Casos de PMs que abriram fogo contra colegas dentro de quartéis, como em Salto (SP), levantam suspeitas de que crimes tenham relação com condições de trabalho; “existe preconceito contra quem busca apoio”, diz ex-PM
Em pouco mais de um mês, três casos de policiais que mataram colegas dentro de dependências de forças de segurança pública chegaram aos noticiários. O mais recente deles aconteceu em Salto, no interior de São Paulo, nesta segunda-feira (15/5), quando o sargento Claudio Henrique Frare Gouveia matou a tiros de fuzil o comandante da unidade que trabalha, capitão Josias Justi da Conceição Júnior, e o sargento Roberto Aparecido da Silva, que estava na mesma sala do capitão.
Um dia antes, um policial civil identificado como Antônio Alves Dourado invadiu uma delegacia e matou os escrivães Antônio Claudio dos Santos, Antônio José Rodrigues Miranda e Francisco dos Santos Pereira e o inspetor Gabriel de Souza Ferreira, na cidade de Camocim, no norte do Ceará.
Em abril, como a Ponte revelou, o sargento Rulian Ricardo da Silva foi morto a tiros pelo comandante da unidade que trabalhava, capitão Francisco Laroca, na zona sul da capital paulista.
Na ocorrência do Ceará logo após os crimes, o inspetor gravou um vídeo dizendo que foi “humilhado, achincalhado, transformado em um lixo, perseguido”. A defesa de Dourado disse à Folha que o policial passava por problemas psicológicos ligados ao exercício da profissão e essa seria uma das hipóteses dos crimes.
Já em São Paulo, as suspeitas iniciais dos conflitos são insatisfação sobre escalas de trabalho. O advogado Rogério Augusto Dini Duarte, que representa o sargento Gouveia, disse ao UOL que o PM havia sido incluído na mesma escala de trabalho da esposa, que também é policial na mesma unidade, e, com isso, o casal não teria com quem deixar os três filhos pequenos.
No caso do sargento Rulian, segundo companheiros de farda, ele discutiu com seu superior porque estava insatisfeito com a sua escala de plantões, que o impedia de retornar para sua casa na cidade de Franca, no interior paulista, a 416 km de distância da capital. Na época, policiais denunciaram à reportagem que gritos e humilhações fazem parte do cotidiano de quem serve na 4ª Companhia do 46º Batalhão da Polícia Militar Metropolitano (BPM/M) e que a mudança de escala de trabalho estava sendo usada como um tipo de punição dentro do quartel por causa de danos a viaturas.
Dentro da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o regime de trabalho operacional é de 12h de serviço com 36h de folga (sejam praças, que é a categoria mais baixa, ou oficiais, categoria superior da corporação). Contudo, essa escala fixa pode ser alterada a depender do tipo de atividade desempenhada ou local de atuação e a mudança é determinada pelo comandante da unidade em que o policial trabalha. O comandante tem um auxiliar direto para assuntos administrativos, como a questão das escalas, chamado de sargenteante, que geralmente é um sargento.
Apesar de não ser uma justificativa para os assassinatos, as condições de trabalho podem ser um dos fatores que levaram os policiais a praticar atos extremos, aponta Adilson Paes de Souza, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES) e tenente-coronel da reserva da PM paulista.
Isso porque, para além das 12h de serviço, existem outras dinâmicas que podem estar vinculadas a esses casos. “Nós temos, cada vez mais, a questão do bico na Polícia Militar. Mexer com a escala de serviço, para além das questões familiares, médicas, pessoais, poderá também envolver a atividade extra-corporação em que o policial trabalha buscando ter um aumento na remuneração mensal para tocar a sua vida”, exemplifica Adilson. “Também temos o bico oficial, ou seja, a Polícia Militar, através de convênios com as prefeituras, estimula as chamadas Operações Delegadas, onde o próprio Estado paga para o policial trabalhar no horário de folga”.
O pesquisador aponta que o policial adoece por ter que trabalhar num momento de descanso e por não ter suas condições específicas levadas em consideração. “Além da questão financeira, do bico, a falta de oportunidade de descanso, de lazer, que vai aumentar o estresse na vida do policial e vai lhe submeter uma sobrecarga de trabalho considerável, tem as questões pessoais, como esse casal que tem filhos e precisa do horário determinado”, explica.
Ele enfatiza que o adoecimento é uma “somatória de eventos” e não uma única situação. “Se essa circunstância [do cuidado dos filhos] estiver mesmo presente, pode não ser suficiente para determinada pessoa estourar e fazer o que fez, mas considerando os problemas de cada pessoa, considerando o grau de estresse a que foi submetida, considerando as particularidades dela como indivíduo, a subjetividade de cada um, essa questão [da escala] pode ter sido a gota d’água para ter um acesso de fúria para fazer o que fez”, pondera.
