Defesa afirma que ambulante foi agredido e ofendido no metrô e por policiais, quando estava na delegacia; testemunha diz que caso não passou de briga por causa de assento preferencial
Estação de metrô Sé. Foto: Reprodução
Uma discussão dentro do metrô, na estação Sé, da linha 1 – azul, teve ofensa racista e xenófoba, se estendeu até o Paraíso e terminou no 6º DP, localizado no mezanino da estação Barra Funda, na zona oeste, na quarta-feira (25/4). De acordo com a educadora e testemunha Aline Vargas, 32 anos, e a advogada Maira Pinheiro, criminalista e membra da Rede Feminista de Juristas, por volta das 15h40, o vendedor ambulante Ibrahima Diogo Diallo, 36 anos, estava sentado em um assento preferencial, quando uma pessoa não identificada chegou mandando que ele levantasse.
Na sequência, ainda de acordo com Aline, a jornalista Márcia Kuckert Francês, 44 anos, pediu que o senegalês se levantasse. Minutos depois, a discussão se transformou em uma briga, quando mais dois homens se aproximaram de Ibrahima gritando ‘Volta pra África’ e ‘Aqui é Brasil, porra’. Nesse momento, a Polícia Militar foi acionada.
“Num piscar de olhos apareceram quatro policiais e um deles deu um murro no peito dele, dentro do metrô, e os outros imobilizaram ele pelo pescoço, com o cassetete, até que ele ficou desacordado. Alguns segundos depois, ele acordou desesperado. Eu pedindo para os policiais pararem, que não era daquela forma que se abordava alguém. Eu fiquei desesperada, pedindo para as pessoas filmarem aquela cena. Eu quis vir junto, para testemunhar, porque ele não estava entendendo nada que estava rolando. Se puxarem as câmeras, vão ver que deram um soco no peito dele”, conta Aline.
A advogada Maira Pinheiro tomou conhecimento do caso depois de uma postagem em redes sociais chegar até a Rede Feministas de Juristas e está fazendo a defesa do senegalês como voluntária. Ela explicou à Ponte que Ibrahima não entendeu o que estava acontecendo por causa da pouca fluência no idioma português. “Ele estava sentado no metrô, no assento preferencial, que até agora pouco ele não sabia o que era. Explicamos 8 vezes até ele realmente entender o porquê não podia sentar naquele banco. Ele foi abordado por um homem que deu um empurrão no ombro dele e mandou ele sair dali. O que ele entendeu? Que em um lugar onde estava todo mundo sentado, estavam mandando ele levantar de onde ele estava sentado”, explica Pinheiro.
Para Márcia Kuckert Francês, testemunha que depôs contra Ibrahima, o caso não passou de uma grande confusão por causa de um assento preferencial. “Eu acho que ele cometeu um engano, foi muito truculento e gerou algo muito grande. Eu vi que a Aline ficou muito nervosa, não sei exatamente o que aconteceu, pois eu já estava aqui dentro, eu só ouvi uma gritaria aqui na delegacia”, contou. “Quando ela entrou, veio pra cima de mim falando ‘você viu o que você está fazendo? você não sabe, o racismo dói’. E eu nunca vou poder ter uma noção de que o racismo dói, a gente como branca é privilegiada, de um jeito ou de outro. Eu fiquei chocada, ela tem razão em muita coisa, eu nunca vou conseguir mensurar o quanto dói, mas nesse caso é só um caso de assento preferencial. Se fosse outra coisa eu seria primeira a estar na frente dando um depoimento”, explica Márcia, que também destacou que o imigrante já estava nervoso quando entrou no metrô, na estação São Bento. “Eu estava ao lado do banco preferencial distraída no celular, percebi quando esse moço entrou, pois ele sentou muito enfaticamente, estava com uma expressão muito irritada, então eu abaixei a cabeça e continuei no celular. Pouquíssimo tempo depois, parou um homem na frente dele e apontou, mostrando que aquilo era um banco preferencial, para ele ceder o assento para quem é de direito”.
Como Ibrahima se negou a sair, os dois começaram a discutir. “Eu vi aquilo e tentei intervir, falando que aquele era um assento preferencial. Na hora, o moço [Ibrahima] tirou o foco nesse homem e começou a gritar comigo, mandou eu comer bosta, que eu fosse ensinar meus filhos, que ele não ia levantar”, contou Márcia.
