Religiosos estavam pegando punhado de terra na frente do Memorial Bom Retiro em São José dos Campos, no interior de SP, quando dois homens uniformizados os abordaram; um deles teria disparado ao menos três vezes
Wellington Gomes Toledo, 22, diz que ficou três dias sem dormir e que está traumatizado. “Foi um sufoco, um susto que a gente passou a troco de terra”, lamenta. No dia 19 de agosto, por volta das 17h30, ele conta que estava com mais três pessoas em um carro e pararam na frente do cemitério Memorial Bom Retiro, em São José dos Campos, no interior paulista, para pegar um punhado de terra da calçada.
Trajado de branco e com um torço azul e branco na cabeça, Wellington lembra que pegou um punhado da terra e um segurança branco, baixo e de bigode apareceu. “Um dos seguranças me abordou no portão na hora que eu estava amarrando a sacolinha e falou ‘o que você tá pegando aí?’ e eu disse ‘estou pegando um punhado de terra'”.
Em seguida, viu outro, também branco, alto e careca. “Nisso outro segurança veio lá de dentro [do cemitério] xingando ‘quem deixou pegar a terra? a terra não é sua, é do condomínio’. Eu levantei a sacolinha e disse ‘moço, é um punhado de terra’. [Ele disse] ‘Você não vai pegar nada, seu macumbeiro safado, desgraçado’. Eu me virei para entrar no carro, ele já começou a efetuar os disparos, e eu falei para o rapaz que estava dirigindo para acelerar”.
Wellington conta que os dois estavam uniformizados e tentaram perseguí-lo usando um carro branco com adesivo do cemitério. “Eles vieram com o carro atrás e conseguimos despistar eles num cruzamento em que vinha outro carro e levantou poeira nas duas vias da estrada”, disse ao mencionar que passaram por uma estrada que leva à cidade vizinha de Caçapava.
“O segurança disse que não ia permitir nenhum ritual satânico e que a terra era propriedade do cemitério”, denuncia o babalorixá Dyego Silva Almeida, 35, que estava com Wellington e é responsável por um terreiro de candomblé. “Ele apontou a arma para o veículo e começou a atirar. O primeiro disparo passou por cima do veículo, o segundo disparo pegou na parte de baixo do carro, a porta ainda estava aberta”, prossegue. “Na estradinha que a gente pegou para Caçapava, ainda deram mais um tiro atrás da gente, ficamos desesperados”.
Dyego explica que a terra seria usada para um ritual da religião de matriz africana e a escolha do cemitério se deu porque era o mais próximo do terreiro onde realizam os ritos. “Existe esse ritual dentro da nossa religião que é quando vamos agradar uma entidade chamada Exu e precisamos de alguns elementos que vêm da natureza. Exu é dono dos caminhos, então temos os caminhos que são as encruzilhadas, que são as ruas, são caminhos onde ele passa. Nós precisávamos da terra da porta do cemitério porque essa entidade reina na porta do cemitério, mas nem entramos dentro porque sabemos que é particular, pegamos apenas um punhado na rotatória em frente”.
A vendedora Kellen da Costa Pereira, 42, que também estava com Dyego e Wellington, ainda retornou à porta do cemitério para buscar informações sobre os seguranças. Em um vídeo curto, de seis segundos, ela pergunta ao porteiro que está dentro da cabine o nome da empresa. Ele responde “Vip Master” e depois fecha a janela, não respondendo mais. “Eles vieram atrás da gente com o carro da empresa, por isso voltei lá para saber porque achei o cúmulo terem feito aquilo. Mas quando cheguei, estava só um menino novinho, os outros dois seguranças não estavam lá nem o carro”, conta.
De acordo com o babalorixá, o tiro que pegou no carro só foi notado quando conseguiram sair da estrada e chegar ao terreiro. Ninguém se feriu e resolveram chamar a Polícia Militar. “Ficamos numa rua distante do cemitério porque tínhamos medo de os seguranças aparecerem de novo. Os dois policiais pediram para a gente aguardar e foram até o cemitério”, disse. Depois de cerca de uma hora, segundo Dyego, os PMs retornaram e disseram que a câmera que aparece na fachada do local não teria gravação do ocorrido e que o porteiro do cemitério teria dito que não tinha outras pessoas trabalhando lá além dele. “Um dos policiais nos chamou de canto e disse que tinha um PM que trabalhava lá e que poderia ter sido ele, que se chamava Rabelo, e nos orientou a procurar o distrito policial”.
A Ponte apurou que a empresa se chama Vip Master Security Zeladoria Patrimonial Ltda., que foi aberta em julho deste ano, mas informa estar em atividade desde o ano passado. A empresa tem como atividades econômicas “serviços combinados para apoio a edifícios, exceto condomínios prediais”, “atividades paisagísticas”, “serviços de pintura de edifícios em geral”, “atividades de teleatendimento”, “serviços combinados de escritório e apoio administrativo”. Ou seja, nenhuma indicação de atuação com segurança privada, apenas portaria. O site da empresa informa, além dessas atividades, a atuação de vigilantes.
