Uma das principais referências do movimento negro e feminista no Brasil tem sua história narrada na biografia Continuo Preta, escrita por Bianca Santana. “Aprendi com a Sueli que a luta só é possível no coletivo”, diz autora
Foram mais de 160 horas de conversas gravadas, muitos encontros, embarques e descobertas para contar a vida de uma das maiores intelectuais do Brasil. A escritora e jornalista Bianca Santana lançou nesta terça-feira (11/5), pela Companhia das Letras, a biografia Continuo Preta: A vida de Sueli Carneiro, um retrato da ancestralidade e legado da filósofa feminista e antirracista Sueli Carneiro.
A narrativa sob o olhar de Bianca é fruto de uma relação de referência e admiração pela filósofa. Mulheres negras, ativistas e de diferentes gerações, elas se conheceram pessoalmente em 2017, conta Bianca, em uma entrevista na sede do Geledés, Instituto da Mulher Negra, fundado em São Paulo no ano de 1988 por Sueli e outras mulheres. Pouco mais de um ano após o encontro, ambas decidiram realizar a biografia em março de 2018, dias depois do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
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O desafio aceito pela jornalista resultou em um trabalho de mais de dois anos, de muita escuta, pesquisa e apuração jornalística em nove cidades diferentes, até mesmo fora do Brasil. Uma das principais articuladoras do movimento negro, Sueli Carneiro completa 40 anos de ativismo político questionando o papel imposto às mulheres negras na história brasileira desde a adolescência.
A obra traz a provável árvore genealógica dos Carneiro, que data da época colonial e tem influência do chamado Ciclo do Ouro a partir do século XVIII no Brasil. O leitor mergulha na história da paulistana desde seus antepassados em Minas Gerais. A cada capítulo, conhecemos um pouco mais da vida de Aparecida Sueli Carneiro e da sua construção como uma das vozes mais importantes do feminismo negro, junto com a antropóloga mineira Lélia Gonzalez.
O livro é dividido em quatro partes: escavação, movimento, disputa e centralidade. Nas duas primeiras partes, conhecemos um pouco das relações familiares dos Carneiro, até o momento em que a academia se apresenta a Sueli, que é doutora em filosofia da educação pela Universidade de São Paulo, como uma possibilidade de mudança. Naquele lugar surgiram seus vínculos mais fortes com o ativismo, narrado na terceira parte da obra, cuja história é guiada também pela própria história do Brasil, em tempos de ditadura e redemocratização.
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Sueli passa a ser presença constante nos congressos que discutiam relações de raça, classe e gênero. Já na última parte, observamos a grandeza de Sueli como intelectual. Autora de obras que falam de racismo e sexismo, a filósofa hoje com 70 anos construiu um repertório crítico às relações sociais agora perpetuado às novas gerações, a exemplo da autora de sua biografia.
Em entrevista à Ponte, Bianca Santana conta sobre os bastidores da sua escrita, descreve sua relação com Sueli e explica como surgiu o projeto Casa Sueli Carneiro, espaço dedicado ao legado de produção e pensamento da filósofa.
Ponte – No livro, você conta que começou a escrever em primeira pessoa e depois mudou, passando a ser a narradora da história. Como você descreve a experiência de contar a história de Sueli Carneiro?
Bianca Santana – A decisão de escrever em primeira pessoa tinha sido tomada com base em projetos que a gente admira muito. O livro …E disse o velho militante José Correa Leite do Cuti, um escritor negro, sobre José Correia Leite, que foi um militante importante da Frente Negra Brasileira e da Frente Negra Socialista. O Cuti entrevista José Correia Leite e transcreve as entrevistas, edita e organiza na voz do próprio José Correia Leite. Outro projeto que nos inspirou foi a autobiografia do Malcom X, que ele escreveu com auxílio do Alex Halley o entrevistando e se colocando ali em primeira pessoa. Então, quando eu comecei a entrevistar a Sueli Carneiro e a gente começou a conversar sobre o formato do livro, a primeira intenção era essa. Mas no caminho eu me percebi mais jornalista do que eu achava que eu era. Eu queria conversar com outras pessoas, eu queria completar lacunas que a Sueli não lembrava, checar informações, fazer pesquisa em arquivo.
