Rosana Paulino revela racismo oculto ‘debaixo do tapete da história’

    Exposição temática da artista encerra ano dedicado às mulheres na Pinacoteca do Estado de São Paulo destacando a pesquisa e o olhar da mulher negra

    "Coração - Sem Título", de Rosana Paulino
    “Coração – Sem Título”, de Rosana Paulino  | Foto: Divulgação

    Vinte e cinco anos de uma obra que mergulha nos temas da identidade do povo negro, da ancestralidade e do racismo estrutural encerram um ano que a Pinacoteca do Estado de São Paulo dedicou às mulheres. A mostra individual de Rosana Paulino, “Costura da Memória”, em cartaz até 4 de março, é a quinta e última de uma sequência de cinco exposições de artistas mulheres. O ciclo teve também Hilma Af Klint (1862-1944), considerada a mãe do abstracionismo, com a mostra “Mundos Possíveis”.

    Com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery, a mostra de Rosana ocupa três salas do 1º andar da Pinacoteca (ou Pina Luz) com obras produzidas entre 1993 e 2018. Entre elas, Bastidores (1997), série de suportes para bordar com figuras de mulheres de sua família impressas em tecido cujos olhos, bocas e gargantas estão costurados, indicando o emudecimento imposto às mulheres negras, muitas vezes fruto da violência doméstica. E Parede da memória (1994-2015), que pertence à coleção da Pinacoteca, é composta de 1500 patuás (pequenas peças usadas como amuletos de proteção por religiões de matriz africana) e traz onze retratos de família que se multiplicam. Uma forma de a artista investigar a própria identidade a partir de seus ancestrais.

    A Pinacoteca informa que é a maior exposição individual da artista em uma grande instituição no país. “É uma panorâmica. Não chega a ser uma retrospectiva porque não tem espaço para tanto. São três salas, uma retrospectiva seria maior e geralmente não é normal também artistas na minha idade fazerem retrospectivas”, disse a artista, em entrevista à Ponte. Rosana está com 52 anos.

    Rosana Paulino | Foto: Divulgação

    Rosana Paulino surgiu com destaque no cenário artístico nos anos 1990 e, desde lá, abordou temas raciais, sociais e de gênero. Questões propositalmente “colocadas debaixo do tapete na história da sociedade brasileira”, como diz a artista.

    Ponte – O diretor-geral da Pinacoteca de São Paulo, Jochen Volz, afirmou que em 2018 a instituição dedicou seu espaço às mulheres do Brasil e do mundo. Você, artista com uma trajetória de anos, estreia agora sua primeira mostra individual na Pinacoteca. Como vê a relação da Pinacoteca com as mulheres artistas e com as e os artistas negros?

    Rosana Paulino – Não é a minha primeira mostra no Brasil e nem minha primeira mostra individual, eu já fiz várias.  Em 2017, eu fiz no Centro Cultural São Paulo, em 2016 fiz uma mostra no Senac. Fiz várias mostras em galerias, em museus como o MACC Americana, por exemplo. Essa é a maior mostra temática, que é uma mostra feita sobre uma só artista. É uma responsabilidade bem grande fechar o ano dedicado às mulheres na Pinacoteca. Quanto à relação da Pinacoteca com as mulheres artistas, e artistas negros, ela [Pinacoteca] já vem mudando essa atuação desde a gestão do professor Tadeu Chiarelli e trazendo dados interessantes sobre a questão dos artistas negros. Em 2015, nós tivemos a mostra Territórios, que não só mapeou as artistas negras e negros na instituição, como procurou, na medida do possível, pelo menos diminuir essa lacuna comprando as obras que estavam em exposição, algo bastante raro no Brasil. Então, essa relação da Pinacoteca com artistas negras e negros vem mudando, sim, principalmente em relação à arte contemporânea, o que é muito bom, um alento. E, em relação às mulheres, creio que esse ano [2018] fala mais, com as mostras dedicadas às mulheres. A coisa fica bem mais interessante.