Para uma empresa prestar serviço de segurança privada bem como pessoas atuarem como vigilantes, em ambos os casos é necessário autorização da Polícia Federal. A Vip Master não tem cadastro junto ao órgão. Perguntamos à assessoria da PF se havia algum vigilante cadastrado junto à empresa e aguarda uma resposta. Como já apontamos em reportagens anteriores, porteiro não é o mesmo que segurança ou vigilante por ser apenas um controlador de acesso, não um agente que necessita de qualificação e regulamentação sobre a profissão bem como porte de armas.
A Vip Master tem como sócia Claudiane Gonçalves Batista Rabelo e o filho menor de idade que é representado pelo pai Edson Cordeiro Rabelo. Edson não é policial militar. Ele prestou concurso para soldado em 2014, mas foi eliminado ao ser considerado “inapto” na parte de investigação social do edital, que trata de avaliação da vida pregressa em que são avaliadas condutas incompatíveis com a função como, por exemplo, ser alcoólatra ou ter registro na polícia. O ofício da PM tratando da reprovação informa que Edson “não atende aos requisitos de conduta ilibada irretocável e de idoneidade moral, exigidos para o cargo almejado, pois os fatos presentes e pretéritos vivenciados pelo Interessado demonstram a quebra de regras convencionadas pela sociedade, que com o passar do tempo prejudicaram sua reputação”. Ele tentou dar continuidade aos exames ao ingressar com uma ação no Tribunal de Justiça de São Paulo, mas não conseguiu.
A Ponte teve acesso ao formulário do edital que ele respondeu, em 2015, no qual consta que ele tem parentes na Polícia Militar, tem porte de arma e já trabalhou como “supervisor de segurança”, apesar de também não ter cadastro na PF. No caso, ele respondeu que não esteve envolvido com ocorrência policial, porém há um termo circunstanciado (registro para infrações de menor potencial ofensivo) de março de 2015 por usurpação da função pública sobre ele ter se passado por policial civil, o que pesou na eliminação.
O registro informa que Edson foi a uma loja que vende equipamentos exclusivamente para policiais com objetivo de comprar uma carteira funcional e um distintivo. Quando o balconista o solicitou a identificação de policial e onde era lotado, disse que integrava o 96º DP e que esqueceu a carteira, apresentando o RG e um registro de colecionador de armas. Já no caixa, quando foi solicitada novamente a funcional para retirar os produtos, Edson revelou não ser policial e que devolveria a mercadoria quando foi visto por um policial do hoje extinto GOE (Grupo de Operações Especiais), atual Garra (Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos), que o conduziu à delegacia.
Além disso, foto do Linkedin da empresa mostra dois veículos em frente ao cemitério, sendo um deles similar à caracterização de uma viatura policial.
A Ponte tentou contato com a empresa pelo telefone disponível no cadastro da Receita Federal, que não foi atendido. Pelo e-mail disponível no site, que não foi respondido. Pelo número de WhatsApp cuja atendente é uma corretora de nome Rosemary Gomes que disse não fazer parte da empresa, que só ajudava na divulgação. Ela disse que ia passar o número do proprietário, mas ele não autorizou. Depois, disse que encaminhou o contato da reportagem para ele se manifestar, mas, até a publicação, não houve resposta. Também ligamos para o Centro Comercial Le Classique cuja recepcionista confirmou que há cadastro da empresa no local, mas não tem telefone para fornecer.
A reportagem também buscou o Memorial Bom Retiro por e-mail, que não respondeu. Por WhatsApp, cuja resposta era de que atendia apenas clientes, e por telefone cuja atendente disse ser responsável apenas pelos casos de óbitos e que não teria outro telefone para informar nem responder os questionamentos.
Perícia do próprio bolso
Dyego Almeida afirma que o processo de formalizar a ocorrência também foi “tumultuosa”. “A gente queria registrar o caso no mesmo dia, foi no 3º DP, mas o delegado disse que estava cheio e que era para ir em outra delegacia”, afirma. Também disse ter tentado registrar em outras, mas que os funcionários diziam para retornar no dia seguinte. O boletim de ocorrência de fato foi feito no dia 23 de agosto, mas ainda teve problemas. “O delegado não estava, então quem fez foi um investigador, só que o nosso advogado disse que o documento não tem validade sem a assinatura do delegado e que nos artigos dos crimes que a gente denunciou não tinha tentativa de homicídio e intolerância religiosa”, prossegue.
O registro foi retificado com os crimes de constrangimento ilegal, tentativa de homicídio, ameaça, contravenção penal de disparo de arma de fogo e discriminação por religião com base na Lei de Crimes Raciais. O delegado Fernando Pato Xavier, do 6º DP de São José dos Campos, solicitou a realização de perícia no veículo.
Mas Dyego afirma que um dos peritos teria dito que não conseguiriam realizar o procedimento e que aguarda uma resposta da delegacia. “Ele disse que não tinha os materiais necessários para cortar o carro e retirar a bala e que eu, a vítima, teria que tirar do meu próprio bolso arrumar isso, mas a perícia também poderia ser invalidada por isso”.
O que diz a polícia
A Ponte questionou sobre a denúncia das vítimas, o registro policial, sobre a perícia e a investigação do caso bem como sobre Edson Rabelo. Até a publicação, não houve resposta.