luto, mas o que eu tive foi um repique frontal para mim. Foi uma busca. Minha mãe trabalhava em casa de família. Então as questões políticas mais importantes da minha vida foram trazidas e levantadas pelo rap. A questão da negritude, da afirmação e da valorização do questionamento, da miséria extrema, do questionamento, da violência policial. Tudo isso daí eu já vi lá na época, como músicas [do Racionais MCs] como “Mano na Porta do Bar” e “Fim de Semana no Parque”.
Ponte – Quando a política institucional entra na tua vida?
Renato Freitas – Eu só fui adentrar bem depois, em 2004, quando eu entrei pela primeira vez na Universidade Federal do Paraná e me filiei ao PT. Foi meu primeiro contato com a política institucional e me joguei como militante.
Ponte – Como foi chegar à universidade?
Renato Freitas – Olha que louco, eu escolhi ir para a universidade. Realmente foi uma escolha. Eu parei a escola muito cedo, com 14 anos. Estava três anos atrasado, repeti a quinta e sexta série. Acabei sendo o menor infrator segundo o ciclo de um menino preto de periferia sem perspectiva. Ia pro centro roubar x-salada, boné, chocolate. Mas comecei a ver os moleques caindo, indo preso. Uns começaram a fazer 18 anos e ficar preso. Comecei a pensar se minha vida ia ser essa. Daí voltei estudar e trabalhar. Fui repositor, fui balconista de sorveteria, fui vendedor de loja de roupas. Sempre tentei, mas nunca estava satisfeito. Eram subempregos, sempre uma humilhação. Sempre. Andei sempre com um preconceito ao meu lado. Muito preconceito racial.
Em Curitiba você está trabalhando e a pessoa vem falar que você fede, que você tem que usar mais desodorante. Ouvi coisas que não são legais. Depois de fazer o ensino médio normal, eu passei em fazer um cursinho pré-vestibular e lá sofri discriminação pra caralho. Estava descendo no intervalo e o dono do curso e o porteiro já foram me pegando pelos braços, ali no meio de todo mundo, me levando para sair, todo mundo falando que tinha gente roubando. Cheguei lá para dizer que tinha carteirinha do cursinho e era matriculado porque eles achavam que eu não era aluno. Abandonei o cursinho e fui estudar sozinho. Isso foi em abril de 2003, no final do ano passei em Ciências Sociais na UFPR.
Ponte – E como foi a experiência universitária?
Renato Freitas – Passei um ano e pouco na universidade e tive que sair porque tive que trabalhar. Mas lá, dentro do movimento estudantil, nunca tive vez nem voz. Verdade seja dita, o movimento estudantil parecia mais uma colônia alemã. Sou da última geração que entrou na universidade antes das políticas de cotas. Só tinha alemães da classe média na universidade. Essa galera achava que o que a gente tinha para falar era uma obviedade. Era algo que não precisava ser ouvido. E a gente servia para ser objeto de estudo e não para ser o pesquisador ou produtor de conhecimento. E o próprio movimento estudantil, na forma política, repercutia, reproduzia isso. Eu estava sempre panfletando, fazendo cartaz, estava na linha de frente da manifestação, mas nunca fui convidado para ser secretário, presidente, fiscal, sei lá o quê. Eu nunca passei por isso. Nunca disputei eleição. Nunca me foi aberto esse espaço. Era um ambiente hostil para mim, tanto que nas primeiras semanas o segurança da universidade me pegou pela mochila e fez a mesma coisa que os caras do cursinho fizeram.
Ponte – Em termos de conhecimento, como foi o encontro de um cara da periferia fã de rap com os grandes pensadores das ciências sociais?
