Ativistas salvadorenhos relatam desaparecimentos, torturas e violações sistemáticas de direitos humanos sob o regime de exceção de Nayib Bukele. Questão foi abordada em encontro de países latino-americanos em São Paulo

Ativistas de El Salvador, país da América Central governado por Nayib Bukele, denunciam violações sistemáticas de direitos humanos dentro do sistema carcerário nacional. Segundo relatos, os presos são impedidos de receber visitas de familiares e advogados, e há extrema dificuldade de acesso a informações sobre quem está detido nas unidades prisionais.
“Quaisquer garantias ou direitos para famílias e indivíduos foram completamente cortados”, relatou à Ponte um militante que pediu anonimato por medo de represálias.
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“Há famílias que não sabem onde está o seu familiar. Há famílias que continuaram a pagar as encomendas e, um dia, disseram-lhes: ‘Ele já faleceu’. Nem sabem onde está o corpo, o que aconteceu, o que fizeram”, conta ele. São comuns os “desaparecimentos forçados” de curta duração, em que pessoas são detidas e passam até um mês sem que suas famílias saibam onde estão.
Sergio Arauz, editor do jornal El Faro e presidente da Associação de Jornalistas de El Salvador, reforça as denúncias. Segundo ele, não há direito ao devido processo legal ou a julgamentos justos; juízes anônimos julgam até mil pessoas de uma só vez. “Não há direito de visita, e o El Faro documentou que os presos devem pagar subornos para falar com seus advogados ou familiares, e até mesmo para serem tratados por médicos”, afirma o jornalista.
Regime de exceção e repressão judicial
Um regime de exceção foi decretado no país em março de 2022, suspendendo garantias constitucionais, como o direito de ser informado sobre os motivos de uma prisão. O decreto permanece em vigor até hoje. A medida foi adotada após 76 assassinatos registrados em apenas 48 horas. Segundo o El Faro, as mortes resultaram da ruptura de um suposto acordo entre o governo e a gangue MS-13.
De acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), até novembro de 2024, 73 mil pessoas foram presas, a maioria em regime de prisão preventiva. No relatório El Salvador: Estado de exceção e Direitos Humanos, a comissão denunciou detenções ilegais, invasões domiciliares sem mandado, abuso de força policial e violações contra crianças e adolescentes.
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O relatório também destaca demora no controle judicial das detenções, ineficiência nos recursos de habeas corpus, audiências judiciais em massa e superlotação carcerária, já identificada em visitas da CIDH antes mesmo do regime de exceção decretado por Bukele.
A situação se agrava diante das condições precárias nas prisões salvadorenhas. O relatório aponta ainda a morte de até 200 pessoas privadas de liberdade, além de falhas nas investigações e na comunicação com os familiares. A organização Cristosal, também de El Salvador, publicou em junho de 2023 um relatório que descreve mortes violentas dentro das unidades. Muitos presos apresentavam hematomas e sinais de estrangulamento.
Silêncio forçado e mortes sob custódia
Segundo Sergio Arauz, as violações atingem até mesmo ex-integrantes do governo. Ele cita o caso de Alejandro Muyshondt, conselheiro de segurança nacional de Bukele, preso após denunciar autoridades por corrupção e ligação com o narcotráfico. “Desde o momento de sua prisão, Muyshondt foi mantido incomunicável e submetido a desaparecimento forçado. Ele morreu sob custódia em 7 de fevereiro de 2024, aos 46 anos”, relata Arauz.
Outro caso é o do defensor de direitos humanos Fidel Zavala, que foi transferido para uma prisão onde estão os mesmos guardas que ele havia denunciado anteriormente. “Sua vida e integridade pessoal estão em risco iminente”, alerta. Também causa preocupação o desaparecimento de Ruth López, advogada da Cristosal, sumida desde 18 de maio.
Segundo relatos, policiais afirmaram que ela esteve envolvida em um acidente de trânsito e a levaram sob custódia. “Ela é a prova de que já existem presos políticos em El Salvador”, afirma Sergio.
Repressão às ONGs e controle estatal
Além da repressão direta, o governo Bukele tem atuado para desmobilizar organizações da sociedade civil. Ativistas denunciam prisões de líderes ambientais e anticorrupção que, mesmo libertos, são processados novamente após formar unidades de apoio mútuo.
Outra frente é a Lei dos Agentes Estrangeiros, aprovada recentemente. A norma dá ao governo o poder de selecionar quais ONGs e meios de comunicação independentes podem operar no país, exigindo que repassem 30% de seus rendimentos ao Estado. “Essas e outras medidas agravam a defesa de direitos e a segurança dos que atuam nessas áreas”, afirma um dos ativistas.
Um deles destaca ainda o clima de medo: jornalistas e ativistas evitam até utilizar a lei de acesso à informação por receio de represálias. “Hoje, mesmo que a lei exista, muitas instituições alegam sigilo de sete, dez anos. As pessoas têm medo até de digitar seu nome ao fazer um pedido.”
Populismo e apelo eleitoral
Ativistas lamentam que líderes políticos estrangeiros estejam se inspirando em Bukele. No início do mês, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), e o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), anunciaram planos de visitar El Salvador para conhecer seu modelo de segurança. “É lamentável. Entendemos que a redução da criminalidade pareceu uma mudança da noite para o dia, mas todos sabemos que mudanças reais não acontecem assim”, afirma um dos militantes.
“Sabemos que isso vai terminar mal, porque a raiz do problema não foi tratada. Prender 85 mil pessoas não é uma solução.” Apesar da aparente estabilidade e dos 80% de votos recebidos por Bukele nas últimas eleições, ativistas alertam: esse “sucesso” tem um alto custo — encarceramento em massa e ausência de processos legais justos.
“As instituições obedecem cegamente ao presidente. O governo atua baseado no medo. ‘Se você disser algo, vai para a cadeia’, é o que se ouve.”

