Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam destaca discriminações múltiplas, envolvendo gênero, raça e classe. ‘Estamos institucionalizados, encarcerados, marginalizados e vulnerabilizados’, diz ativista
No próximo dia 16 de novembro, um retrato da situação das pessoas negras com deficiência no Brasil chegará à 108ª Sessão do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, por meio do relatório “Situação das pessoas negras com deficiência no Brasil”.
Produzido pela equipe de pesquisadores do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam (VNDI), com apoio da ONG internacional Minority Rights Group International (MRG) e da Universidade de Nova York, o documento será analisado pela ONU e servirá como base para futuras recomendações a serem enviadas ao Estado brasileiro.
O objetivo do relatório é destacar a discriminação múltipla e que abarca gênero, raça e classe enfrentada por pessoas negras com deficiência e marginalizadas no Brasil, que, ao todo somam mais de 10 milhões de pessoas, segundo dados do censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Nós estamos institucionalizados, encarcerados, marginalizados e vulnerabilizados”, explica Luciana Viegas, ativista autista e Educadora Popular e Idealizadora do MVNDI Brasil, movimento que surgiu junto aos atos antirracistas provocados contra o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos em 2020.
No início do documento, o VNDI destaca que a situação das pessoas negras com deficiência hoje no Brasil é indissociável ao período de escravização de povos indígenas e de 5,5 milhões de africanos. “Durante esses séculos de escravização, a maioria da população negra escravizada foi submetida a torturas e mutilações como forma de punição, levando muitos negros escravizados à condição de deficiência”, revela o estudo.
“Estamos fazendo esse resgate histórico de entender onde nós estávamos localizados no pós-abolição e na luta antirracista e onde estamos atualmente. No Brasil, os benefícios não são entregues às pessoas negras com deficiência, por conta de um estereótipo racista de que se nós formos oficialmente pessoas com deficiência deixamos de ser uma pessoa funcional. É o estereótipo de que a pessoa negra precisa ter funcionalidade e por aí vai”, diz Luciana.
Outra consequência da escravização, segundo o estudo, é a baixa taxa de pessoas com deficiência racialmente representadas nos relatórios oficiais, relacionada à pouca autoidentificação social com identidades negras no Brasil, uma vez a que história dos negros escravizados negou sua humanidade e promoveu tentativas de “embranquecimento” da população.
O estudo chama a atenção ainda para a falta de acesso a serviços de saúde e diagnósticos de deficiência para pessoas negras, especialmente para mulheres negras com deficiência, por conta da discriminação múltipla e que se cruza em razão de raça, classe, deficiência e gênero. “São pessoas que não são reconhecidas como pessoas com deficiência por falta de acesso aos diagnósticos, à saúde e que sofrem discriminação por serem pessoas negras e com deficiência”, diz Luciana.
Diante disso, o relatório reconhece que as pessoas negras com deficiência estão localizadas nas posições mais vulneráveis e violentas da sociedade brasileira, além da presença massiva nas populações em situação de rua.
Nesse sentido, Luciana também aponta para o fato de que as mulheres negras são maioria no cuidado de pessoas com deficiência, sendo que muitas vezes esse é um trabaho não remunerado. “Esse cuidado deve ser entendido como um trabalho. Além disso, as mulheres negras sofrem porque falta acesso à saúde e aos direitos a elas”, afirma.
A invisibilidade é ressaltada no caso dos quilombolas com deficiência, em que há falta de dados, pesquisas e políticas públicas voltadas para essa população. Ademais, o Brasil não possui uma política voltada específica para a saúde da população quilombola, direito já garantido aos povos indígenas.
Violências
Dados de 2019 mostram taxas muito altas de violência contra pessoas com deficiência, afirma o estudo. São 36,2 notificações para cada 10.000 pessoas com deficiência intelectual, sendo 11,4 notificações para cada 10.000 pessoas com deficiência física; 3,6 por 10.000 para pessoas com deficiência auditiva; e 1,4 relatórios por 10.000 para pessoas com deficiência visual. Mulheres com deficiência intelectual tem maiores taxas de violência, o que é atribuído no estudo à violência sexual.
A violência física é o tipo mais relatado contra pessoas com deficiência, presente em 53% dos casos, em seguida vêm a violência psicológica, com 32% e negligência/abandono, com 30%. Além disso, 35% das pessoas com deficiência intelectual relataram já terem sofrido violência sexual.
O relatório também traz informações do Departamento Penitenciário Nacional, de um total de 675.966 pessoas encarceradas no sistema prisional no Brasil, no período de julho a dezembro de 2021, 7.198 eram pessoas com deficiência, cerca de 1%. De acordo com o VNDI, esse número pode ser subnotificado, pois as pessoas com deficiências não físicas ou de mobilidade reduzida frequentemente não são contabilizadas pelas instituições. A falta de acessibilidade nas prisões também é registrada no relatório, “não havendo elevadores, rampas, adaptações, assistência de cuidados pessoais ou dispositivos assistivos disponíveis”, diz um trecho do documento.
