Em janeiro e em fevereiro, os números aumentaram 19% e 27%, respectivamente, em comparação com 2022; para Fórum Brasileiro de Segurança Pública, índice “acende sinal amarelo” sobre como tema está sendo tratado pelo governo
No dia 15 de fevereiro deste ano, a vendedora Cileide Alves Pereira de Farias, 43, contou que perder o filho foi como perder a própria vida. “Ele não estava armado, ele nunca teve uma arma em casa. Eu quero que eles provem que essa arma era do meu filho”, declarou, indignada, durante um protesto feito por amigos e parentes no bairro Jardim Rubio, na zona oeste da cidade de São Paulo.
O entregador Carlos Henrique Medeiros de Farias, 22, foi morto após uma abordagem da Polícia Militar. A família acredita que ele fugiu por estar com a carteira de habilitação vencida. Já a polícia disse que o rapaz desobedeceu a ordem de parada e apontou um revólver e, por isso, os PMs dispararam. O caso ainda está sob investigação.
O jovem foi uma das 37 pessoas mortas pelas polícia em fevereiro, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP). O número representou o segundo aumento seguido nos dois primeiros meses da gestão Tarcísio de Freiras (Republicanos): 27% em comparação com fevereiro de 2022, que teve 29 mortos. Já em janeiro as mortes subiram 19%, ou seja, de 31 para 37 vítimas, em 2023.
Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Dennis Pacheco aponta que, apesar de ser um período curto para uma análise mais precisa, os índices acendem “um sinal amarelo, talvez até vermelho”. “A gente vinha tendo essa redução importante por causa do programa Olho Vivo, das câmeras nas fardas, da comissão de mitigação [dentro da PM], de uma mudança de posicionamento político do governador [na época] e do Comando da PM também”, aponta.
Para ele, uma das hipóteses que pode influenciar é a mudança de gestão, que interrompeu uma linhagem de décadas do PSDB no poder, e de posicionamento de campanha versus posse. “A gente teve uma transição de governo, inclusive uma transição de matriz ideológica, e existia uma expectativa do governo de que essa pauta da letalidade, do enfrentamento ao crime com a perspectiva do enfrentamento pela violência policial fosse implementada, mas acabou não se concretizando justamente por causa da eficácia da política de câmeras e da pressão social pela redução da letalidade”, avalia.
“Parece que teve uma tensão entre essa demanda de se efetivar esse tipo de atuação que tem muito rendimento eleitoral”, afirma. “Mas a realidade de um governo é que precisa dialogar com diversos setores da sociedade, inclusive os setores que são massacrados e são vítimas preferenciais da letalidade policial, que estão também mobilizados e têm potencial de fazer pressão política.”
Pacheco faz referência ao início da gestão, quando, em janeiro, o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite declarou, em entrevista a uma rádio, que o programa seria revisto. Com a repercussão, o governador o contradisse, garantindo que o projeto seria mantido. A revisão do programa de câmeras foi uma bandeira sustentada por Tarcísio ainda na campanha eleitoral de 2022.
“A gente tinha a consolidação de que a política de câmera era uma política positiva, que a gente pode dizer olhando para os dados e para mudança de discurso do governo até a implementação das câmeras”, avalia o pesquisador. “A opinião pública tem a percepção de que as câmeras são um instrumento positivo, e a gente tem demonstrado isso nas pesquisas, mas o [novo] governo acabou tendo um posicionamento político mais dúbio, fazendo posicionamentos contra a manutenção das câmeras e isso pode ser uma variável”, explica.
Outra situação foi quando o secretário declarou, em fevereiro, que nenhum policial da Rota seria afastado após a Ouvidoria das Polícias solicitar o afastamento dos PMs que mataram um homem suspeito de assalto e feriu uma mulher que passava pelo local, na zona sul da capital. Vídeos de parte da ação mostram os policiais atirando no rapaz de 20 anos já caído no chão. Os PMs alegam que ele tentou disparar contra eles. Na ocasião, especialistas ouvidos pela Ponte avaliaram que a posição de Derrite não condizia com a postura de um secretário que preze por uma apuração técnica do caso.