    “A Salvação das Almas”, de Rosana Paulino | Foto: Divulgação

    Ponte – O que mudou em sua produção desde 2015, quando participou da mostra coletiva “Territórios”?

    Rosana Paulino –  Minha produção não mudou muito, não. É um tempo muito curto para você mudar alguma coisa na produção. Mudanças, em termos de produção de obras de arte, são bastante lentas. Tem artista que passa praticamente a vida inteira trabalhando no mesmo tema, tem artistas que levam dez anos para produzir uma mudança. Se você quer fazer uma produção realmente consistente, a questão da mudança é um pouco lenta para as áreas de artes visuais, porque a gente precisa de muito tempo de pesquisa. Eu diria que aprofundei umas questões, principalmente técnicas, por exemplo, sobre impressão em tecidos. A gente tem dois tecidos muito bonitos que estarão na mostra, que é o Atlântico Vermelho e o Musa Paradisíaca. Acabei entrando mais nessa questão, mas essa é uma mostra retrospectiva, então as pessoas vão ver desde cadernos de desenho até trabalhos feitos em 2018. São 25 anos de trabalho. Então, acho que o principal para essa mostra é ser um primeiro olhar mais aprofundado sobre a minha produção e o fato de ela trazer obras desde cadernos de estudante.

    “Atlântico Vermelho”, de Rosana Paulino: experiência com impressão em tecidos | Foto: Divulgação

    Ponte – Como é expor na Pinacoteca?

    Rosana Paulino – O que eu posso dizer sobre a questão da Pinacoteca é que é um espaço nobre. A Pinacoteca é um dos grandes museus do país e sem dúvida nenhuma qualquer artista ficaria muito feliz em mostrar os trabalhos lá. Agora, o que me chama a atenção é um reconhecimento desta produção de temática negra, que é muito legal, porque é uma mostra que vem encerrar um ciclo muito importante. Houve a mostra da Hilma Klint, que foi absolutamente fantástica. “As Mulheres Radicais” foi uma mostra linda. É uma importância enorme, porque pela primeira vez um museu desse porte se abre para uma única artista [negra]. Nós tivemos, por exemplo, “As Históricas Afro Atlânticas”, que era uma coletiva, com vários artistas portanto. Com a Pinacoteca, é a primeira vez que se abre para receber uma mostra deste tamanho de uma artista mulher negra aqui no Brasil. Então, é um momento bastante interessante. O MASP nesse momento também tem a mostra da Sonia Gomes. Estamos com duas mulheres negras ocupando os principais espaços de exposição de São Paulo ou talvez do país. Acho que é um momento histórico que nós estamos vivendo.

     

    Ponte – O fato de um museu como a Pinacoteca já ter tido um diretor negro, o artista Emmanuel Araújo, responsável (segundo ele próprio) por revitalizar o museu, trouxe algum componente de olhar menos eurocêntrico nas exposições e obras do museu?

    Rosana Paulino – Sem dúvida, Emmanuel Araújo é um marco extremamente importante na história da arte no Brasil, na história das curadorias e na história na direção dos museus. O Emmanuel Araújo é responsável por grandes mostras ainda na Pinacoteca que vão tratar sobre a questão negra, como por exemplo Os Herdeiros da Noite e várias outras. Além disso, ele foi o primeiro diretor a comprar [obras de arte], a pensar um acervo sobre um olhar também afro-brasileiro. Isso sem dúvida torna o museu menos eurocêntrico. Os esforços do Emmanuel, e mesmo de diretores que vieram após ele, como Tadeu Chiarelli e agora o Jochen Volz, ajudam a fazer com que esse museu seja menos eurocêntrico, mas a gente tem que ter em mente que a coleção é muito grande, então vai demorar ainda muitos anos para que a gente tenha um equilíbrio, ou que a gente chegue próximos disso, nessa coleção [do museu]. Mas as exposições, o olhar do museu, sem dúvida, já começam a ter uma mudança.

