Ministros reconheceram que vítima de 28 anos foi submetida a violência e que policiais tentaram esconder agressões manipulando câmeras corporais. Ponte revelou em março imagens de PM espancando a vítima. Veja vídeo
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu homem negro de 28 anos que relatou ter sido agredido por policiais militares para confessar que participava do tráfico de drogas em Itapevi, no interior de São Paulo, durante uma abordagem em 2023. A Ponte revelou, em março deste ano, imagens das câmeras corporais dos agentes em que um deles aparece dando murros e tapas na vítima.
Os ministros decidiram, de forma unânime, anular as provas contra o homem, que vamos chamar de Emerson, por entenderem que foram obtidas de forma ilegal. “Provas obtidas mediante emprego de violência física, tortura, tratamento cruel ou desumano, que é expressamente vedado pelo ordenamento jurídico, devem ser consideradas nulas e desentranhadas do processo”, argumentou o relator Ribeiro Dantas, cujo voto foi acompanhado pelos ministros Daniela Teixeira e Messod Azulay Neto.
Leia também: Homem negro denuncia tortura da PM para confessar crime de tráfico de drogas em Itapevi (SP)
O relator ainda considerou que as agressões foram “graves” e que “há a indicação de que vários trechos das gravações demonstram a tentativa dos policiais de ocultar ou dificultar a visualização das imagens da ocorrência”.
Emerson foi preso há mais de dois anos depois de ser condenado a sete anos e seis meses de prisão em regime fechado, além do pagamento de 750 dias-multa, por tráfico de drogas. Tudo aconteceu no dia 17 de março de 2023. Ele relatou, durante a audiência de custódia, que estava no banheiro de um bar quando polícia invadiu e que correu por medo.
O jovem negou que vendia drogas e disse que foi agredido pelos PMs com murros, socos, empurrões, enforcamento e golpeado nas costas com o que para ele pareceu ser um chicote. O exame de corpo de delito realizado no mesmo dia da detenção identificou lesões na boca, pescoço, punhos, quadril, joelho e costas de Emerson. Um laudo complementar apontou que os machucados nas costas “são compatíveis com instrumento alongado, linear e fino”.
Gravação ininterrupta mostrou agressões
O laudo, bem com as imagens das câmeras corporais dos PMs, só foram anexados ao processo quatro meses depois da prisão, a pedido do defensor público Felipe Matos do Amaral, que reiterou a determinação da juíza da audiência de custódia. Nesse intervalo, Emerson já tinha virado réu por tráfico de drogas após o juiz Udo Wolff Dick Appolo do Amaral, do Foro de Itapevi, aceitar a acusação feita pelo promotor Ricardo Beluci.
Mesmo com as imagens, Emerson foi condenado por tráfico de drogas na 1ª e na 2ª instâncias do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Por isso, a Defensoria recorreu ao STJ.
Os soldados Willian Barbosa Pereira dos Santos e Márcio José Carniel Júnior disseram que estavam em patrulhamento “em local conhecido por ser ponto de venda de entorpecentes quando avistaram um indivíduo com uma sacola na mão”. Ao avistar a viatura, o homem teria fugido para o meio do mato.
A dupla o teria encontrado próximo a uma canaleta de esgoto, perto de uma sacola com porções de drogas que totalizaram 69,1 gramas de maconha, 108,3 gramas de cocaína e 87,2 gramas de crack. Os PMs ainda disseram que, “em breve entrevista informal”, Emerson disse que vendia as substâncias e estava junto com um “olheiro”, mas o comparsa não estava no local.
Na delegacia de Itapevi, Emerson disse, sem presença de advogado, que estava ajudando um rapaz que vendia drogas no local e que foi até a biqueira (ponto de venda) para comprar alimentos para ele e que correu da abordagem pois ficou com medo. Ele relatou que estava em saída temporária e já foi preso por tráfico de drogas antes. Não consta no boletim de ocorrência se o delegado Daniel Schwarz Furlani perguntou se houve conduta abusiva por parte dos policiais militares nem solicitação para verificar as gravações das câmeras das fardas.
Leia também: Justiça usa câmeras corporais da PM só para confirmar culpa de presos, sugere estudo
A Ponte teve acesso aos nove arquivos das câmeras enviados pela PM, sendo sete com duração de 30 minutos, um vídeo com 19 minutos e 33 segundos e outro com um minuto e 38 segundos. Essa última gravação, a mais curta, é a única em que houve gravação de áudio e mostra um dos PMs pedindo para Emerson “contar de novo” o que lhe teria dito supostamente antes, sem haver gravação, sobre participar do tráfico de drogas. Nesse vídeo, o homem, cabisbaixo e apenas respondendo o que o policial pergunta, diz que vendia drogas e que faturava R$ 1 mil por semana.
Os demais vídeos, contudo, têm resolução menor e estão sem áudio, pois não foi acionado pelos soldados como gravação de interesse. Também não há explicação sobre a escolha dos trechos. Quando a gravação não é destacada pelo policial como de interesse, o tempo de armazenamento é de 60 dias, porque fica entre a filmagem geral do turno e é lido como “de rotina”. Já as que têm a sinalização “de interesse”, sendo o áudio acionado, o armazenamento dessas imagens pode ser de até um ano.