Uma das variáveis para mensurar a violência policial é a proporção com os homicídios dolosos. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam de que o ideal é a proporção de 10% de mortes pela polícia no total de homicídios, e os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que índice maior de 7% é considerado abusivo.
Em janeiro deste ano, as mortes pela polícia equivaleram a 13% dos homicídios dolosos. Já em fevereiro, corresponderam a 12,5%.
Já as mortes de policiais civis e militares mantiveram zeradas em serviço no mês de fevereiro, havendo ocorrências apenas na folga, sendo quatro no ano passado e duas neste ano. Em janeiro, dois policiais foram mortos em 2023 e cinco no mesmo período do ano passado (dos quais três na folga).
“Esse é um problema mais complexo porque diz respeito à valorização profissional, salário, e a diversas outras dinâmicas que fazem com que esses policiais trabalhem em maior situação de risco, fora do expediente, sem o apoio operacional e dos colegas que eles têm quando estão de serviço”, analisa Dennis Pacheco.
Para o pesquisador do FBSP, é necessário que o programa de câmeras seja efetivado como política, já que está funcionando apenas por contrato com a empresa que fornece equipamentos e tecnologia de armazenamento, além de uma atuação efetiva dos mecanismos de controle externo das polícias, já que pesquisa da entidade demonstrou que o Ministério Público pediu o arquivamento em 90% dos casos de mortes pelas polícias na cidade de São Paulo em 2016.
“A gente tem um problema bem grave com o Judiciário, com o Ministério Público, nessa esfera da responsabilização, porque se tivemos a Comissão de Mitigação [da PM] no âmbito administrativo, no Judiciário não tem nenhuma evidência de grandes transformações na forma como esses policiais são ou não responsabilizados”, critica. “Essa é uma nova seara de transformação que precisa acontecer de forma concomitante com essas mudanças administrativas e políticas que a gente vem vivenciando no interior das polícias”
O que diz o governo
Questionada pela reportagem sobre os índices, a Fator F, assessoria terceirizada da SSP, encaminhou a seguinte nota:
A SSP informa que todos os casos com resultado morte são analisados pelas instituições policiais, rigorosamente investigados pela Corregedoria, comunicados ao Ministério Público e julgados pela Justiça. Desde 2021, a pasta integra a Comissão de Monitoramento da Letalidade, formada por representantes da SSP, polícias Militar, Civil e Técnico-Científica, Ministério Público e Defensoria Pública do Estado, Instituto Sou da Paz e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, visando à redução do indicador.
A SSP esclarece que as mortes decorrentes de intervenção policial (MDIPs) não devem ser equiparadas às ocorrências com resultado morte em serviço, porque têm dinâmicas diferentes. São diversas as situações em que o policial de folga pode intervir. Por exemplo, quando os agentes são vítimas e atuam em sua defesa ou na defesa de sua família, ou quando o policial age em defesa de terceiros ao ver uma ação criminosa. Já as mortes de suspeitos que ocorrem em serviço são decorrentes de ações em que os policiais estão agindo em prol da sociedade. O confronto não é uma escolha do policial, pois quando ocorre, o policial é sempre a primeira vítima.
Os agentes contam com apoio de equipamentos e treinamentos constantes. As ocorrências são investigadas pela Polícia Civil e por uma divisão especializada da Corregedoria da PM, a “Divisão de PM Vítima”, responsável por acompanhar e atuar para o esclarecimento dos crimes contra os policiais.
Os dados referente a vitimização policial (policiais mortos em serviço e em folga) são divulgados há anos no Estado – mensalmente no Diário Oficial do Estado e trimestralmente no portal da pasta, em estatísticas trimestrais (http://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/Trimestrais.aspx). Além disso, todos os dados referentes à atuação policial estão disponíveis para consulta pública e podem ser acessados por meio do portal da Transparência ou SPVida.