Renato Freitas – Foi um fascínio para mim estar ligado em ciências sociais. E eu percebi que o rap do Racionais, Sistema Negro, GOG, tinha a ver com o pensamento de grandes pensadores universais, que também falavam aquilo de outro jeito, e que esses conhecimentos se complementavam. Eu fui estudando e vi que esses autores também diziam que a sociedade não é harmônica,que não há democracia, nem racial, nem social. Na verdade, a sociedade era cindida racialmente e economicamente entre os pobres e miseráveis, os negros, contra os ricos e europeus ou descendentes de europeus. E isso tudo foi a primeira palavra que eu acho que me libertou, que foi tirar um piano das costas. Na verdade, eu particularmente não carregava tanto piano. A meritocracia fala para gente assim: se você é milionário, é porque você é inteligente, criativo, esforçado e merecedor daqueles milhões. Se você é miserável você não é inteligente, é criativo, não é esforçado. Vi no marxismo que a fúria colonialista é que explica o processo de colonização e afirmação de uma raça e o capitalismo como forma de colonialismo, porque o capitalismo é uma invenção europeia. Eu comecei a levar essas boas novas para os lugares de onde vim e explicar isso para resgatar a autoestima das pessoas e ouvir que a nossa luta, para além de ser uma luta na periferia, acaba sendo da revolta antissistema. O crime consegue dizer isso muito bem, e a Igreja também de algum modo, mas não tinha nenhuma organização política, que não fosse a igreja ou o crime, para receber essas reivindicações, organizá-las e mobilizar as pessoas.
Ponte – Por que trocou Ciências Sociais por Direito?
Renato Freitas – Quando eu saí de Sociais fui trabalhar, mas sempre tentando voltar para a universidade e isso aconteceu em 2008, já no regime de cotas raciais. Passei no mestrado em Direito também no UFPR, Quando prestei vestibular 2007 para entrar na universidade no ano seguinte, aconteceu a coisa mais triste da minha vida. Eu tinha 24 anos quando meu irmão mais velho levou um tiro na cabeça de um pilantra sem vergonha, safado, que atira pelas costas na nuca. Meu pai morreu com 30 e poucos anos. Hoje eu, com 38, tenho mais tempo de vida que meu pai e meu irmão tiveram. Isso aconteceu em abril e o vestibular era em novembro. Eu tive um problema com o álcool e com a violência. Na verdade a violência sempre esteve perto de mim, na minha infância, na minha família. Passei a estudar para ficar com a cabeça mais confortável. Dentro do Direito me joguei na criminologia, nos processos de criminalização, no porquê existe tanta cadeia no Brasil, porquê o perfil do presidiário é sempre o mesmo. Me formei, virei advogado, passei no concurso da Defensoria Pública do Estado do Paraná para ser assessor jurídico. Depois saí para ser advogado popular e para fazer mestrado.
Ponte – Como virou político?
Renato Freitas – Eu já fazia parte do movimento social desde setembro de 2004. Principalmente o movimento negro e o movimento de luta por moradia. E daí? Me filiei ao PT dentro da universidade e depois dois fui para o PSOL, logo no seu surgimento quando várias pessoas do PT fizeram esse processo de transição.
Ponte – Por que decidiu disputar eleições?
Reanto Freitas – Eu passei dez anos no PSOL, de 2006 a 2016. E a verdade que eles, assim como pessoal do movimento estudantil, nunca me levaram a sério. Nunca me chamaram para ser dirigente ou alguma coisa dentro do partido. Mas eles sabiam do meu trabalho na Defensoria, na advocacia popular para defender a periferia no direito criminal. Muita gente que passava na rua e me cumprimentava, principalmente nas favelas, por ter dado a liberdade para tanta gente, na luta por moradia, na luta pelos negros e negras. Eles viram que eu tinha uma base e disseram que pelo menos uns 300 a 500 votos eu conseguiria. Usaram a estratégia de chamar umas 20 pessoas que ganhariam de 300 a 500 votos. Com isso, o Bernardo Piloto disse que conseguiria uns mil votos e com esses outros votos desse grupo ele seria eleito naquele ano (2016). Eu aceitei, já fazia campanha de graça para os outros. Nos primeiros 15 dias de campanha, os caras não deram nem panfletos. Nenhum apoio. Queriam asfixiar a nossa campanha. Não tinha nem santinho, não tinha nada. Eu vi que, na verdade, eles queriam que eu fosse uma candidatura laranja. Porém, o resultado foi que eu tive foram 3.500 votos, o mais votado daquela eleição pelo PSOL. Quase fui eleito, faltou muito pouco e até hoje o PSOL nunca fez mais de 3.500 votos em uma eleição para vereador no Paraná todo. Logo depois disso eu voltei para o PT porque o PSOL não valorizava ali a minha caminhada. No PT me candidatei a deputado estadual em 2018. Uma campanha muito bonita Tive 15.600 votos. Depois veio 2020, que é a campanha que eu acabei sendo eleito.
