‘Tenho crise de pânico quando vejo uma viatura da PM’, diz sobrevivente da Operação Escudo

Traumas físicos e emocionais fazem parte do cotidiano das vítimas da operação de vingança policial desencadeada há um ano por Tarcísio e Derrite; ‘São Paulo vive o pior momento da história em segurança pública’, afirma ouvidor

O motoboy Evandro Silva com camiseta estampando sua cooperativa de mototáxi | Foto: arquivo pessoal

Foi de dentro do banheiro que o motoboy Evandro Alves da Silva, 44 anos, ouviu alguém bater na porta, na manhã de 30 de agosto do ano passado. “Só um minuto”, avisou, enquanto saía para atender. No meio do percurso, foi atingido por uma saraivada de tiros, disparados por policiais militares através da janela da sala.

Ferido e desesperado, Evandro recuou e decidiu saltar pela janela do banheiro, situada no segundo pavimento do sobrado alugado onde funcionava a cooperativa de mototáxi criada por ele para atender à população do Morro do José Menino, em Santos, no litoral paulista. Acabou despencando de uma altura de cerca de sete metros.

Desde então, o motoboy carrega há um ano as marcas da Operação Escudo em seu corpo: uma grande cicatriz no tronco, a ausência do baço, um projétil alojado no pulmão e as cicatrizes em torno das oito costelas que foram quebradas. As marcas mais dolorosas, porém, Evandro carrega na memória. “Eu vejo uma viatura, já me bate um apavoro, vem tudo aquilo de novo na mente. De vez em quando me dá umas crises de pânico, me dá um pouco de falta de ar, me dá aquela congelada”, lamenta.

Leia a cobertura da Ponte sobre a Operação Escudo

Evandro Alves da Silva é um dos três sobreviventes da Operação Escudo, que deixou 28 mortos em 40 dias na Baixada Santista. A ação foi desencadeada pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, em resposta ao assassinato do soldado Patrick Bastos Reis, 30, da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM paulista. Na época, moradores protestaram quando o motoboy foi baleado.

Hoje, o sobrevivente conta que, por medo, evita trabalhar em Santos, onde havia inaugurado um escritório da cooperativa. “Eu tentei voltar, mas vem todo aquele filme de novo na mente, aquele medo de acontecer tudo de novo”, diz, ao apontar dificuldade para conseguir tratamento psicológico. “O meu objetivo é conseguir dinheiro para me mudar, ir para um local com mais movimento e com câmeras, onde eles [a polícia] não chegam dessa forma como na comunidade”.

Além disso, Evandro ainda tenta provar que não estava armado e nem fugiu da abordagem, como os policiais do 5º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep) alegaram na época. A Defensoria Pública pediu o trancamento da investigação contra Evandro e sustentou que as imagens das câmeras das fardas dos policiais contradizem a versão policial.

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Na época, como a Ponte mostrou, Evandro tinha enviado um áudio para a esposa relatando que ele e um colega haviam sido abordados na cooperativa por um grupo de policiais — os mesmos que, pouco depois, teriam atirado contra ele. Durante a abordagem, os PMs teriam questionado seus antecedentes criminais e tirado uma foto do seu RG.

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) pediu à Polícia Civil uma série de diligências, que estão em andamento. “É um constrangimento a gente ainda ter que provar que é trabalhador”, lamenta o motoboy. “Eu, que estou vivo, tenho que viver com medo, porque não afastaram os policiais durante a investigação, como fizeram no caso de alguns dos mortos.”

O sobrevivente se refere ao fato de o Tribunal de Justiça de São Paulo ter determinado o afastamento das funções públicas de seis policiais militares da Rota que foram denunciados por três mortes da Escudo.

Essas denúncias, contudo, são uma exceção. Como a Ponte revelou, o MPSP pediu o arquivamento de 23 das 27 investigações abertas pelos promotores para apurar as 28 mortes da Escudo. A Defensoria Pública representou contra o arquivamento, até agora sem sucesso.

Nesta semana, a mãe do soldado Patrick Reis, em entrevista à Folha, repudiou o uso do assassinato do filho para desencadear a operação. “Eu sou contra [a operação], sou contra principalmente eles terem usado o nome do meu filho para aquilo. Porque eles atribuíram a Operação Escudo ao nome do meu filho”.