Cárcere como extensão da escravidão
Organizações de diversos países participaram do encontro da Rede Internacional de Familiares de Pessoas Privadas de Liberdade (RIMUF), encerrado nesta sexta-feira (30/5) em São Paulo. Estiveram presentes, entre outros, representantes de Argentina, Colômbia, Costa Rica, Espanha, México e Brasil.
Railda Alves, uma das fundadoras da Associação de amigos e familiares de presos (Amparar), destacou que os relatos de diferentes países mostram um padrão: “O cárcere só serve para violar o direito das pessoas pobres e negras, isso em qualquer lugar do mundo. É uma extensão da própria escravidão”.
Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Independente das Mães de Maio, reforça: “Só muda o endereço, só mudam os corpos. Mas a violência e o racismo estrutural são globais”.
Andrea Casamento, da Associação Civil de Familiares de Detidos (ACIFaD), explica que a missão da RIMUF é levar dignidade e apoio aos familiares: “Não importa a língua. O que nos une é o olhar estigmatizante do Estado e a ausência de políticas voltadas aos direitos dessas pessoas”.

Dor que vira luta
Outra representante presente no encontro foi a equatoriana Ana Morales, que perdeu seu filho Miguel, de 23 anos, em 2021, durante o maior massacre prisional do país, em El Litoral. Ele foi preso por roubar um celular, motivado pela crise financeira da família. Ao todo, 119 presos foram mortos.
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“Fiquei sem emprego, com filhos pequenos, minha mãe com câncer. Meu filho, vendo a necessidade, roubou um celular e foi preso. Depois, assassinado”, conta.
Do luto, nasceu o Comitê de Famílias pela Justiça nas Prisões. “Minha dor virou fortaleza. Podem dizer que meu filho era bandido, mas para mim era meu filho. Com as mães não se mexe. No Equador, lutamos”, conclui.