Ponte – Dentre os vários desafios que um homem de periferia tem ao chegar em lugar como a Câmara de Vereadores de Curitiba, você está passando por um processo de cassação por uma manifestação dentro de uma igreja. Você pode explicar esse episódio?
Renato Freitas – Tem um princípio cristão que diz que todos devem ser perdoados. Só que para você ser perdoado, primeiro tem que admitir o erro. E segundo, admitiu, tem que colocar em prática. Jesus falava que a fé sem obras é morta. Então você admitiu mudar o mundo, mudar o caminho, mudar sua prática, que Deus está realmente demonstrando, que admite e que está mudando para que não seja cometido novamente. O grande erro da Igreja no Brasil foi dizer que os negros e os índios não tinham alma e que por isso poderiam ser trucidados, exterminados, escravizados. E isso é por muito tempo. A Igreja não não assumiu a culpa. A responsabilidade pela grande tragédia humanitária que destruiu e manchou a história do nosso país desde o início. A Igreja sempre caminhou pelo contrário. Ela justificou o colonizador, que daí ele se sentiu à vontade para matar pessoas, porque ele podia matar pessoas e ainda assim ser visto como homem de bem, como um bom cristão. Trazendo mais para perto, a ditadura militar, por exemplo, tem um vínculo muito forte com a Igreja. A Igreja apoiou oficialmente a ditadura militar de 1964 no Brasil. Então há um problema muito grande da Igreja com os negros, com os índios. É um problema da apropriação que o próprio imperialismo fez, que bem colocou os cristãos perseguidos como arautos da justiça, da religião oficial. E isso é esse absurdo. É só genocídio, extermínio e guerra. O cristianismo foi uma muleta para justificar os atos de barbárie que a Europa cometeu. A Igreja do Rosário dos Pretos, no Largo da Ordem, Centro Histórico de Curitiba, igreja essa construída em 1737 pela população negra que não podia frequentar nenhuma outra igreja, que eram dos brancos e que, portanto, teve que construir aquela igreja ali. E mais, construiu a igreja em cima de um cemitério de pretos e pretas mortos durante a escravidão, numa clara tentativa de apagar a história, os túmulos, as vidas dos que foram enterradas ali. Essa igreja, que é dos pretos, está sendo dirigida por um padre descendente de alemão, que durante uma manifestação pelas vidas negras, olha só, que absurdo, por ocasião da morte do Moïse, do Durval e tantos outros irmãos e irmãs exterminados. Essa igreja, Igreja dos Homens Pretos de São Benedito, Igreja do Rosário do Divino Espírito Santo ou dito Freguesia. Essa igreja, a partir da figura do padre, foi ali depois de acabada a missa. Foi na frente, já sem batina, sem nada, na escadaria, para dizer que aquela manifestação não deveria estar acontecendo ali, porque ela só incomodava e que ela deveria estar ocorrendo em outro lugar, que ali não era lugar de manifestação. Olha, veja bem, isso é de uma violência.
Eles também estão me processando na Câmara dos Vereadores por falta de decoro. Eu arriscaria e ousaria dizer que o padre agiu com falta de decoro frente aos seus irmãos. Todas as igrejas deveriam valorizar e clamar pela vida, mas aquela em especial, não qualquer vida, principalmente a vida das pessoas pretas. Pois aquela igreja foi construída para isso, com essa finalidade, e o padre sequer sabia o que estava acontecendo e quando soube não se solidarizou. O descontentamento é generalizado porque os manifestantes, mais de 200 pessoas ali, na grande maioria são pessoas negras. A Associação dos Imigrantes Africanos no Brasil, o Movimento das Mulheres Pretas do Paraná, o setor de combate ao racismo do PT. Toda a nossa vida não está sendo valorizada lá dentro. Ali é o nosso espaço. A Igreja dos Pretos. Então, nada mais adequado que a gente entrar na igreja. Isso é um momento sublime, eu diria no lugar de fala de pessoas pretas dentro de uma igreja, de pessoas pretas construídas por pessoas pretas e pagas por pessoas pretas, em cima de um cemitério de pretos, clamando pela vida dos pretos que estão sendo exterminados nesse país. Olha, isso tem muito poder. Isso tem muito valor e a gente vai ter que ver de mais esse ato. Foi muito bonito. Mas, é claro, na mesma medida que ele foi muito necessário. Aponta para aqueles que estão acomodados no poder e que lucram com as nossas mortes e lucram com a falta de representatividade política que nós temos e não querem, de fato, que as nossas vozes sejam ouvidas.
Ponte – Você foi duramente criticado por pessoas da esquerda. Como você recebeu os comentários contrários a manifestação que você esteve à frente vindos o seu próprio campo ideológico?
Renato Freitas – Tem duas hipocrisias aí. Na verdade, querem dizer qual o método correto de se manifestar contra o racismo e extermínio de nós, negros, nesse país? Olha que loucura! Porque realmente quem é responsável pelas nossas mortes fez tanta pressão na população, como nos dizia Martin Luther King. O que nos assusta não são os males das pessoas ruins, o que realmente nos assusta, nestes tempos em que vivemos, é a omissão e o silêncio dos que se dizem estar do nosso lado. Então sabem que seu silêncio nos mata. É esse silêncio que eles têm em relação às práticas de racismo. No tiro que eu tomei na mão de um guarda municipal, nas prisões arbitrárias que eu tive, imperou o silêncio. Então, em primeiro lugar, é racismo mesmo. “Ah, mas esse espaço é sagrado”. Como você não consegue ver o mundo a partir dos nossos olhos? Não consegue ter empatia. Se essa igreja fosse dos brancos, dos italianos, que por algum motivo tivessem sofrido um processo de extermínio nesse país e que por isso construíram uma igreja, a única igreja que eles poderiam frequentar lá dentro, tivesse um padre negro, fiéis negros e do lado de fora, os italianos manifestando pela vida e o padre saísse para fora e um padre negro dissesse que aquela manifestação era uma piada, isso não seria uma cena absurda? Sim, é claro que seria. E todo mundo compreenderia a revolta dos italianos se entrassem na igreja que eles pertencem, mas eles não conseguem.
Então, primeiro lugar o racismo, com certeza absoluta, a naturalização da nossa exclusão e a necessidade de avalizar as nossas ações políticas. Os brancos sempre têm que dizer a última palavra das nossas ações, do que é certo e do que é errado. Até porque, se eles não tiverem essa possibilidade, esse poder de avalizar, de legitimar e de dizer o que é certo ou errado, eles também vão viver um perigo, porque quando nós pudermos dizer o que é certo, o que é errado, eles vão ser julgados também. Muitos deles pelo racismo cotidiano, pelo extermínio, pela exclusão, pelo racismo institucional. O segundo ponto que você diz, dos progressistas do PT, pode destruir. É uma hipocrisia e é uma miséria da razão política que é o chamado pragmatismo, o que eles chamam de realpolitik. A política real, pragmática, que faz da política um balcão de negócios que é negociar e conquistar o poder. A verdade pode ser facilmente sacrificada porque a verdade não nos importa. O que importa é o resultado daquelas ações e daquele discurso. E isso, para a gente, é do formalismo. O formalismo veio para relativizar a verdade e para instaurar a pós-verdade, que é a verdade construída a partir de bancos, de computadores, de redes sociais, de mão de manada. A verdade é a manada. É isso que o formalismo criou. E é a partir desse paradigma que essas pessoas que acreditam nisso atuam. O Renato foi fazer uma disputa ideológica de narrativa e colocando a igreja em xeque, em questionamento. Sei que os setores dominantes da igreja fazem com que reajam com muita violência e com muito racismo, inclusive. Assim sempre foi. E setores minoritários da Igreja, como o padre Júlio Lancelotti, Frei David e tantos outros padres, bispos, fiéis, irmãos, estiveram do nosso lado e acharam muito importante essa questão, porque instaurou uma discussão qualitativa necessária dentro da Igreja. De que lado Jesus estaria?