Diante da pouca estrutura, as pessoas em situação de restrição de liberdade com deficiência física dependem dos guardas prisionais e de outros presos para cuidados pessoais, ou para serem transportados para instalações como chuveiros ou salas de tribunal. “As instalações e atividades de lazer oferecidas também são inadequadas ou inacessíveis”, ressalta o estudo.
O estudo faz uma menção ao relatório “They Stay until They Die: a lifetime of isolation and neglect in institutions for people with disabilities in brazil” da Humans Right Watch, que trata da situação das residências inclusivas, lembra Luciana. “Pessoas negras com deficiência estão nas residências inclusivas onde há violações.”
A violência policial contra pessoas negras com deficiência é outro ponto evidenciado no estudo, que traz os exemplos dos casos de Tiago Duarte de Souza, jovem negro com deficiência intelectual assassinado pelo policial Deni Augusto Amista Soares, que o acusou de entrar na loja para roubar.
Outro caso narrado é o de Ruan Limão do Nascimento, também negro e com deficiência intelectual foi baleado nas costas e morto por policiais militares da 4ª Brigada de Polícia Militar de São Cristóvão que abriram fogo na rua.
No Sergipe, Genivaldo de Jesus Santos, homem negro com diagnóstico de esquizofrenia foi sufocado no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e morto asfixiado pelos policiais. “A maior parte das mortes que a gente tem a partir de violência são de pessoas negras com deficiência. O assassinato do Genivaldo é um grande caso disso e a gente tem levado esse tema a fundo”, afirma Luciana.
Barreiras na educação e emprego
A maioria das pessoas com deficiência matriculadas nas escolas de educação especial brasileiras são do sexo masculino 66,2% e negros 40,5%, de acordo com o relatório. Os alunos negros com deficiência continuam sub-representados no ensino superior, compondo apenas 0,6% dos alunos negros no total e 35% dos alunos com deficiência, apesar da instituição da Lei nº 12.711/2012, que institui cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiencias nas universidades.
Já a população quilombola enfrenta uma série de limitações ao acesso à educação, entre elas o estudo aponta entre outras coisas, o “transporte escolar precário nas áreas rurais; a ausência de uma política que priorize a contratação de docentes e administrativos quilombolas nas escolas localizadas em territórios quilombolas; a falta de capacitação do pessoal a implementação desigual das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola e o fechamento de escolas em territórios quilombolas”.
O estudo também sublinha que o Decreto 10502/2020, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, publicado pelo governo Bolsonaro enfraqueceu a política de educação inclusiva ao promover um “sistema de educação segregado para crianças com deficiência”.
O acesso ao trabalho formal também é dificultado às pessoas negras com deficiência, “que são menos propensas a ter acesso ao trabalho formal e mais propensas a se engajarem em trabalhos precários, mal remunerados ou desempregados”, informa o documento, situação que foi ainda mais prejudicada na pandemia da Covid-19.
Dentre os 50 pontos listados no relatório, os pesquisadores ainda criticam os retrocessos nas políticas de saúde mental, a falta de apoio e investimento nas políticas públicas, além das violações de direitos à saúde, seguridade social e serviços sociais, como no Benefício de Prestação Continuada (BPC), benefício de pagamento em dinheiro para pessoas com deficiência e idosos, em que quilombolas com deficiência relataram que tiveram seu pedido ao BPC negado com o argumento de que já havia um familiar recebendo outro benefício, como aposentadoria, o que vai contra a disposição legal.
Recomendações
O documento lista 11 recomendações ao governo brasileiro e uma à sociedade civil, entre elas está a garantia da coleta e distribuição de dados demográficos desagregados que incluam deficiência, gênero, cor, e auto identificação como quilombola ou indígena no Censo nacional e em pesquisas. Além da suplementação aos dados do Censo nacional com um censo específico de deficiência, que adote uma perspetiva interseccional.
A consulta às organizações de pessoas negras, indígenas e quilombolas com deficiência no desenvolvimento de todas as políticas de deficiência e o desenvolvimento de políticas públicas para acabar com a institucionalização, garantindo o direito de todas as pessoas com deficiência viverem de forma digna são outras sugestões dos pesquisadores.
O VNDI também propõe que a história do movimento de pessoas com deficiência seja integrada de forma sistemática, no contexto de uma educação voltada para a herança cultural africana e afro-brasileira.
Entre outras coisas, os pesquisadores ainda sugerem a inclusão de medidas nas políticas de segurança pública para combater a violência praticada pelo Estado e pela população, contra pessoas negras com deficiência, com atenção especial para os mais impactados pela violência estrutural, como mulheres negras com deficiência e pessoas com deficiência intelectual.
Na visão de Luciana, o relatório explicita a importância de tornar um movimento anticapacitista, também um movimento antirracista, para assim acessibilizar e possibilitar que as pessoas negras e com deficiência também tenham acesso aos direitos. “Como direito ao bem viver, ao bem-estar e não mais a violação dos nossos direitos e a institucionalização dos nossos corpos”, diz.
O relatório “Situação das pessoas negras com deficiência no Brasil” é assinado pela Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (ABRAÇA), Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), Coletivo Helen Keller, Instituto JNG, Instituto Jô Clemente, Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos, Mariana Crioula e Quilombolo PCD.
Leia o relatório abaixo: