Família vive em construção de tábua perto de Belém e está entre os 24,4% da população do Norte sem moradia adequada
Clay Luiz Nascimento Cirilo tem 38 anos e trabalha como auxiliar de portaria. Recebe um salário mínimo e mora com a mulher, Mirian Neves Aquino, de 24 anos, e as filhas Rebeca, de 8, e Raiane, de 6, em uma casa de um cômodo na ocupação Laércio Barbalho, localizada na Rodovia do Tapanã, bairro afastado do centro de Belém. Esta é a primeira vez que a família mora em um terreno ocupado. Motivo: o alto preço do aluguel. Na região Norte, 24,4% das pessoas são privadas do direito à moradia adequada: ou arcam com alugueis excessivos ou têm casas construídas com materiais não duráveis e sem banheiro de uso exclusivo no domicílio. Clay, Mirian, Rebeca e Raiane estão entre eles.
Os brasileiros sem direitos
Sem direitos: A mãe de um jovem negro que não teve direito à vida
Sem direitos: família não tem computador nem celular conectado
Sem direitos: 28,2% da população não têm acesso à educação
Sem direitos: sem Bolsa Família nem aposentadoria
Sem direitos: sem água, esgoto e coleta de lixo
A família chegou a morar na casa de parentes, mas com as crianças ficou difícil. Foram para um local com dois cômodos, pelo qual pagavam R$ 400 de aluguel mais R$ 100 de energia e R$ 50 de água. “Não sobrava nada do salário”, explica. Só no Estado do Pará, mais de 200 mil pessoas vivem em domicílios com ônus excessivo de aluguel, segundo dados do IBGE.
Para Clay, apesar de as condições no local não serem as melhores, deixar de pagar aluguel é um alívio. “Eu tenho que comprar comida, livros para as meninas, remédio, o dinheiro não dava. A minha mulher fica em casa com as crianças porque não temos com quem deixá-las. Então, eu sustento nós quatro”, afirma.
A casa, chamada de casa da Barbie, é rosa porque Clay perdeu – em uma votação com a mulher e as filhas – o direito de escolher a cor do novo lar. “Elas são maioria, mas aqui dentro vai ser branco”, diz. Mirian devolve: “Ficamos com pena e deixamos ele escolher a cor de dentro”, brinca.
Para dormir, a família usa rede e as roupas ficam penduradas na parede por um prego. Quando a equipe de reportagem chegou, o chão ainda estava cheio de mato, mas a janela da casa era de correr e todos pareciam muito felizes com a moradia, apesar da precariedade. Como banco, para se sentarem, eles usam um latão de plástico, de armazenar manteiga, e também um pedaço de compensado no chão.
Tudo no lugar foi feito pela família de Clay: levantaram a casa, de tábuas, e pintaram-na. As crianças ajudaram e até martelaram pregos. “Meu sonho é construir uma casa de dois andares, sabe? Eu gosto de olhar as coisas de cima”, diz Clayton. “Até já sei como vai ser o quarto das meninas”, diz o pai, com sorriso no rosto.
O auxiliar de portaria investiu cerca de R$ 800 na construção, mas o terreno ainda não é deles. “Acredito que o importante é ter o lugar.
Para a arquiteta e urbanista Ana Luiza Nobre, professora da PUC-Rio, o mais preocupante na precariedade das moradias é a falta de saneamento. “É um problema dos mais graves e urgentes, pelas suas consequências altamente nocivas para a saúde e bem-estar dos cidadãos, das cidades e do meio ambiente”, sustenta. Ela acredita que a construção de banheiros públicos poderia amenizar o problema: “eles são equipamentos urbanos importantes em grandes cidades – seja em favelas ou não -, embora no Brasil, infelizmente, sejam bem raros”.
Na Índia, cita a arquiteta, existe uma campanha – Clean India – lançada pelo governo para estimular a construção deles. “Ela corre em paralelo com experiências recentes e bem interessantes de construção de banheiros públicos em áreas carentes, administrados e mantidos com a participação da comunidade onde se situam”. Entretanto, ela lembra que, nas favelas brasileiras, só a construção de tais banheiros não solucionaria a questão, já que o saneamento também passa pela distribuição de água e coleta de esgoto.
Quanto às construções de matérias não duráveis, a professora enfatiza que não são necessariamente um problema. “A própria história da arquitetura está cheia de exemplos de boas arquiteturas efêmeras”, sustenta. “O importante, no caso da habitação, seria prever a manutenção e substituição periódicas dos materiais”. Embora exija uma série de cuidados, a construção em pau a pique – ou terra, de um modo geral – já inspirou pesquisas inovadoras que poderiam fundamentar políticas públicas de habitação no Brasil, afirma Nobre. “Uma das experiências mais interessantes em termos de habitação social no Brasil foi feita justamente com taipa, em Pernambuco, nos anos 1960, e só não teve continuidade devido ao golpe militar”, ela relata.
A falta de banheiro no domicílio é também um sintoma da fragilidade da casa de Isaac Santos, de 58 anos, um dos companheiros de Clayton na ocupação Laércio Barbalho desde dezembro de 2018. A casa tem apenas um cômodo. Ao fundo, foram improvisados uma pia e um local rodeado de lona preta, que serve para tomar banho com alguma privacidade. Dentro, uma cama de solteiro com um mosquiteiro suspenso e uma rede. As roupas penduradas na parede com pregos e os poucos sapatos em um canto, em cima de uma caixa de verduras vazia, compõem o cenário de tudo o que a casa abriga.
“Não sei quanto gastei na casa, mas estou todo endividado. Comprei as tábuas e ganhei as telhas de um amigo”, conta. O terreno atual tem 15 m², o antigo tinha 4 m². De sorriso largo, pele negra e cabelos lisos, Seu Isaac é um sobrevivente. Chegou a Belém aos 12 anos. Os pais, que já morreram, eram lavradores. Nos empregos com carteira assinada que já teve, sempre constou “auxiliar de produção”, mas, na prática, já foi servente, garçom e agora é ambulante. O dinheiro que ganha, menos de um salário mínimo, não cabe no orçamento para comprar a casa própria para ele, o filho, a nora e a neta.
À frente da cama, em uma cômoda, uma televisão de tubo divide espaço com vários sacos de farinha d’água empilhadas, uma cuba de ovos e alguns caixotes de plástico. Indagado se comerciante, Seu Isaac corrige: “ambulante”. E é com um carrinho levando diversos produtos que ele anda pelas ruas da cidade e consegue algum sustento. O chão da casa foi coberto por vários tapetes, que ele colocou para manter o lugar arrumado. “Sou pobre, mas gosto de tudo limpo”, diz Seu Isaac, ao lado do filho, de 28 anos, que concorda com um movimento das sobrancelhas.
Conhecido na comunidade como o primeiro morador do Conjunto Laércio Barbalho, Seu Isaac está no terreno há dois meses. Por 15 dias, dormiu debaixo de uma lona preta suspensa por alguns pedaços de madeira. “Não trouxe nada: só uma cama, uma rede e minha mochila com roupa. Desde que meu filho tinha 15 dias, eu vivo essa vida de ocupar lugares”, conta.