Foi um momento de avanço do progressismo dentro da Igreja e eu acredito que isso deveria também vir de dentro do Partido dos Trabalhadores e de todos do campo progressista, no sentido de que tem urgentemente que ser encarado o problema da hipocrisia religiosa no Estado brasileiro. Veja bem, 80% dos religiosos cristãos e evangélicos declararam voto no Bolsonaro na época da eleição. É fascismo. Foi eleito com os votos, principalmente dos religiosos, que se esconderam atrás de um verniz religioso e que, por isso, se colocaram na condição de homens de bem para eleger o fascismo e reivindicar a morte. “Bandido bom é bandido morto”. Eles reivindicaram a morte. Quem é construído como bandido no nosso país? Jovens negros, pobres, com ensino fundamental incompleto, moradores de periferia de grandes centros urbanos. Essa é a figura do criminoso brasileiro. Esse é o inimigo que o Brasil escolheu para si na guerra às drogas, em toda política de segurança pública. É contra essas pessoas, contra nós, que os evangélicos e os cristãos, de forma geral, se levantaram e apontaram o dedo. Julgaram e pediram a nossa morte e elegeram o fascismo. É claro que isso tem que ser questionado. E os covardes de dentro do Partido dos Trabalhadores e também de todo o campo progressista? Os covardes que não são merecedores do protagonismo histórico do campo político na luta contra o fascismo? Os covardes preferiram me colocar na fogueira para não ter que enfrentar esse problema, que talvez seja o problema central hoje para a democracia brasileira? Um engodo, a enganação, o charlatanismo religioso que impera e que hoje tem uma das maiores bancadas no Congresso Nacional, em todas as câmaras municipais do Brasil afora e principalmente desse Brasil profundo, desse Brasil de miséria, de ignorância, de falta de educação formal, de falta de conhecimento e consciência política.
Ponte – Além do processo na Câmara dos Vereadores, você está sofrendo alguma retaliação dentro do PT?
Renato Freitas – Aconteceu uma coisa muito bonita. O partido e sua direção, o presidente estadual Arilson Chiorato e o presidente municipal Ângelo Vanhoni, se apressaram em fazer uma nota e dizendo: “olha o Renato tem que pedir desculpa para a Igreja. O que ele fez de errado? O Partido dos Trabalhadores não tem nada a ver com isso”. Primeiro que já era uma grande mentira. O partido chamou também a manifestação e lá dentro da igreja estava a presidente do setorial de combate ao racismo. Além dela, outras pessoas do partido estavam dentro da igreja, inclusive pessoas brancas. O último candidato, por exemplo, a prefeito, o antigo candidato a prefeito pelo Partido dos Trabalhadores, estava lá na igreja. Ou seja, mentiu. Foi covarde e mentiroso e me colocou na fogueira dizendo que não tem nada a ver. Mas olha o movimento bonito que aconteceu na base do partido, no município, mas também no estado, a base, as pessoas que estão ali na luta e no cotidiano, as tiazinhas, os tiozinhos, os jovens, todos eles se revoltaram contra essa posição do partido, se voltaram e essa revolta organizou uma base grande em movimento e luta em favor do nosso mandato e fez a direção se envergonhar. É claro, não fizeram uma retratação, mas nunca mais prestaram declarações públicas e ficaram mal vistos pela base do partido. E só por isso, arrisco dizer, não tem nenhum processo hoje contra mim dentro do partido e na Câmara dos Vereadores tem quatro pedidos de cassação.