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Quando eu escrevi em primeira pessoa, muito com base em entrevistas feitas com ela, eu tinha mais informações em outras vozes. Era a visão da Bianca Santana sobre a vida da Sueli Carneiro a partir de entrevistas com ela, com outras pessoas e de pesquisa documental. Eu fiquei morrendo de medo porque a autobiografia é um tema caro para mim. Eu acho a narrativa em primeira pessoa muito poderosa, muito importante, é meu tema de pesquisa de doutorado. No nosso caso, ela funcionaria se ela fosse escrita mesmo pela Sueli. Ao mesmo tempo que eu fiquei animada por poder me liberar para confrontar as visões da própria Sueli, mas dá um medo danado. A Sueli é uma mulher de setenta anos de idade, uma liderança do movimento negro, do movimento de mulheres negras, uma baita ativista, intelectual e eu tenho muito menos idade que ela, muito menos experiência política, acadêmica. Quando eu percebi o tamanho do enrosco, eu já estava nele. Então foi com medo mesmo.
Ponte – Como foi o processo de pesquisa, apuração?
Bianca Santana – Comecei com as leituras mais aprofundadas daquilo que Sueli Carneiro produziu, isso antes mesmo de a gente pensar no livro. Então eu estudei a tese da Sueli de forma mais minuciosa, minha principal referência teórica do meu doutorado. E os escritos, os artigos, as palestras, um contato mais intenso com a produção intelectual da Sueli. Depois disso, a gente começou as entrevistas e foram mais de 160 horas gravadas, sem contar aquilo que a gente não gravou. Então, foi muito intenso, uma rotina muito interessante de ir para a casa de Sueli duas vezes na semana e passar muitas horas fazendo entrevistas e depois também conversando sobre o contexto político, sobre a vida, tudo. Foi um processo de apuração, mas também foi um momento de muito aprendizado pra mim.
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Depois de uns meses, eu comecei a procurar outras pessoas e fazer essas outras entrevistas. Comecei com os irmãos da Sueli, com familiares, com companheiros de militância. No caminho apareceu uma oportunidade de eu ir para Madri [capital da Espanha] participar de um evento e eu fui animada, porque eu pude até Oslo {capital da Noruega], onde vive a filha da Sueli e entrevistei a Luanda. Também fui a Brasília entrevistar o Maurice, que foi marido da Sueli, fui ao Rio entrevistar a Jacqueline Pitanguy, a Salvador entrevistar o Edson Cardoso e a Regina Adami. Isso potencializou o trabalho pois as pessoas lembravam de histórias que ou a Sueli não tinha contato ou não tinha lembrado. E a pesquisa em arquivo também, seja aqui no arquivo do estado de São Paulo, seja no arquivo nacional, na cidade onde o pai da Sueli nasceu, em Ubá, Minas Gerais.
Ponte – Como era sua relação com a Sueli e como é hoje? O que mudou?
Bianca Santana – É uma relação de confiança. Confiança dela em mim, por abrir a casa, a vida, contar as histórias. Confiança em mim nela também, de saber que ela não está fazendo uma autopromoção, ou que ela tem algum tipo de interesse vaidoso, ao olhar o livro, sabe? Tem uma relação de confiança importante, especialmente por saber que o movimento negro e o movimento de mulheres negras são focos importantes e prioritários pra nós duas. Essa luta coletiva é maior do que as propostas que eu possa ter, ou daquilo que a própria Sueli realizou. Eu aprendi com a Sueli Carneiro que a luta só é possível no coletivo e ela só é efetiva no coletivo. Além dessa relação de confiança, também é inegável uma relação de aprendiz. A maior parte das entrevistas, eu fiz com a Sueli sentada no sofá, na casa dela, e eu sentada no chão, no tapete. Ela ficava muito desconfortável no começo, ela brigava comigo, pedia mil vezes para mim sentar do lado dela, mas eu preferi esse lugar para ouvir e aprender, um pouco dessa experiência de troca e oralidade de matriz africana.
