Horas depois de a Ponte denunciar indícios de irregularidades em “rifa” que circulou por grupos de mensagem, entidades que disseram desconhecer vínculo com policiais anunciaram encerramento de sorteio nesta quinta-feira (11/4)
A seguradora Capemisa e o site de promoções Da Hora anunciaram em nota conjunta, nesta quinta-feira (11/4), o cancelamento do sorteio “Rodoviária de Prêmios” horas após a Ponte denunciar indícios de irregularidades por conta de mensagens em grupos de policiais que afirmavam que os valores seriam revertidos ao custeio de despesas judiciais de policiais rodoviários federais indiciados pela Chacina de Varginha, que deixou 26 mortos em operação conjunta com a Polícia Militar de Minas Gerais em 2021.
O site da campanha que antes tinha um flyer com imagem de duas viaturas com cores azul e amarelo que remetiam à identidade visual da Polícia Rodoviária Federal (PRF) deu lugar a um comunicado com o seguinte texto:
A Capemisa Capitalização S/A, responsável pela emissão e administração dos títulos de capitalização Da Hora, modalidade filantropia premiável de contribuição única, informa, a seus clientes e consumidores em geral, que a edição 23, com sorteio inicialmente previsto para 22/05/2024, foi encerrada. Não se preocupem, os valores despendidos pelos participantes serão estornados.
A reportagem procurou as empresas sobre o motivo do cancelamento. A assessoria da Capemisa disse que foi uma decisão “por compliance“, que é um setor responsável por criar uma cultura organizacional, alinhar cumprimento de normas e regras e apurar infrações e/ou desvios de conduta dentro de uma empresa. “A Capemisa Capitalização preza pela transparência, com respeito às normas que regem as atividades do mercado de Seguros. Apesar de o contrato em questão seguir todas as regras estabelecidas pela Susep, órgão regulador do setor, por compliance, a empresa decidiu suspender a campanha e garantirá ressarcimento aos consumidores pelos títulos adquiridos”, declarou.
Já a empresa Da Hora não retornou ao contato por e-mail.
A Ponte mostrou nesta quinta (11) que o site do sorteio circulou em grupo de mensagem de policiais como uma “rifa” pedindo “apoio” para o custeio de despesas judiciais de policiais rodoviários federais. Quem participasse poderia concorrer a um prêmio em dinheiro de R$ 85 mil. Porém, na descrição do site, é informado que o valor dado pelo participante iria “100%” para a Casa Ronald McDonald, que atua no atendimento de crianças e adolescentes com câncer. Não havia nenhuma menção sobre o apoio a custas processuais para policiais.
Institucionalmente, a Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF) também compartilhou o link em apoio e fez uma mensagem padrão de “perguntas e respostas”. Nela, há menção de que 78% do valor arrecadado “irá para os policiais” e 22% para as outras organizações, sendo 5% para a Casa Ronald McDonald, 5% para a Capemisa, que é a seguradora responsável, 5% para o “sistema operacional”, 4% para o site Da Hora e 3% para custos financeiros.
Contudo, o site não se tratava de um sorteio de rifa, mas sim de venda de título de capitalização pela modalidade filantropia premiável. A diferença é que a rifa apenas pode premiar com objetos ou serviços e quem participa não pode ter o dinheiro de volta. Já o título de capitalização é diferente. Primeiro porque pode premiar em dinheiro e, em segundo lugar, porque é como se fosse um investimento. Dependendo da modalidade desse título, a pessoa que pagou pode obter total ou parcialmente o valor de volta sem contar o prêmio.
Os títulos de capitalização são regulados pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), que é ligado ao Ministério da Fazenda. Há uma portaria de 2022 que regulamenta todas as modalidades de aquisição de título de capitalização, a de número 656.
No caso da modalidade de filantropia premiável significa que esse valor de “resgate”, que é o que a pessoa receberia de volta, é destinado a uma associação beneficente. Por exemplo, o participante compra o título dessa modalidade no valor de R$ 2 para concorrer ao prêmio de R$ 85 mil e o valor de resgate é de 100%. Se ele ganhar ou não o prêmio, esses R$ 2 vão ser revertidos totalmente para a associação beneficente.
Em 2022, o então presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.332, voltada a compra de títulos de capitalização para entidades beneficentes. O artigo 4º é explícito de que “recursos obtidos por intermédio de campanhas das entidades beneficentes de assistência social com títulos de capitalização deverão ser utilizados, exclusivamente, nas atividades das entidades, admitindo-se apenas a realização de despesas com divulgação e promoção das campanhas de arrecadação”.
A portaria 656 da Susep também aponta, no artigo 52, que a modalidade de filantropia premiável deve informar em destaque ao participante que o valor vai ser cedido a uma entidade beneficente e todos os dados relativos a ela devem ser divulgados. A instituição, para ser considerada apta a participar, tem que ser obrigatoriamente constituída no mínimo há cinco anos e possuir a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas), que é concedida pelo governo federal.