Não é a primeira vez que tentam me cassar. Já no primeiro semestre do meu mandato, eu falei lá na Câmara de Vereadores que eram charlatões e picaretas os vereadores que levaram médicos mentirosos que recomendavam azitromicina como remédio para a Covid-19. Esse médico foi lá e disse que não teve nenhum problema com ninguém na empresa que ele trabalhava. Ninguém foi entubado, ninguém foi afastado e muito menos ninguém morreu porque todo mundo tomou ivermectina. Foi isso que disse o médico lá na Câmara dos Vereadores a convite da bancada religiosa, do pastor Osias Morais (Republicanos), da Igreja Universal, mais outros três pastores. Eu falei que aquilo era mentira e que aquelas pessoas eram picaretas e que eles não estavam preocupados com a vida das pessoas em Curitiba e tão somente com a sua base e com seu laço de fidelidade ao presidente e que por isso sacrificavam. E eles foram lá e falaram que eu quebrei o decoro, que chamar de charlatão, picareta era algo que não deveria ser feito e pediam a cassação do mandato. Eu passei pelo julgamento e tudo foi absolvido, mas o momento em que a gente está na berlinda é agora. Por último, os mesmos pastores, junto com o líder do prefeito na Câmara de Vereadores, porque a gente é oposição, foi inclusive líder da oposição. Não fui uma oposição figurativa, sabe? E isso foi expressado agora, nessa oportunidade que ele teve de tentar cassar o meu mandato.
Ponte – Você acha que perderá o mandato?
Renato Freitas – Eu estou sofrendo um processo de perseguição que vai muito além desse pedido de cassação, mas já dentro da Câmara também, o que é uma ameaça muito grande. É uma perseguição muito grande. Dos 38 vereadores, 26 deles são da base fiel ao prefeito. Têm cargos, recebem dinheiro, propina e tudo mais. E votam em tudo que o prefeito quer. Tudo, absolutamente tudo. Desse modo, tendo em vista que o julgamento de cassação é político, já estou sendo dado como cassado lá dentro da Câmara dos Vereadores e já houve até comemoração por parte da base eleitoral, porque eles acham que não vai ter nenhum problema. Agora, o que a gente está tentando fazer é ter uma conversa com a Igreja para ver se a Igreja tem uma compreensão maior conosco. E tenho tentando, principalmente porque o caminho da Igreja é muito difícil. Eles estão sendo pressionados também pelo prefeito Rafael Greca (União Brasil). O próprio bispo falou isso. O que ocorre é que nós precisamos, de fato, fazer uma mobilização pública, de caráter nacional, para constranger a “República de Curitiba” a atuar conforme os ditames legais da proporcionalidade, da legalidade e da razoabilidade.
Eu digo isso sabe por quê? Porque na história da Câmara dos Vereadores de Curitiba, em três séculos, nunca ninguém foi cassado. Poucos anos atrás a Fabiane Rosa (PSD) saiu presa de dentro da Câmara por rachadinha, formação de quadrilha e peculato, por vários crimes. Há seis ou sete anos atrás, o [João Claudio] Derosso (PSDB), então presidente da Câmara dos Vereadores, respondeu a um processo no Ministério Público porque desviou cerca de R$ 8 milhões de uma revista fantasma que não existia. A revista da Câmara dos Vereadores simplesmente não existia e era ele e uma dezena de vereadores que estavam nesse esquema de corrupção. Nem ele pediu pediu afastamento, renunciou e os outros vereadores continuaram e ninguém foi cassado.. Eu poderia te dar mais outros vários exemplos de pessoas que cometeram crimes e não foram cassadas. Então o que eu compreendo é que é uma perseguição e essa perseguição tem que ser mostrada para o resto do país. Do jeito que está eles vão me cassar de fato.
Ponte – Como tem sido ser um parlamentar negro, vindo de periferia, dentro da câmara de vereadores de uma das capitais mais conservadoras do país?
Renato Freitas – 77% do eleitorado votou no Bolsonaro em Curitiba. Aécio Neves teria sido eleito já no primeiro turno em Curitiba. Curitiba é extremamente conservadora e por isso ela foi palco dessa grande enganação que foi a Lava Jato do Dallagnol, Sérgio Moro [ambos hoje pré-candidatos à Câmara dos Deputados] e tantos outros expoentes do neofascismo de roupagem liberal de valores e práticas fascistas. Segundo ponto, Curitiba é conhecida por ser celeiro das células nazistas no Brasil. Encontros nacionais de grupos nazistas se dão aqui frequentemente. E isso só foi sabido porque durante um desses encontros aqui na região metropolitana que repercutiu na mídia, na briga para ver quem seria o presidente de uma dessas células houve uma morte, um matou outro lá e por isso repercutiu. Agora, Curitiba também é conhecida por ser a “capital europeia”. Assim Curitiba se vende para o resto do Brasil. A “capital europeia”, cidade inteligente. É uma espécie de cidade destacada do restante do Brasil. Por quê? Porque reivindicam fortemente essa questão da identidade europeia, do ser europeu, de ser branco. É fugir, é racismo, higienismo. As pessoas que são negras, as pessoas que são nordestinas, as pessoas que são pobres, a população em situação de rua. Todas essas pessoas são vistas como uma mancha no cartão postal de Curitiba, como uma Curitiba que não é Curitiba como um todo. E os intrusos têm que ser espantados. Nesse sentido, atua a Guarda Municipal de Curitiba.
