Sobreviventes da chacina de Osasco e Barueri são ouvidos pela Justiça

    Audiência, marcada por protesto de familiares, foi a primeira de dez sobre os ataques de agosto de 2015, que mataram 19 pessoas

    Familiares das vítimas dos ataques protestaram do lado de fora do Fórum. Fotos: Arthur Stabile
    Familiares das vítimas dos ataques protestaram do lado de fora do Fórum | Fotos: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Os sobreviventes da chacina de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, ocorrida no dia 13 de agosto de 2015, foram os primeiros ouvidos na audiência que abriu a investigação do caso. Os depoimentos foram recolhidos durante a tarde dessa quinta-feira (05/05), no Fórum Criminal de Osasco. Ao todo, foram mortas 19 pessoas, em 14 ataques diferentes.

    A maioria das testemunhas também foi alvejada por tiros, embora tenham sobrevivido. Uma delas, que está sob proteção da Justiça, chegou ao Fórum escoltada por, pelo menos, seis carros da Polícia Civil. Sua cabeça estava coberta com um pano, para não ser reconhecida.

    “Hoje é um dia importante para os familiares, pois a investigação sobre os policiais acusados de serem os autores das chacinas é um passo importante no processo. Os sobreviventes, que têm ligação emocional com o fato, têm papel fundamental na investigação”, analisou a advogada Maíra Diniz, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que representa os familiares de vítimas fatais da chacina.

    “Os sobreviventes, que têm ligação emocional com o fato, têm papel fundamental na investigação”

    Ao todo, dez audiências serão realizadas para examinar as provas e testemunhas, tanto de defesa, quanto de acusação aos policiais envolvidos. A previsão é encerrar o trabalho entre julho e agosto. Dos sete policiais militares presos sob suspeita de atuação nas chacinas, três foram liberados pelo TJM (Tribunal de Justiça Militar) em fevereiro deste ano.

    A próxima audiência será realizada em 16 de maio, ocasião em que os três delegados responsáveis pelas investigações das mortes darão os depoimentos sobre cada passo dado pela corporação até chegar nas conclusões dos assassinatos.

    Vítimas

    D., um dos sobreviventes dos ataques, relatou à Ponte como saiu vivo da ofensiva que sofreu no dia 13 de agosto do ano passado. Ele e três amigos foram alvos de um dos ataques, com duas vítimas fatais.

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    Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    “Eu estava na calçada com o Rafael e o Guilherme, esperando uma amiga. Ela chegou, me afastei dois metros deles para conversarmos, e foi quando ouvi um carro brecando bruscamente. Desceram duas pessoas e começaram a atirar. Minha reação foi puxá-la e deitar em cima dela. Pedia para ela ficar quieta. Como servi no Exército, sabia que eram duas armas. Era um som picotado. Depois, fez silêncio e pensei que eles recarregariam as armas, mas bateram as duas portas do carro e foram embora”, relembra D., que recebeu um tiro no pé.

    “Quando levantei para pedir socorro, senti meu pé estranho, não vi que tinha levado um tiro. Pedi para socorrerem ela e, depois, vi o Guilherme e o Rafael já atingidos. Só depois que vi meu pé. Fui socorrido para o posto de saúde, depois me trouxeram aqui para Osasco. Até hoje sinto ele latejar, uns quentes estranhos, umas dores… Ainda não acostumei”, disse.

    A., 54, outra vítima que sobreviveu à chacina, esteve no Fórum para dar seu relato. Contudo, saiu do prédio uma hora após o início dos trabalho por sentir fortes dores na cabeça. Após receber um tiro no rosto, ficou 14 dias em coma e perdeu 25 quilos durante a recuperação.

    Protesto

    Sem poderem a companhar a audiência, pois o processo está em segredo de Justiça, familiares das vítimas fizeram um protesto em frente ao Fórum de Osasco enquanto os trabalhos aconteciam. Uma faixa com a pergunta “Quem matou 19?” questionava o Estado, cobrando resposta de quem foram os autores dos crimes de agosto de 2015.