Ou seja, se a Casa Ronald McDonald, que tem essas certificações, é agraciada com os recursos desse sorteio, ela só pode investir em ações voltadas ao atendimento de crianças e adolescentes com câncer.
Procuradas pela Ponte na ocasião, a Casa Ronald McDonald e Capemisa declararam que não tinham conhecimento sobre qualquer campanha voltada a angariar recursos para policiais nem tinham relação com entidades da categoria.
A empresa Da Hora, por e-mail respondido por uma pessoa que se identificou como Adriano Brito, confirmou a veracidade do sorteio, mas disse que os contratos são referentes apenas à Casa Ronald McDonald, à Capemisa e uma terceira empresa não informada no site como “Segundos da Sorte”, “não existindo nenhum co relação (sic) com nenhuma outra entidade ou associação”.
A reportagem insistiu sobre o site de sorteio ter título de “Rodoviária de Prêmios” e imagens de veículos que remetem à identidade visual da PRF. Brito respondeu que “isso é de escolha do influencer que faz o sorteio”. A Ponte perguntou quem seria o “influencer”, mas não houve resposta.
A inscrição Susep que aparece no site (15414.611407/2024-58) é o registro aprovado da Capemisa para fazer a venda de título de capitalização pela modalidade filantropia premiável, com prazo de 12 meses, iniciado em 18 de março deste ano. No documento, cujo número pode ser consultado aqui, não há indicação de destinar valores da associação a outras organizações ou pessoas.
A Polícia Rodoviária Federal, contatada pela reportagem, declarou que não havia participação nem parceria da corporação no sorteio.
Procurado pela reportagem, o ex-PRF que compartilhou a mensagem disse que havia contrato da FenaPRF com a Casa Ronald McDonald e que o presidente da federação poderia dar mais detalhes.
Buscamos o presidente da FenaPRF, Tácio Melo, que disse, por mensagens, que não havia contrato, sendo que a instituição apenas apoia o sorteio e não integra a organização. “A FenaPRF está no apoio da divulgação como sendo pra os PRFs (sic) se usaram indevidamente o nome dos PRFs, não faremos mais a divulgação”, afirmou.
A reportagem o questionou, então, quem havia oferecido o sorteio como forma de ajuda de custo para os policiais, mas ele não respondeu e pediu para entrar em contato com as empresas citadas. Também afirmou que a organização já fez campanhas de arrecadação coletiva, as populares “vaquinhas”, dentro da legalidade.
Vale ressaltar que fazer “vaquinha” não é ilegal, mas venda de títulos de capitalização detém regramento próprio.
Na ocasião, a Susep declarou à Ponte que depende de denúncia para fazer uma apuração. Procurada novamente nesta sexta-feira (12/4) por causa do cancelamento do sorteio, a assessoria do órgão declarou que não recebeu denúncia formal, mas vai verificar o caso. “A área de supervisão está atuando com base na reportagem e nas informações recebidas pelo veículo, entretanto, a ação de supervisão ainda está em fase de instrução e até o momento não houve contato com a empresa supervisionada”, informou em nota.
A chacina
Em 31 de outubro de 2021, uma operação conjunta da Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar de Minas Gerais e da PRF invadiu duas chácaras em Varginha onde apontaram que estariam suspeitos de planejar um assalto em massa como aconteceu em outras cidades, realizando cercos, com armas pesadas, e investiriam contra uma agência do Banco do Brasil para roubar R$ 65 milhões.
Na primeira, havia 18 pessoas. Os policiais afirmaram que vigias reagiram com armas pesadas, levando-os a abrir fogo. Na segunda chácara, mais oito morreram – também, segundo a polícia, após reagirem. Houve apreensão de armas, coletes e explosivos. Tanto os porta-vozes das corporações como o Ministério da Justiça e o governador Romeu Zema (Novo) comemoram o resultado da ação.
Porém, de acordo com reportagem de fevereiro da revista piauí, por dois anos 20 peritos do Instituto Nacional de Criminalística (INC) se debruçaram sobre o cenário da chacina em Varginha e concluíram que 26 pessoas foram mortas sem chance de defesa. Tiros pelas costas, corpos levados já sem vida a hospital, 500 disparos feitos pelos policiais contra 20 tiros atribuídos aos mortos e simulação de confronto são alguns dos pontos evidenciados pelos peritos.
A Polícia Federal indiciou, no mesmo mês, 39 policiais pela participação em crimes de homicídio qualificado, tortura e fraude processual. A Corregedoria-geral da PRF determinou o afastamento de 23 policiais das atividades nas ruas por entender que existem “indícios de possíveis excessos na ação policial”.
Reportagem atualizada às 18h47, de 12/4/2024, para incluir resposta da Susep.