Ser um negro de esquerda num lugar de extrema direita é muito difícil. Curitiba já hasteou bandeiras do nazismo no final da década de 30, em instituições do lado de dentro e do lado de fora para que todos vissem. A mídia é tomada pela direita e na extrema direita, eles sabem o público que têm, eles sabem que conseguem e que podem construir um senso comum muito violento. É muito fácil manusear a opinião do senso comum contra um vereador jovem, negro e que já tem muita luta. Quando você vai lá, edita imagens e diz que o vereador invadiu uma igreja. Como você consegue manobrar essas mentiras da forma com que eles fizeram? Eles sabem que criam o ódio. Vai ser difícil de se apagar, mesmo que a verdade venha à tona. E tem vindo aos poucos ultimamente. Mas ela vem numa velocidade muito menor do que a velocidade midiática da mentira. Ser um vereador negro de esquerda numa cidade racista e de direita é um uma resistência diária, cotidiana, e por isso a gente fica especialmente triste quando as forças progressistas se acovardam frente ao desafio que a história está nos colocando.
Ponte – Ao longo da sua vida você falou que já teve várias perseguições das forças de segurança. Esse caso da cassação seria mais um caso do Estado contra você?
Renato Freitas – Venho de uma periferia muito violenta. Eu venho da Vila Macedo, em Piraquara, morei também Tamandaré, morei em Pinhais, morei em Colombo, morei em todos os metropolitanos mais violentos aqui de Curitiba e essa realidade fez com que a gente fosse perseguido pela polícia desde muito cedo, justamente por isso, porque a polícia nos vê como inimiga. Aqui em Curitiba, para você ter a ideia do que eu estou falando, a patrulha escolar, e isso eu ouvi de um policial militar, que atuava ali no Colégio Leôncio Correia, onde eu estudei, andava na parte de trás da viatura com a bandeira nazista. Isso é o fim. Não há muito esse tipo de imaginário de construção do negro. Como o inimigo justifica a posição de privilégio que essa pessoa ocupa hoje na sociedade curitibana? As portas não são abertas para nós. Nós não estamos na universidade à toa. Nós estamos porque merecemos. “Porque os negros não merecem e não merecem porque são bandidos”. É mais ou menos esse o raciocínio que eles fazem. E nesse raciocínio aí a gente é perseguido desde criança, perseguido, maltratado. Muitos dos nossos são mortos. Eu tenho mais de 15 passagens pela polícia. Você tem ideia de anotações criminais? Não fui condenado em nenhuma porque todas elas foram presepadas. Todas elas foram tentativas de criminalização. A maioria delas é desobediência e desacato. Todas elas, em situações que eles gostariam, queriam e ordenaram que a gente saísse de espaços públicos, de praças, de ruas até de bibliotecas. Como foi a vez da biblioteca pública que a gente estava lá na frente.
