Sem amparo legal, militares usam celulares pessoais para ‘fichar’ moradores de favelas

    Militares tiraram fotos do RG e do rosto de pessoas em três comunidades na zona oeste do Rio. ONG Justiça Global comparou ação ao apartheid e diz que ‘nem ditadura’ adotou esse procedimento

    Militar revista morador de comunidade fluminense | Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

    Homens do Exército com celulares pessoais registram o documento de identidade e o rosto de todas as pessoas que passam. Essa cena se repetiu por três comunidades do Rio de Janeiro na manhã desta sexta-feira (23/2): Vila Kennedy, Vila Aliança e Coreia, todas na zona oeste do Rio.

    A operação obedece a um decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) assinado no ano passado, sem ligação oficial com intervenção federal anunciada pelo presidente Michel Temer (PMDB). O objetivo oficial era o de combater o tráfico de drogas local e retirar bloqueios nos becos e vielas que teriam sido feitos por criminosos para dificultar a entrada de autoridades. Os militares, porém, fizeram muito mais do que isso: segundo testemunhas, praticaram uma série de abusos, do “fichamento” informal da população à destruição de calçadas.

    “O Exército estava tirando barricada na operação e do lado tinha a calçada do pai de uma amiga, não quiseram nem saber, passaram por cima, quebraram toda a calçada. Mesmo ele falando com os militares, foi ignorado ali na hora”, conta o fotógrafo Junior Santana, de 23 anos. Júnior viu os vizinhos serem abordados e “fichados” pelos policiais.

    “Acho um desrespeito e humilhação puxar celular e começar a tirar foto das pessoas. Nem câmera profissional era. Se fosse e falassem que fariam um registro oficial, era outra coisa. Mas tirar um celular do seu uso e registrar no meio da rua é meio estranho, humilhante”, lamenta.

    Os militares se encaminharam para as comunidades no período da manhã. Há relatos de pessoas impossibilitadas de irem para o trabalho por não portar o RG ou outro documento com foto. A ação é criticada por especialista, ao ponto de comparar a situação com a época do apartheid, regime de segregação racial imposto na África do Sul até os anos 1990.

    “É uma ação totalmente arbitrária, uma violação de direitos. Violaram o direito de ir e vir, mais um pouco e passa a ser como a Lei do Passe da África do Sul na época do apartheid, quando se tinha uma carteirinha de onde você podia circular ou não. No Rio, é quase isso”, compara Lena Azevedo, especialista em segurança pública e pesquisadora da ONG Justiça Global.

    Segundo a pesquisadora, não há registros de situações semelhantes ocorridas no período da ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985. “É totalmente um Estado de Exceção. Nem na ditadura me lembro desse tipo de fichamento. O que será feito? Evidentemente, o objetivo é o controle da população negra e favelada. Não se viu um fichamento em Copacabana”, diz.

    Militares também averiguavam antecedentes dos moradores | Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

    A Justiça Global enviou um documento à ONU (Organizações das Nações Unidas) e à OEA (Organização dos Estados Americanos) pedindo o acompanhamento da situação no Rio de Janeiro por membros das entidades. No documento, consideram a intervenção cheia de “irregularidades e incompatível com tratados e convenções internacionais”, além de “ameaçar direitos e garantias individuais da população”.

    Lena cita o caráter “de discriminação de teor racial” e lembra da época em que a Favela da Maré sofreu ocupação do Exército para citar transtornos causados aos moradores, como blitze em cada comunidade do Complexo. “Uma vez, um morador parou em 17 blitze em um dia só”, lembra.

    “Casos como esse aconteceram em 2014, 2015, quando o Exército esteve na Maré. A prática de tirar foto das pessoas, revistar celulares, olhar as conversas, foi utilizada pelo Exército durante um ano e quatro meses que ficaram na comunidade”, cita Gizele Martins, jornalista e moradora da Maré desde a infância.

    “Por dia, estamos sofrendo seis ou sete ações nas favelas por dia. O resultado é: o número de violações têm aumentado. Quem vai responder por essas denúncias, para onde irão? É legal não é?”, provoca.

    A Ponte entrou em contato por telefone com o Comando Militar do Leste, chefiado pelo interventor Walter Souza Braga Netto, para questionar sobre a operação do Exército. Contudo, as ligações da reportagem não foram atendidas. Ao G1, o chefe da comunicação social do setor disse que o procedimento já havia sido feito em outras ocasiões e que estaria amparado no decreto da GLO. O texto do decreto, porém, não menciona a fotografia nem o fichamento de pessoas.

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