O senegalês está no Brasil há 3 anos e começou a trabalhar como vendedor ambulante para sobreviver. Ele mora em São Vicente, litoral sul de São Paulo, e toda semana vem até a região central da capital comprar a mercadoria. Era o que ele estava fazendo quando a confusão aconteceu. Diallo fez a habitual compra semanal e embarcou na estação São Bento, com o objetivo de desembarcar no Terminal Rodoviário do Jabaquara para retornar para casa. Em breve conversa com a reportagem, Ibrahima resumiu como é a sua rotina no transporte público e nas ruas de SP. “Hoje eu tava sentado na cadeira e um homem veio brigar. Antes quando eu entrava no metrô, as pessoas sempre me tocam, me falam muitas coisas que eu não entendo. Dois anos atrás, um grupo me agrediu, tive que fazer cirurgia. Eu não tenho família, eu não tenho dinheiro, comecei a vender um monte de coisa lá na praia”, contou.
‘Esse povo do Senegal é tudo folgado’
Segundo assistente social Fernanda Gomes, 29 anos, namorada de Aline, Ibrahima também foi vítima de xenofobia por parte dos policiais ao chegar na delegacia. “Quatro policiais que não estavam na ação chegaram perto dele e um deles, muito autoritário, se aproximou e falou ‘já deram geral nele? esse povo do Senegal é tudo folgado, eles tem que apanhar mesmo e voltar pro país dele’. Nisso eu perguntei onde podia fazer um B.O. de xenofobia e o policial começou a gritar falando que xenofobia não existia. Aí eu falei pra ele ir estudar e começou uma grande confusão. Eles quiseram algemar a gente, mas não deixamos e começamos a derrubar as grades que ficam do lado de fora da delegacia”, relatou Fernanda.
A testemunha Aline Vargas contou à Ponte que logo depois da abordagem, Ibrahima foi colocado no camburão e ficou algemado o tempo inteiro. “Quando chegamos na delegacia, ele pedia água e queria passar um número de telefone pra mim, mas eles [policiais] não deixaram eu pegar, só consegui pegar quando a minha namorada chegou. Deixaram ele sentado no chão. Ele pedindo para ir no banheiro e os PMs não deixaram, até que ele fez xixi no chão”, conta Aline.
Para a advogada Maira Pinheiro, Ibrahima sofreu múltiplas violências: no metrô, no pronto socorro onde foi levado por causa das agressões e na delegacia. “Enquanto eu estava nessa viatura, os policiais ficavam falando que agora tudo é racismo, que não sabiam o que era xenofobia, eu que expliquei pra eles. No hospital ele ficou o tempo todo sob custódia, então eles entraram na consulta médica mesmo eu falando que a consulta tinha sigilo médico, os policiais riram da minha cara e entraram mesmo assim. Teve uma hora que o sargento falou ‘se você precisar tá autorizado a usar arma letal”, completa Pinheiro.
Para evitar mais confusão, Maira ligou para a Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB (Ordem de Advogados do Brasil), setor de denúncias e apoio para advogados que se sentem ameaçados durante o trabalho. “Eu sou muito deslegitimada na minha profissão, o tempo todo, por parecer ser nova. Quando chegou o representante das Prerrogativas, um cara de meia idade, os policiais baixaram a bola. Ele não foi tratado da mesma forma. Aí parece que eu sou a louca fazendo tempestade em copo d’água”, desabafa.
O caso foi registrado no 6º DP e Ibrahima foi qualificado como autor e vítima. Como autor, consta no Boletim de Ocorrência os crimes de injúria contra a mulher e lesão corporal contra outros indivíduos que participaram da briga e contra um dos policiais militares. Já como vítima, consta o crime de agressão física contra Ibrahima, por parte de pessoas desconhecidas e durante a intervenção policial. O delegado plantonista não quis conceder entrevista à Ponte, mas informou que só com as imagens das câmeras do metrô de vigilância pode abrir o inquérito e investigar o caso, uma vez que há versões contraditórios.
A advogada Maira Pinheiro critica o fato de que a injúria racial e a xenofobia não apareceram no Boletim de Ocorrência. “A injúria racial aconteceu das pessoas que foram pra cima dele no metrô, da polícia é racista. Claro que o fato dele ser africano agravou, se ele fosse francês isso não teria acontecido. A grande dificuldade pra você advogar nesse tipo de situação é que você sabe que foi racismo, mas o ordenamento é feito de brancos para brancos. O ordenamento jurídico não está preparado para entender o que é racismo e o que não é, principalmente esse tipo de racismo, que é institucional e implícito. Eles só entendem que é racismo quando chamam o cara de macaco”, explica.
A Ponte procurou a SSP (Secretaria da Administração Penitenciária) por e-mail, mas até o momento não houve retorno.