São espaços simplesmente que eles chegam, abordam, colocam a arma na cabeça, manda caminhar ou em outras oportunidades, coloca a gente dentro da viatura e leva em um terreno baldio para bater, para ameaçar. Comigo mesmo já aconteceu uma vez ao lado aqui da BR-116. A gente estava andando lá no meio da madrugada, eu e um amigo meu. A polícia enquadrou. Além de pegar o dinheiro que estava com meu amigo, que era para comprar o gás dele, colocaram a gente na viatura e levaram a gente. Ficamos com muito medo sem saber o que ia acontecer com a gente de verdade. Até que a gente abriu a porta e se jogou da BR no meio de um barranco, lá no meio do nada. Então é um terrorismo psicológico muito grande, uma violência física muito grande que a gente carrega as marcas. A minha primeira candidatura é em 2016. Sabe quando foi a minha primeira anotação criminal? Foi em 2005, um ano antes eu tinha entrado na faculdade. Isso é humilhação, essa violência. E eu nunca vou admitir. Eu comecei a dizer não. De 2005 para frente, comecei a dizer não. E daí eu comecei a ter todas essas passagens criminais que eu tenho até hoje. E continuo dizendo não.
Ponte – Como você imagina que será o seu futuro na política?
Renato Freitas – Eu tenho fé que a gente vai passar por esse momento, que é uma tormenta. Eu tenho fé que não serei cassado, mesmo com tudo que se apresenta lá dentro. Se o cenário nacional não apertar mais, eles vão me cassar. Se não se sentirem constrangidos, vão me cassar. Mas eu acredito que o Judiciário vai reformar a decisão deles, porque não é possível inaugurar esse movimento de cassação. Eu seria o primeiro a ser cassado e num lugar que as pessoas roubam, que as pessoas desviam dinheiro, que as pessoas fazem tudo de errado que eles fizeram. Eu acho que a gente vai passar por isso. Passando por isso, eu pretendo fazer duas coisas: primeiro me candidatar a deputado estadual, que é um plano passado que eu tinha. Eu vou continuar nesse plano de candidatura a deputado estadual e também é um outro plano, que é tão importante quanto, que é para o ano que vem mobilizar o nosso grupo, as bases do Partido dos Trabalhadores e fazer a disputa também do Partido dos Trabalhadores aqui em Curitiba. É necessário porque a gente tem que ter uma direção que esteja adequada às nossas ações, aos nossos pensamentos e não uma direção que só queira o poder, o eleitoralismo eleitoreiro, essa coisa feia do pragmatismo que sacrifica a verdade em nome do poder.
Se o Partido dos Trabalhadores não mudar e não se renovar nesse sentido, ele vai ficar cada vez mais desacreditado. E a gente não pode ficar sempre numa política do tipo “vote em nós porque que a gente a única opção”, que é o que está acontecendo hoje, em 2022, no Brasil. Vote no Lula por que? Porque só tem ele para votar e tem que votar nele. Então a gente vai fazer campanha, mas não é isso que a gente pretende para o nosso país. A gente pretende para o nosso país ter uma política propositiva. Porque a gente vai taxar grandes fortunas, porque a gente vai iniciar um processo de reforma agrária, porque a gente vai ter uma política econômica de inclusão, de pleno emprego. Porque a gente vai estatizar setores chaves da economia, porque a gente vai valorizar a Petrobrás, porque a gente vai fazer lá uma auditoria da venda da Vale do Rio Doce. E não só porque do outro lado tem o fascismo. Senão é muito cômodo. Eu vejo muito isso nas direções aqui do nosso partido municipal. A nossa estratégia é também fazer a disputa do partido municipal.
Ponte – O que ainda te motiva a fazer política?
Renato Freitas – O nascimento da minha filha foi um divisor de águas na minha vida. Tem dois anos, ela nasceu em dezembro de 2019. Ela nasceu quase junto com a pandemia. Fiz a campanha para vereador com ela recém nascida. Foi um barato, louco mesmo. Na minha vida eu perdi muito. Perdi familiares para a violência, meus melhores amigos eu perdi para a violência, para o cárcere, para a miséria, para as drogas, para o crack, especialmente. E eu sempre numa revolta, mas também numa depressão. Até o nascimento da minha filha, para mim estar vivo ou tá morto tanto fazia. Eu só ia no meu caminho. Hoje não. Eu renasci. Meu nome é Renato. Eu renasci com o nascimento da minha filha e ela se chama Aurora, que é nascimento. E hoje para mim não é tanto faz estar vivo. É uma oportunidade que Deus me deu de ver minha filha crescer. É mais bonito que isso. É uma parada inexplicável. É o que me mantém hoje, firme e forte.