As imagens disponíveis não mostram um indivíduo segurando uma sacola que corre após ver a viatura policial na rua. Há trechos em que os soldados estão abordando outros homens em frente ao que parece ser um estabelecimento, outros começam já em frente à delegacia e todos trechos sobre a abordagem a Emerson já são dentro do matagal.
Agressões em local isolado de mata
Como a abordagem aconteceu à noite, tudo que é possível enxergar é por causa da iluminação dos soldados que usam lanternas. Assim que Emerson é localizado, ele já coloca as mãos na cabeça. O soldado William encosta o cano da pistola em sua cabeça e parece dizer alguma coisa. Não há nenhuma sacola perto dele.
Emerson parece ser agredido com murros na cabeça, cai no chão e leva um tapa no rosto. A todo o momento, ele é segurado com força pela gola do moletom e é jogado algumas vezes no chão. Não é possível saber o que é falado entre eles pela ausência do áudio. Há um trecho em que, enquanto Willian está segurando Emerson pela gola, Marcio se vira e mexe na câmera de sua farda e a cobre com a mão.
Em certo momento, parecendo ser guiado por Marcio, Emerson, ainda segurado por Willian, aponta em direção a uma árvore, onde é encontrada uma sacola cinza — recolhida por Marcio. Neste momento, aparentemente, Willian parece jogá-lo no chão e Emerson lhe entrega algo dobrado, que parece ser dinheiro. No auto de apreensão, não consta nenhum outro objeto além das drogas.
Em seguida, Emerson leva um tapa no rosto e é colocado no chão outra vez. Ele gesticula e, em certo momento, balança a cabeça afirmativamente. As luzes das lanternas são apagadas por alguns segundos. Na câmera do soldado Márcio, é possível ver um terceiro PM segurando um grande galho de madeira em um trecho rápido.
Para o defensor Felipe Amaral, “a presença de violência por parte dos agentes policiais no momento da abordagem torna a abordagem ilícita e contamina toda a prova eventualmente obtida no ato”.
Vítima era usuária, não traficante
Diante do juiz e do promotor, Emerson disse que os policiais o levaram a um local isolado na mata, embora essa parte não conste no registro das câmeras dos PMs. Ele relatou que confessou o tráfico pois foi agredido e ficou com medo. Denunciou que no momento das agressões, um policial teria dito para “desligar as câmeras”. Disse que que é dependente químico e tinha “passado o dia e a noite lá [na mata] usando drogas”. Segundo ele, “os rapazes que ficam no tráfico pedem favores para eles, e, em troca, recebe alguma porção de entorpecentes”.
O defensor anexou alguns prontuários médicos que datam de 2018 a 2020, sendo que há pelo menos um deles com indicação legível de que Emerson parou no posto de saúde de Itapevi por “intoxicação” devido ao uso de 15 pinos de cocaína.
O juiz Udo Wolff, contudo, entendeu que os policiais não tinham motivos para mentir, não considerou a questão da violência denunciada e condenou o homem. “Nesses dizeres e nas imagens, observe-se, os agentes públicos não transparecerem tendenciosidade ou qualquer sorte de motivo escuso na incriminação do acusado, a quem sequer conheciam previamente, do que consta. Daí que, com efeito, não é possível, simplesmente, presumir sua parcialidade. Mesmo porque, note-se, não faria sentido o Estado atribuir a agentes públicos a função de realizar patrulhamento ostensivo e prisões em flagrante, porém negar credibilidade aos depoimentos prestados em decorrência desse mister”, argumentou.
Leia também: Artigo | Por que as PMs, antes fãs, viraram haters das câmeras corporais
A Defensoria impetrou recurso à 13ª Câmara Criminal e o desembargador Marcelo Semer foi o único entre três magistrados que entendeu ter havido tortura e teve o voto vencido pela absolvição de Emerson. O desembargador sustentou que “há graves indícios de que Willian é autor de diversas agressões contra o réu, embora este tenha se rendido assim que foi encontrado. Tais agressões incluem socos e tapas na cabeça e rosto do réu, empurrões que o levaram ao chão, enforcamento que durou ao menos um minuto, e segurar o réu com a camisa levantada para que fosse chicoteado nas costas por um terceiro que aparentemente usava como arma galho de madeira encontrado na mata”.
Semer também aponta que Willian teria aparentemente furtado o dinheiro de Emerson.
Apesar de a Defensoria ter impetrado embargos infringentes, que é um recurso voltado ao mesmo colegiado por não ter havido decisão unânime e obrigar os magistrados a chegarem num acordo, a 13ª Câmara manteve a decisão. Por isso, o defensor recorreu ao STJ, que anulou as provas e absolveu o homem negro.
Sobre o caso de denúncia de tortura, em 26 de março do ano passado, o promotor Ricardo Beluci pediu a abertura de investigação na Polícia Civil, que foi acatado pelo juiz Udo Wolff. O inquérito, porém, está parado.
Nesta segunda-feira (9/12), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, determinou o uso obrigatório de câmeras corporais pela PM paulista e utilização do modo de gravação ininterrupta, já que a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) homologou um novo contrato em que os equipamentos são acionados por escolha dos policiais.
A decisão vem após a Defensoria Pública e entidades de direitos humanos terem reforçado um pedido de utilização correta dos aparelhos após a morte de Ryan da Silva Andrade Santos, de apenas 4 anos, em ação policial na Baixada Santista, em 5 de novembro, na qual os agentes não usavam câmeras.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre o caso bem como a apuração de tortura e aguarda retorno.