O terreiro de candomblé, que tinha 30 anos de existência, está sendo demolido com a justificativa das obras de canalização do Córrego do Cadaval. Defensoria Pública de São Paulo não conseguiu acordo, mas luta pela relocação da casa
O terreiro de candomblé Ilê Asé Odé Ibualamo, que tinha 30 anos de existência, está sendo demolido pela prefeitura de Carapicuíba (SP). A justificativa usada pelas autoridades municipais é a obra de canalização do Córrego do Cadaval que margeia a casa. As obras começaram no mês da Consciência Negra, novembro de 2022, mas as máquinas começaram a demolir o espaço nesta quinta-feira (15).
Neste momento, a obra de canalização, promovida pela prefeitura de Carapicuíba, passa em cima do terreiro. Segundo a comunidade, não houve nenhum diálogo com os responsáveis pela obra e o reconhecimento da importância histórica e sagrada do Ilê.
A Iyalorixá Mãe Zana, que conduz o terreiro, disse à Alma Preta Jornalismo que o diálogo feito com as autoridades partiu das pessoas do terreiro. Para ela, não havia necessidade de a prefeitura demolir as casas e o templo com tamanha rapidez “porque não foi permitido desalojar as pessoas e nem recolher os pertences”.
“Havia gente idosa, crianças e eles continuavam avançando sem nenhum cuidado. O sentimento que fica é de impotência, mas não vamos desistir da nossa luta, que é uma luta pela vida e pela memória do povo negro”, afirmou a líder religiosa que também é coordenadora do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matrizes Africanas em São Paulo.
Judicialização
Por conta do tratamento dado ao terreiro, mãe Zana entrou com uma ação para que as autoridades garantam a preservação da casa de candomblé, devido ao seu patrimônio histórico. A justiça, que defendeu o terreiro, pediu que as autoridades realizassem visitas emergenciais ao local e apurassem a situação de violação de direitos humanos, de degradação de bens e valores históricos e culturais. Segundo a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, as obras de canalização do córrego deviam realizar-se em um trecho total de 890 metros.
Os defensores solicitaram que, em caso de remoção, fosse feita a realocação da unidade tradicional em um ambiente que preserve a sua memória e cultura. Eles também pediram que fosse iniciado o processo de tombamento do terreiro Ilê Asé Odé Ibualamo, de forma a impedir a destruição deste patrimônio histórico-cultural.
A defensora pública Vanessa Vieira contou à reportagem que, após tomarem conhecimento da derrubada, eles solicitaram um prazo maior para a desocupação do terreno, mas também não foram atendidos. O acordo oferecido para o terreiro pela prefeitura foi um aluguel solidário – valor pago pelo governo para que as famílias possam alugar um outro local para viver – ou uma carta de crédito – para comprar um outro terreno, cujas parcelas devem ser pagas para o município. O aluguel solidário era no valor de R$500, já a carta de crédito ficou em R$180 mil, quantia insuficiente para adquirir um outro local.
“Apesar de termos perdido todos os recursos e acordos, vamos continuar investindo na realocação do espaço e na preservação da memória do terreiro”, pontuou Vanessa.
Diálogo com as autoridades
Em ofícios enviados ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), a defensoria solicitou a realização de consulta ou audiência pública sobre os impactos negativos causados pela intervenção no local. Ainda pediu o tombamento, cautelar e definitivo do terreiro; e – no mínimo, “a realocação da unidade tradicional em local que preserve sua memória e um marco no antigo terreno que faça referência à comunidade física, afetiva e espiritual, que ali esteve”.
Para comprovar as solicitações, uma das evidências utilizadas nos ofícios pela defensoria, além de fotos da demolição e das consequências disto para a vida das pessoas, foi anexada uma carta da própria Prefeitura de Carapicuíba onde ela havia reconhecido, em julho de 2022, a tradicionalidade da área. O documento foi assinado pelo Secretário de Cultura e Turismo do Município, Edivaldo Claudino de Almeida.
“Declaro para os devidos fins que a Unidade Tradicional do Povo Yorubano Ilê Asè Odê Imbulano, inscrição na Secult 187, realiza atividades há mais de 20 anos, de fruição e formação artístico-cultural voltadas para as diversas temáticas relacionadas a cultura afro-brasileira e seus desdobramentos (…) Sua atuação na cidade de Carapicuíba é de extrema importância social, cultural e comunitária, sendo um dos espaços culturais de mais destaque da cidade”, diz a carta.
Para comentar essa contradição, a Alma Preta Jornalismo tentou contato com a prefeitura de Carapicuíba, mas não obteve respostas. Já o Iphan disse, em nota, que o órgão é contrário a qualquer destruição ou lapidação do Patrimônio Cultural, especialmente quando ocorrer sem prévia consulta à sociedade.
“Informamos que, embora o Iphan tenha terreiros tombados, o terreiro de candomblé Ilê Asé Odé Ibualamo, em Carapicuíba (SP), não é tombado pelo Instituto. Convém explicar que um bem pode não ser tombado a nível federal, mas ser tombado pelas instituições estaduais e municipais responsáveis pelo Patrimônio Cultural”, ressalta.
Sobre o terreiro
O Ilê Asé Odé Ibualamo foi fundado na década de 1980 por Mãe Caçailê, que ficou conhecida como “Mãe Nega”, cujo nome de registro era Marina Clarinda Oliveira de Jesus. A unidade territorial tradicional é remanescente de quilombo constituído por Povos Bantu e lorubano que chegaram à cidade de Carapicuíba, instalando-se na rua Airão, no Bairro Vila Silviania, numa pequena comunidade, onde, na época, havia um rio e muita vegetação que cercava o bairro.
A área onde se instalou a unidade consistiu num pequeno “barraquinho” feito de madeira à beira do córrego, berço do rio que já havia sido poluído, mas ainda existia. Ao chegar ao local, a primeira ação foi tentar conscientizar os vizinhos a manter o local protegido e tentar resgatar o “riacho”. Mãe Nega decidiu então comprar um lote no local e instalar a unidade tradicional no espaço.
De acordo com um grupo de pesquisadores formado por Raquel Rolnik, professora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Guilherme Lobo Pecoral, estudante de direito na USP, e Giovanna Milano, professora de direito urbanístico do Instituto das Cidades da Unifesp, assim como em outros terreiros, a compra da área de 200 m² não passou por registros e escrituras.
Porém, para os especialistas, é importante reconhecer formas de ocupação do espaço que tem significados para além da moradia e das dimensões econômicas.
“A permanência do Ilê Asé Odé Ibualamo pode ser um excelente passo para consolidarmos este caminho. O reconhecimento e a garantia de permanência dos territórios tradicionais nas cidades conectam-se a um dever de reparação frente às violações promovidas pelo racismo estrutural na formação social brasileira, promovendo o direito à preservação da memória e de construção de futuros mais igualitários e justos no espaço urbano”, escreveram em artigo.
Publicada originalmente no Alma Preta