Adilson lembra, ainda, que o déficit no efetivo gera uma sobrecarga de trabalho aos policiais. Hoje em torno de 80 mil policiais trabalham no estado de São Paulo e não houve evolução em comparação com o aumento da população para, consequentemente, atender as demandas.
O ex-policial militar Leandro Prior, que permaneceu sete anos na corporação paulista, sinaliza que o ambiente militar não enxerga e não permite a expressão de individualidade dos policiais. Alvo de homofobia e perseguição política, ele decidiu deixar a PM após ter desenvolvido depressão e ansiedade.
“Não é só por causa do salário defasado há décadas, é porque dentro do militarismo o oficialato faz questão de perseguir, humilhar da forma mais velada possível até que você acabe se matando ou matando seu comandante”, afirma. “O policial não tem identidade de trabalhador comum porque o trabalhador comum se reúne, discute, briga por melhorias de direitos e não existe briga por melhorias de direitos no militarismo. O policial vai acabar preso por insubordinação ou por não cumprimento de ordem”, explica.
Adilson, que se debruçou em suas pesquisas sobre saúde mental de policiais, destaca que “a saúde psíquica do policial militar ainda é um assunto que é tabu na instituição” e que por isso não é devidamente tratada, apesar de existir uma rede psicossocial na corporação. “Há inúmeras reclamações de policiais dizendo que esse serviço não é, na prática, bem executado e que a atenção psíquica deles não é bem atendida. Essa reclamação não é de hoje, de que no papel é uma realidade e no dia a dia é outra realidade”, analisa. “O policial militar está trabalhando enfermo e, com isso, tudo pode acontecer, infelizmente”.
Prior, que buscou essa rede na época, concorda. “Existe um preconceito de que se você procura ajuda, você é menininha”, denuncia. O fato de serem policiais militares com especializações da área da saúde, para ele, também não permite que a pessoa adoecida se sinta confortável ou deixe de ter receio de algum tipo de retaliação. “Para ser um serviço bom, tinha que ser fora do militarismo para que o policial tenha confiança de que aquelas informações únicas não vazem e ele consiga buscar meios terapêuticos ou medicamentosos para que ele consiga sair desse transtorno, seja ele qual for”, diz.
Apesar de a gestão atual ter anunciado novos concursos para ingresso de policiais e ter apresentado projeto de aumento salarial para a categoria, os entrevistados apontam que ainda é insuficiente para sanar todos os problemas. “É uma medida muito importante, mas não é a única porque não é de hoje que fatos ocorridos nas polícias militares do Brasil indicam graves questões a serem enfrentadas em relação à saúde mental do policial”, avalia Adilson Paes de Souza.
Ele aponta que a corporação é “muito fechada” e não promove interlocução com outras instituições para buscar avaliar e melhorar o que é feito dentro da PM. “É preciso haver programas que efetivamente deem conta dessa questão, que saibam equacionar e encaminhar essas questões para atingir um resultado melhor na proteção da saúde psíquica do policial”, analisa.
O que diz o governo
A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública e a Polícia Militar de São Paulo sobre a investigação dos casos bem como sobre as condições de trabalho dos policiais e atendimentos psicológicos e psiquiátricos. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, encaminhou a seguinte nota:
As polícias do Estado de São Paulo contam com um sistema de saúde mental que é referência dentro e fora do país dentre as forças de segurança. Os efetivos da Polícia Civil e da Polícia Militar têm acesso a uma rede de atendimento psicossocial dotada de Centro de Atenção Psicológica e Social (CAPS), 41 núcleos (NAPS), uma Divisão de Prevenção e Apoio Assistencial, no Departamento de Administração e Planejamento (DAP), além de e mais de 120 psicólogos para pronto atendimento, distribuídos por todo o Estado. O Sistema é capaz de oferecer apoio a 100% do efetivo e pode ser acionado pelo próprio policial, seu comandante ou superior hierárquico ou ainda por um colega de trabalho.
A SSP também realiza periodicamente eventos como seminários, palestras e aulas nas academias que buscam levar aos profissionais de polícia informações importantes, de caráter preventivo. Uma cartilha com orientações também é disponibilizada a todo o efetivo. Todas essas medidas de prevenção e promoção de saúde mental são adotadas em razão da complexidade da atividade policial, independentemente do local onde ela é exercida.
Em relação ao caso da Capital, todas as circunstâncias relativas aos fatos seguem sob investigação, sob sigilo, por meio de Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado pela Corregedoria da Polícia Militar. Por se tratar de um crime militar, as apurações ocorrem por meio de procedimento pré-processual adequado, como previsto em lei, a fim de garantir a integridade da coleta de provas. Os policiais citados, envolvidos na ocorrência, estão afastados das atividades operacionais e exercendo atividades administrativas. Sobre o caso de Salto, todas as providências de Polícia Judiciária Militar estão em andamento e a Corregedoria acompanha as apurações.