    Aparecida Gomes da Silva Assunção era uma das mães que perderam filhos presente. Professora, ela cobrou a explicação pela morte de Leandro Pereira Assunção, de 36 anos. “Não tem motivo para tamanha crueldade. Ainda não faz sentido o que aconteceu. Ninguém sai matando assim com eles fizeram. São piores do que bandidos”, revolta-se.

    Aparecida Gomes, mãe de xxxx
    Aparecida Gomes, mãe de Leandro

    Mãe de Deivison Lopes Ferreira, 26, outra vítima fatal, Cidineia Ferreira, 50, diarista, levou uma faixa em homenagem ao filho. Ao lado da foto do primogênito, estava escrito: “Um dia a saudade deixa de ser dor e vira história para contar e guardar para sempre. Algumas pessoas são, sim, eternas dentro da gente”. Segundo Cidineia, o filho começaria um trabalho novo na semana seguinte à das chacinas.

    “Era quinta-feira quando ele veio me contar que foi aprovado e começaria a trabalhar na outra terça-feira. Eu sempre o pressionava para voltar a ter um emprego com registro em carteira e ele conseguiu. Era tudo o que ele queria. Iria se casar no fim do ano. Saiu de casa umas 20 horas para contar a alguns amigos a boa notícia, nem avisou que sairia. Depois, minha nora chegou correndo, dizendo que tinha acontecido algo. Foi quando soube”, recordou-se, com a fala engasgada.

    Situação similar à de Zilda Maria de Paula quando falou da morte do único filho, Fernando Luís de Paula, então com 34 anos. “O pai dele nos largou com três anos, dei o melhor para ele, que estudou em escola particular e tudo. Tudo o que fiz por ele não valeu a pena, porque veio um cara e deu um tiro na cabeça dele. Isso é o que me revolta. De dez que atingiram, só dois sobreviveram”, conta.

    Até o nascimento de Fernando, Zilda sofreu quatro abortos espontâneos até realizar o sonho de ser mãe. Os médicos a incentivavam a desistir de ter um filho por conta dos riscos da gravidez. Após conseguir engravidar, precisou ficar de repouso absoluto. Depois de morar parte da infância na rua, o sonho dela era constituir uma família e dar condição de vida melhores do que teve ao filho.

    Associação

    Após a chacina de Osasco e Barueri, a ONG Rio de Paz São Paulo foi atrás das famílias para dar suporte. Criada no Rio de Janeiro, o grupo se mobilizou em São Paulo em 2015, tendo justamente nessas mortes sua primeira atuação prática no Estado. “As mortes da periferia estão acostumadas a serem esquecidas, não terem voz. Esse é um caso emblemático e que não pode ser esquecido, afinal, não é só pelos 19 que morreram nesses ataques, mas por todos que sofreram crimes parecidos e não tem voz”, sustenta Fernanda Vallin Martos, uma das integrantes do grupo.

    “Não tem motivo para tamanha crueldade. Ainda não faz sentido o que aconteceu. Ninguém sai matando assim com eles fizeram. São piores do que bandidos”

    Fernanda atua reunindo familiares de vítimas da chacina. Foi ela quem apresentou Zilda, mãe considerada “presidente” do grupo, às outras mães e parentes. A intenção da Rio de Paz São Paulo é dar suporte para que essas pessoas cobrem respostas do Estado. O protesto de ontem foi incentivado pela ONG e abraçado pelas famílias.

    Um passo seguinte é a criação de uma associação, cujo nome será “13 de agosto”, em referência ao dia dos ataques nas cidades. Zilda lidera a iniciativa. “Pensamos em fazer algo como os CEUs [Centros Educacionais Unificados, existentes nas periferias paulistanas], sabe? Tirar as crianças das ruas, dar educação, ensinar capoeira… Dar um futuro pra elas”, conta.

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