‘O mandado deles é pé na porta’

Tanto para Evandro quanto para moradores da Baixada Santista ouvidos pela Ponte, o clima é de constante apreensão, mesmo após o encerramento das operações. “É só Deus na causa. A gente mora em comunidade e o mandado deles é pé na porta”, diz ele.

“Levaram o Alex e na semana passada e ameaçaram de quebrar a perna do meu menino”, denuncia uma parente do pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30, morto dentro de casa, na comunidade do Saboó, em Santos, em 20 de fevereiro. Ele foi vitimado no auge da Operação Verão, que é considerada uma segunda fase da Escudo, por ter sido deflagrada após o assassinato de mais um soldado da Rota, Samuel Wesley Cosmo, 35, durante patrulhamento na cidade.

A Secretaria da Segurança Pública divulgou um número de 56 mortos nessas ações, mas na região da Baixada Santista, no período, foram mais de 80 boletins de ocorrência só de mortes decorrentes de intervenção policial, como Ponte mostrou.

Leia também: Operação Escudo: MP arquivou 23 de 27 investigações sobre mortes cometidas pela PM

“Parece que existe uma cartilha de como os policiais devem atuar em comunidade, porque eles não fazem isso no asfalto”, completa a cuidadora de animais Juliana Ramos, 34, irmã do auxiliar de serviços gerais Jefferson Ramos Miranda, morto aos 37 anos no Morro São Bento, em Santos, em 9 de fevereiro, juntamente com um amigo de infância, Leonel Andrade Santos, 36.

Acompanhando há anos e se mobilizando em prol dessas famílias, a ativista Andreia MF, líder do Movimento Mães do Cárcere, conta que foi em nome dessas vítimas e de seus parentes que tomou atitude impensada: encurralar o governador durante uma visita de Tarcísio a Praia Grande, em junho. “Eu estava cansada de gritar nas ruas, eu queria que ele ouvisse uma mãe”, disse à Ponte.

Tarcísio ficou sem palavras quando foi abordado por Andreia, que disse, emocionada: “Em todo o litoral de São Paulo, uma mãe chora porque perdeu seu filho. A comunidade precisa de educação. Sou uma mulher preta de comunidade, mãe, e vim aqui te pedir: ‘Pare de matar nossos filhos’. Por favor, o senhor é humano. Polícia, não. Educação é a salvação”.

Andreia MF afirma que sentiu medo ao confrontar o governador. “Eu sei que, no meu lugar de mulher preta, eu não poderia fazer algo que gerasse tumulto e que fizessem chamar a polícia. Por isso, fui próximo aos jornalistas, porque ali todos estariam com uma câmera na mão”, explica.

Moradora de Praia Grande, Andreia teve uma infância dura, ao perder o pai assassinado e a mãe por derrame cerebral. É trançadeira e foi rapper, mas trocou a carreira musical pelo ativismo. Nas manifestações de agosto de 2023 no litoral, ela se pintava de vermelho e soltava versos de protesto, que, segundo ela, expressam uma dor real que carrega há seis anos, quando perdeu um dos filhos atropelado a caminho do trabalho.

“Eu estou aqui por pessoas e por famílias que talvez nem me conheçam, mas é preciso resistir contra o genocídio, enquanto as mortes pelas polícias tiverem CEP e CPF”, afirma.

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Tanto para Andreia quanto para o ouvidor das Polícias, Claudio Aparecido da Silva, o banho de sangue neste ano na Baixada Santista foi uma consequência direta da Operação Escudo de 2023. “A operação é a institucionalização desse terrorismo que o Estado permite que a polícia faça quando se tem um policial vítima num confronto”, critica o ouvidor. “A Operação Escudo serviu de laboratório para a Operação Verão, porque na Operação Escudo eles começaram com um batalhão que fazia uso de câmaras corporais, e a gente percebe que na Verão, eles já mudam um pouco a estratégia, porque controlam o aparato para a finalidade que eles desejam, que não é o anseio da população.”

Claudio relata que a Ouvidoria teve dificuldade de atuar junto às vítimas das Operações Escudo e Verão, porque as polícias restringiram o acesso a boletins de ocorrência e a outras informações. “Eu acho que São Paulo está vivendo seu pior momento da história em segurança pública, porque nós temos um secretário de segurança que, na minha opinião, institucionaliza essa metodologia política ‘do bandido bom é bandido morto’, e isso é muito grave”.

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