    “Paraíso tropical”, de Rosana Paulino

    Ponte – Seus trabalhos sempre se caracterizaram por questionar problemas estruturais do Brasil, como racismo e desigualdades de gênero e de classe de uma forma afrocentrada. Como é para você trazer essas questões à Pinacoteca, um espaço ainda majoritariamente branco, masculino, eurocêntrico e classista?

    Rosana Paulino – A gente está tendo uma mudança nos olhares do museus e, enfim, a própria Pinacoteca está passando por esse processo. Então, sem dúvida nenhuma entrar com esses trabalhos na Pinacoteca do Estado é abrir uma frente nova, que começou a existir lá com Emmanuel Araújo, passa pelo Tadeu Chiarelli, o Jochen Volz agora. Eu acho que é ampliar essas novas possibilidades de se pensar a cultura brasileira e de se pensar a arte brasileira. É extremamente importante ter uma mostra que vai tratar de gênero, de classe e de raça na Pinacoteca do Estado num momento como esse que o país passa.

    Ponte – Historicamente, suas obras também abordaram as questões da eugenia e do racismo biológico. Essas pesquisas continuam? Como tem sido a reação do público a essas questões?

    Rosana Paulino – Sim, essas pesquisas continuam. Essas questões vão lidar com o racismo científico, que foi muito importante na formação da sociedade brasileira. São questões que ainda têm muito a ser estudado. Na maioria das vezes, as pessoas não sabem dessa história. Essa é uma história que foi varrida para debaixo do tapete no Brasil. A reação na maioria das vezes é de surpresa. É isso mesmo que eu quero, é trazer essa história para discussão. Nós lidamos com isso de um modo muito ingênuo. As pessoas não sabem disso, não se discute nas escolas. Elas ainda estão aí, plenamente fortes, ainda no ambiente brasileiro, na sociedade, então é absolutamente necessário que a gente traga essas questões relacionadas a pseudociências, ao uso da ciência como justificativa para a inferiorização e repressão de um povo. Enfim, questões que necessitam ser discutidas e postas na mesa. Minha ideia é continuar trazendo isso nos próximos trabalhos.

    “O Progresso das Nações”, de Rosana Paulino | Foto: Divulgação

    Ponte – Os debates eleitorais de 2018, que mostraram um viés fascista de uma parte da população brasileira — que se colocou contra os direitos humanos, os movimentos sociais, as lutas raciais e pela igualdade de gênero — influenciaram sua produção?

    Rosana Paulino – Não. Primeiro que essa postura adotada por alguma parte da população para mim não é surpresa nenhuma. Eu acho que você tem que estar muito desligado em não saber o que é esse país, para se surpreender com esse fascismo que emerge. Pelo menos no meu caso, em artes visuais, a gente gasta muito tempo em pesquisas. Um trabalho nessa exposição, por exemplo, tem um livro que se chama “História Natural”, com dois pontos de interrogação. Esse livro levou cinco anos para ser feito. Cinco anos para fazer um único trabalho que está na exposição. Eu não mudo a minha pesquisa por conta de mudanças no ambiente político, ou por conta de mudanças nas eleições, ou por conta de movimentos que surgem, porque a gente leva muito tempo desenvolvendo uma pesquisa e desenvolvendo uma resposta visual àquela pesquisa. A pesquisa em artes visuais é muito complexa. No meu caso, eu pesquiso história, biologia, política, ambiente da época, enfim, são pesquisas muito densas e que levam muito tempo para serem feitas. Então raramente minha obra vai mudar em resposta, por exemplo, a um evento como é esse da ascensão do fascismo. Mesmo porque essas raízes que vão levar ao fascismo já estão dentro do meu trabalho. O próprio racismo científico foi usado de maneira abundante por todos os fascismos.

    “As riquezas desta terra”, de Rosana Paulino | Foto: Divulgação

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