Serpentes Negras: como TJSP usou um boato para justificar o massacre do Carandiru

Ao justificar que morte de 111 presos foi ‘ato legítimo’, TJSP resgatou boato sobre uma ‘facção marxista’ de detentos, usado há 40 anos para atacar políticas de defesa dos direitos humanos nas prisões de SP

Ativistas pintam 111 corpos na calçada da frente do Tribunal de Justiça de SP em novembro de 2016 | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

Na decisão que validou o perdão dado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) aos 74 acusados pelo Massacre do Carandiru, na semana passada, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) se baseou em um fantasma: um boato nunca comprovado sobre uma facção chamada Serpentes Negras, usado há 40 anos como arma de pânico moral para combater políticas de defesa dos direitos humanos nas prisões de São Paulo.

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No acórdão (decisão de um grupo de magistrados) que considerou constitucional o indulto aos réus concedido nos últimos dias do governo Bolsonaro, o relator José Damião Pinheiro Machado Cogan escreveu que as mortes de 111 presos, cometidas por policiais militares na Casa de Detenção do Complexo do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, nunca foram um “crime contra a humanidade”.

“Não é a hipótese presente já que não houve qualquer ataque armado à população civil mas, um ato legítimo do Estado de intervenção em presídio onde uma rebelião de grandes proporções ocorrera com inúmeras mortes de presos que não pertenciam à facção dominante (na época chamavam-se serpentes negras, que hoje se chama Primeiro Comando da Capital)”, afirma o relatório, aprovado no Órgão Especial do Tribunal por 18 votos a 6.

Uma facção marxista

Mencionadas em letras minúsculas na decisão, as Serpentes Negras foram descritas pela primeira vez em 1984, pelo juiz corregedor Haroldo Luz da Silva Sobrinho, como uma “facção criminosa de extração marxista” que pretendia “dominar o sistema prisional paulista e expandir-se pelo Brasil”.

O magistrado afirmava ter obtidos essas informações em visita ao presídio de Presidente Venceslau, com um detento chamado Derney Luiz Gasparino, que tinha características paranoicas e ganhou do juiz um benefício para deixar a prisão e cumprir o restante da pena em casa.

Apesar da ausência de provas, o texto do juiz foi publicado, na íntegra e com destaque, pelo jornal O Estado de S.Paulo. Tanto para o magistrado como para o jornal, a divulgação do boato sobre as Serpentes Negras tinha um alvo claro: as comissões de solidariedade no sistema prisional, instituídas pelo secretário de Justiça João Carlos Dias, durante a gestão do governador Franco Montoro (1983-1987).

O projeto das comissões previa que os presos elegeriam representantes, responsáveis por reportar demandas à direção das prisões e à Secretaria da Justiça. O formato desagradou aos funcionários das unidades prisionais e aos setores conservadores da sociedade, que se agarraram ao boato das Serpentes Negras para atacar as políticas de direitos humanos do governo Montoro, conforme explica o sociólogo Gustavo Higa, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).

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Autor da dissertação de mestrado Serpentes Negras, Pânico Moral e Políticas de Humanização nos Presídios em São Paulo, aprovada em 2017 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Gustavo afirma que a existência das Serpentes Negras nunca foi comprovada, e muito menos a teoria de que a “facção marxista” seria uma antecessora do Primeiro Comando da Capital (PCC), como defende o acórdão do TJSP. Para o pesquisador, as Serpentes Negras se basearam em “um rumor lastreado no pânico moral”.

A bomba

Primeiro governador eleito em São Paulo após décadas de ditadura militar, Montoro buscou implementar mudanças no sistema prisional com políticas que incluíam a assistência jurídica e as visitas íntimas, numa época em que, segundo Gustavo, as unidades prisionais eram espaços abandonados, onde a tortura vigorava.

Um dos carros-chefe no novo governo na questão prisional eram as comissões de solidariedade, dividas em duas frentes. A primeira delas, formada por presos, buscava ser um “programa de representação de presos para presos”. Havia eleições e o grupo eleito fazia a comunicação direta com o governo, via Secretaria de Justiça, relatando as demandas dos sentenciados. Os presos informavam sobre problemas de saúde, condições sanitárias e demais problemas em reuniões semanais.

Paralelamente, havia uma comissão de guardas com o mesmo propósito. O pesquisador conta que a comissão formada pelos presos não agradava a parte dos servidores, que sentiam estar havendo uma “inversão de autoridade”.

