Sem proteção estatal, assassinatos de pessoas trans crescem 10% em 2023: ‘vergonha’

Dossiê da Antra mapeou 145 assassinatos, a maior parte deles de travestis e mulheres trans jovens, negras e em vulnerabilidade social; São Paulo é o estado que liderou estatística, com 19 mortes

Marcha do Orgulho Trans realizada em junho de 2018 em SP | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Enquanto parlamentares brasileiros apresentaram um projeto de lei antitrans por dia, Thalita Costa, 21 anos, virou estatística. A jovem trans foi encontrada morta em setembro de 2023 na casa em que vivia no Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo. O rosto e o corpo dela tinham sinais de violência e o caso foi registrado como homicídio. O caso não é isolado. No ano passado, 145 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, número 10,7% maior do que o registrado no ano anterior. 

O dado é do “Dossiê assassinatos e violências contra travestis e pessoas transexuais brasileiras em 2023“ lançado nesta segunda-feira (29/1) pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). O documento está disponível no site da instituição e também será apresentado na segunda (29) em evento realizado no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), em Brasília, com a presença do ministro da pasta, Silvio Almeida. Na mesma data é comemorado o Dia da Visibilidade Trans, celebração instituída há 20 anos.

O panorama mapeado é cruel e apavorante, diz Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra. “O Estado brasileiro deveria se envergonhar de há tanto ser um produtor de mortes de pessoas trans e ainda ter melindres em assumir a defesa da vida dessas pessoas”, fala. 

A pesquisa teve como fontes dados governamentais, como os do Disque 100, órgãos de segurança pública, processos judiciais e de órgãos da justiça, além de reportagens jornalísticas. A última categoria, destacou o estudo, foi a principal fonte de informação “devido à ausência ou dificuldade de acesso, ou subnotificação por parte do Estado”. 

No monitoramento que faz desde 2017, a Antra conseguiu mapear um total de 1.057  assassinatos de pessoas trans, travestis e pessoas não binárias brasileiras. O pior ano até aqui foi justamente o que iniciou a série histórica, quando 179 mortes foram confirmadas pela associação.

Em fevereiro daquele ano, a travesti Dandara dos Santos, 42 anos, foi assassinada com socos, chutes, pedradas, golpes de madeira e um tiro no bairro de Bom Jardim, periferia de Fortaleza. O crime foi gravado e divulgado em redes sociais, e a morte ganhou repercussão internacional pela brutalidade.

Em 2021, o último dos oito denunciados pelo crime foi condenado por homicídio triplamente qualificado. Os demais réus também acabaram condenados nos mesmos termos. 

Perfil das vítimas 

O Dossiê também se dedicou a traçar o perfil das vítimas. Em 2023, como nos anos anteriores, as vítimas eram jovens. A maioria delas (136 das 145 mortes) eram travestis e mulheres trans/transexuais. Apesar da ausência em muitos dos casos do registro sobre a cor, quando foi possível obter a informação, se verificou que a prevalência era de negras e estavam em situação de vulnerabilidade.

Também houve dificuldade em identificar a atividade exercida pelas vítimas. Contudo, quando se pode verificar, se obteve o dado de que 57% dos assassinatos foram direcionados contra travestis e mulheres trans que atuam como profissionais do sexo.

Os assassinatos, em sua maioria, foram cometidos por armas de fogo (24%) e uso de arma branca (20%). Quanto à idade, a maioria das vítimas tinha entre 18 e 29 anos (49,6%). Em 2023, assim como já tinha ocorrido em 2021 com o assassinato de Keron Ravach no Ceará, foi notificada a morte de uma adolescente de 13 anos e dois casos em que as vítimas tinham apenas 16. 

“Nós temos muita preocupação com a forma com que a juventude trans, a maioria dos assassinatos, está sendo exterminada. Elas vêm sendo identificadas como pessoas que ameaçam a sociedade por conta de narrativas que nos antagonizam, por narrativas que colocam pessoas trans como inimigas das mulheres, como inimigas das crianças, ou pessoas capazes de violentar crianças”, destaca Bruna. 

São Paulo, onde Thalita foi morta, é o estado que mais registrou assassinatos no ano passado. Foram 19 casos, um aumento de 73% em relação a 2022, quando ocorreram 11. O pódio é completado por Rio de Janeiro (16) e Ceará (12). 

No retrospecto, considerando o intervalo entre 2017 e 2023, São Paulo também é o estado com mais registros: 135. Ceará (96) e Bahia (89) completam o ranking nas posições subjacentes.

Falta de políticas públicas

O dossiê denuncia uma urgência por políticas públicas, destaca Bruna Benevides. Para ela, é necessário que o governo Lula (PT) adote uma postura mais contundente em relação à proteção da comunidade trans. “O direito à vida da comunidade trans ainda não é plenamente assegurado”, pontua. 

“Nós derrotamos o Bolsonaro, estamos lutando para enfrentar o bolsonarismo, mas isso também inclui uma agenda que centralize o enfrentamento da transfobia. Caso contrário, a transfobia, que é hoje uma pauta central pela extrema-direita, que domina o debate sobre pessoas trans na rede social, sob um viés discriminatório, violento, anti-trans, e que, consequentemente, junto a essas campanhas de ódio disseminadas e massificadas na rede social, vai impactar o dia-a-dia das pessoas”, conclui Bruna. 

Um ponto central é que o mapeamento feito pelo Antra seja feito pelo Estado. Benevides defende que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) produzam normativas para que os estados apliquem na produção de estatísticas sobre a violência contra essa população. Esse é um passo fundamental para serem construídas políticas públicas. 

“Nós não temos o menor prazer em realizar esse trabalho, muito pelo contrário. Realizar esse trabalho impede que nós possamos fazer o controle social porque a gente tem de assumir uma realidade que é do Estado”, diz Bruna. 

Além de mapear a violência, o dossiê traz recomendações diretas ao Executivo. São pautas trazidas ali a mudança do formato do RG que passou a ser adotado pela totalidade dos estados neste ano. O documento atual traz, além do nome social, o nome de registro, o que é considerado transfóbico pela Antra, que cobra a revogação da normativa. 

Outro lado

A Ponte procurou o Executivo federal sobre os apontamentos trazidos pelo Antra. Não houve retorno. 

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) também foi procurada em relação às investigações do caso de Thalita Costa. Em nota, a SSP informou que o caso ainda está em fase de investigação e que “a autoridade policial tem ouvido testemunhas e realiza diligências em buscas de elementos que auxiliem na identificação e prisão dos autores do crime”.

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