Sangue que mancha a nação: manifestação lembra os 30 anos do massacre do Carandiru

    Familiares de vítimas de violência policial e artistas fizeram manifestação no Parque da Juventude, local da antiga Casa de Detenção de São Paulo, onde 111 detentos foram assassinados em 1992

    Egressos do cárcera em intervenção artística em ato na zona norte de SP | Foto: Kaique Dalapola/Ponte Jornalismo

    No chão que há 30 anos escorria sangue de 111 homens mortos pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, novos líquidos vermelhos correram neste domingo (6), manchando uma representação da bandeira do Brasil. Era um ato em memória às vítimas do Massacre do Carandiru, no Parque da Juventude, zona norte da capital paulista, onde eram construídos os pavilhões da Casa de Detenção.

    “São 30 anos que nós estamos falando e as instituições tentam apagar e jogar em uma vala comum, como fizeram na ditadura militar, mas nós estamos aqui lutando, e vamos continuar lutando, para que esse espaço não seja um parque de diversão para a playboyzada, mas, sim, um espaço de memória e um lugar para gritarmos constantemente ‘Carandiru nunca mais’”, afirma Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Independente Mães de Maio e uma das organizadoras da manifestação. A performance foi intitulada de “Pátria Amada ou Nossa Bandeira sempre foi Vermelha de Sangue”.

    “O Massacre do Carandiru é uma das maiores expressões de chacina de uma população carcerária que está entre as maiores do mundo da qual sabemos – muitas sequer foram julgadas. Por isso, temos que lembrar todos os dias e denunciar o que são essas instituições como a polícia”, disse a professora Rita Frau, de 39 anos, militante do coletivo Pão e Rosas.

    Na intervenção artística que marcou o ato, a representação do sangue do povo pobre, preto e encarcerado foi espalhado nas cores verde e amarela da bandeira esticada no chão por 111 pessoas que já passaram pelo sistema carcerário e hoje fazem parte da Cia das Terroristas, grupo artístico interseccional.

    Manifestantes jogaram líquido vermelho em representação da bandeira do Brasil | Foto: Kaique Dalapola/Ponte Jornalismo

    “O Brasil produz esquecimento, para que a gente não lembre os nomes, o que aconteceu, e apagar nossa história. Quando a gente faz um ato como esse, a gente rememora e garante que não vai acontecer de novo, porque a história é isso, manter a memória viva para que não se cometa o erro de novo”, conta a atriz Lucimelia Romão, de 34 anos, uma das responsáveis pela performance Mil Litros de Preto.

    O ato iniciou às 15h com as apresentações, e contou com a presença de dezenas de familiares de vítimas do Estado, entre elas os movimentos independentes Mães de Maio e Mães de Osasco, além de mulheres que perderam o filho no Massacre de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, em dezembro de 2019.

    A líder das Mães de Maio destacou que atos como esse fortalecem as mulheres para continuar a busca por justiça. “A memória faz com que a gente se alimente e continue vivo. São 30 anos de um massacre vergonhoso, dentro de uma democracia onde se mata mais de 111, porque a gente sabe que os dados oficiais negam a existência de outras vítimas, e é permitido cair em uma ‘vala comum’. Mas nós não vamos deixar esquecer nunca, não vai ser anistiado, pois quem pratica um massacre desse, assim como fizeram nos crimes de maio [de 2006], precisa sentar no banco dos réus”, disse Débora.

    Mulheres que perderam os filhos durante manifestação em memória às vítimas do Carandiru | Foto: Kaique Dalapola/Ponte Jornalismo

    Uma das mulheres que perdeu o filho no Baile da Dz7, onde ocorreu o massacre de Paraisópolis, era a empregada doméstica Adriana Regina dos Santos, 50 anos. Ela era mãe de Dennys Guilherme dos Santos Franca. Ela disse que foi ao Parque da Juventude para “denunciar o genocídio que existe”.

    Fazendo um paralelo com o Massacre do Carandiru que aconteceu em outubro de 1992 com o Massacre de Paraisópolis, Adriana destaca “a nova forma da polícia matar, porque os nossos nove foram ‘asfixia mecânica aguda’, e agora vemos frequentemente essa nova forma da polícia tirar sangue, que é tirando o ar”.

    Adriana estava vestida com uma camiseta com o rosto de seu filho e dos outros oito que morreram após ação da Polícia Militar em Paraisópolis. Quem também vestia essa mesma camiseta era a pesquisadora Maria Cristina Quirino Portugal, de 43 anos. O filho dela, Denys Henrique Quirino, também foi morto em Paraisópolis.

    Maria ressaltou a importância de mães e familiares de outros casos de violência de Estado estarem juntas na busca por justiça e pela memória das vítimas. “A única maneira que temos de manter a memória do nossos filhos viva é manifestando contra essa polícia, contra esse Estado assassino que tirou o filho da gente, e ver outras mães que já estavam nessa luta apoiando nós, que somos mães que acabamos de chegar nessa luta, nos fortalece”, conta.

    “Relembrar e ter atos como esse ajudam com que as mães possam organizar as emoções e sentimentos. Uma mãe que perde o filho assassinado, principalmente pelo Estado, é um processo de luto que, enquanto ela estiver em vida, vai buscar essas ações para que mantenha a memória do filho viva, portanto, de alguma forma, é extremamente importante para que a mãe possa se manter de pé, e siga tendo objetivos na vida”, explicou a psicóloga Cristiane Uchoa Pinheiro.

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    A intervenção artística terminou pouco antes das 17h, e o “terrorista poético” Murilo Gaules, de 35 anos, um dos organizadores da apresentação artística com a representação da bandeira nacional considerou o ato positivo, sobretudo por ter tido a participação de mais de 100 egressos do sistema carcerário em um momento de reunião e reconhecimento da realidade.

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