Em entrevista concedida à Ponte em 2014, José Carlos Dias disse que as comissões de solidariedade eram uma política de respeito aos presos, “dizendo não à tortura completamente”. “Nós tínhamos uma consciência política de respeito aos direitos humanos e entendíamos que esse respeito deveria ser dirigido a todas as pessoas, estivessem elas em liberdade ou presas”, completou.

O ex-secretário defendeu que as Serpentes Negras nunca existiram. “Isso tudo foi uma criação de setores da imprensa e do juiz Haroldo Pinto da Luz Sobrinho, que inventaram a existência dessa organização”, afirmou José Carlos Dias.

A falta de comprovação não impediu que o boato sobre a “facção marxista” caísse “como uma bomba”, segundo Gustavo Higa, sobre as políticas de defesa dos direitos humanos dos presos, já que o juiz corregedor defendia que as comissões de presos serviam para mascarar a atuação das Serpentes Negras.

O pesquisador afirma que, na esteira da publicação da denúncia do juiz Haroldo Sobrinho, surgiram narrativas no interior das prisões que corroboravam a existência da facção. Em muitos dos casos, contudo, houve troca de informações dos presos por benefícios, como prisões domiciliares ou troca de celas. “Muita gente começou a aparecer com informações cada vez mais esquizofrênicas”, fala.

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Uma comissão de desembargadores investigou a denúncia, conta o pesquisador. A investigação concluiu existir uma organização chamada Serpentes Negras, assim como havia outros grupos nos presídios, mas ressaltava que não tinham o caráter ideológico denunciado pelo juiz-corregedor.

Mesmo assim, houve impacto na vida dos presos daquela época em diante. A denúncia de Haroldo fez com que as comissões de presos, aos olhos do público, se tornassem sinônimo de Serpentes Negras. Por fim, todos os programas de defesa de direitos humanos dos foram interrompidos. E, até hoje, lamenta Gustavo, é difícil a implementação de políticas voltadas aos presos. 

Falta de provas 

Gustavo diz que muitas das pessoas que acreditam na suposta facção e no elo com o PCC — uma afirmação replicada, por exemplo, pela Folha de S.Paulo — usam um trecho do texto de 1984 em que o juiz Haroldo listava nomes e matrículas de supostos membros da facção, muitos deles integrantes das comissões de solidariedade. Entre os nomes estava o de Misael Aparecido Silva. 

Morto em 2002, Misael teve papel importante na criação do PCC. Contudo, Higa diz que Misael não tinha atividade na comissão de solidariedade. O porquê do nome estar contido na lista não está bem claro, fala o pesquisador.

O sociólogo cita ainda a fala de Pedro Rodrigues Filho, o Pedrinho Matador, em entrevista dada em 2021. Aos apresentadores do Cometa Podcast, Pedrinho disse que fez parte das Serpentes Negras. Ele chegou a exibir uma tatuagem feita em menção à facção e que membros dela passaram a integrar o PCC. Gustavo acredita que o relato não é plausível. 

Pedrinho ficou conhecido por ter muitos inimigos e viver sempre isolado nos presídios, diz Gustavo. Para o pesquisador, não é possível saber o quanto da história é real e o quanto Pedrinho pode ter sido influenciado pela narrativa construída em torno da suposta facção.

Uma ironia cruel em tudo isso é que os fatos indicam que não só o Massacre do Carandiru não eliminou membros de um suposto antepassado do PCC como foi o impacto das 111 mortes foi justamente um dos fatores que motivou a criação da Primeiro Comando da Capital, um ano após a chacina, em 1993.

O 13º dos 18 artigos do estatuto de criação do Primeiro Comando da Capital (PCC) cita os crimes ocorridos no Carandiru com um dos motivos para o nascimento do grupo criminoso: Temos que permanecer unidos e organizados para evitarmos que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de Detenção em 02 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente assassinados, massacre este que jamais será esquecido na consciência da sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos mudar a prática carcerária, desumana, cheia de injustiças, opressão, torturas, massacres nas prisões”.

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“Eu vejo o Massacre do Carandiru como um marco e uma linha divisória na história do sistema penal. Aquela violência aplicada pelos agentes estatais foi compreendida pela população prisional como um ataque a pessoas em total vulnerabilidade. Acredito que foi aí que eles perceberam o quanto estavam expostos ao arbítrio do Estado”, comentou Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), e coautora de A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Todavia, 2018), em entrevista concedida quando a chacina completou 30 anos.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou o TJSP solicitando entrevista com o desembargador e uma posição sobre o caso. Em nota, o Tribunal respondeu que os magistrados não podem se manifestar sobre processo em andamento e que o TJ não pode se manifestar sobre questões jurisdicionais.

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