Ponte – Você se enxergou na história da Sueli?
Bianca Santana – Sim, muitas vezes. Tem pedaços da história da Sueli que parecem da minha vida, outros que parecem da vida da minha mãe, outros parecem com a vida da minha avó. E isso é muito curioso porque a Sueli ser uma mulher de outra geração, eu vejo gerações de mulheres da minha família com histórias parecidas com a Sueli. Por exemplo, histórias que ela traz da pós-graduação eu posso relacionar com a minha vida, histórias de um casamento inter-racial e as histórias do ativismo. A informação de que ela foi trabalhar da cidade depois que ela prestou um concurso público e essa foi a possibilidade de ela entrar no mundo do trabalho é exatamente a história de vida da minha mãe. O primeiro trabalho da minha mãe foi como empregada doméstica e depois disso ela consegue passar em um concurso assim como Sueli. Muitas vezes, na forma da Sueli de narrar, numa oralidade que tem alguns aspectos de griô, de uma sabedoria de matriz africana mais velha, me lembra muito o tom da minha avó. E a Sueli é brava e algumas pessoas já me perguntaram, ‘mas você não tem medo quando ela te dá uma bronca?’. Eu falo, ‘nossa, se você tivesse conhecido a minha avó, você ia entender por que eu não tenho medo dela, eu já estou acostumada’ (risos).
Ponte – Sueli fez questionamentos na política e disse uma frase bem marcante: “Entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta”. Quais são as maiores lições que ela tem deixado para os movimentos sociais e o país?
Bianca Santana – A Sueli nos dá uma lição de autonomia. Ela mostra que quando os movimentos sociais são autônomos, eles levam a esquerda mais para a esquerda. Porque a direita não quer nossa existência, todo mundo já sabe disso e ninguém tem nenhuma esperança em relação a direita. A esquerda que é mais próxima dos movimentos negros, que é muito mais próxima da Sueli, tanto de visão de mundo quanto de voto, ela faz uma série de promessas pra pessoas negras, para mulheres, que depois ela não entrega, não sustenta no tempo. Denunciar isso não significa expor a esquerda ou igualar a esquerda com a direita, pelo contrário, é um modo de levar a esquerda para a esquerda, de encostar a esquerda na parede para que ela se posicione e tenha ações condizentes com aquilo que ela diz ser. Mas, é evidente que essa frase dela que inspira o título do livro, ela é controversa, muita gente faz questionamentos que para Sueli reforça uma necessidade de reafirmar um lugar de autonomia política.
Quando a gente olha a história recente do país, é inegável o quão certa a Sueli está. Porque a gente teve governos de esquerda numa experiência democrática importante, que teve conquista de direitos, e determinados movimentos sociais recuaram muitíssimo porque se sentiam parte do governo com algumas mudanças implementadas, mas que durou pouco. As estruturas que não foram alteradas têm relação direta com o que a gente é obrigado a aturar agora, com movimentos desarticulados, com movimentos muitas vezes querendo que os partidos políticos e as heranças desses partidos digam qual é a mudança que a sociedade tem que ter. A sociedade civil organizada, não só em partidos, é essencial. Esse lugar de autonomia dos movimentos, reafirmado historicamente pela Sueli, se mostra como um lugar importante, especialmente olhando o que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Quem tentou segurar para que o golpe de 2016 não existisse foram movimentos sociais, inclusive o movimento negro e movimentos que pressionavam e cobravam o governo. A independência é muito importante para os movimentos, mas também para democracia.
Ponte – Recentemente a Casa Sueli Carneiro foi lançada e você faz parte da equipe. Como surgiu essa iniciativa?
Bianca Santana – A casa surge em relação com o livro. A casa onde a Sueli viveu por quarenta anos está fechada, porque hoje ela mora num apartamento. Mas a casa está fechada com o Ogum da Sueli naquele espaço, então, o aterramento do candomblé está lá, a biblioteca dela, os arquivos de jornal, fotografia, todo o acervo da Sueli está lá. Quando ela me levou até a casa, em uma das nossas entrevistas, para me mostrar tudo, ela começou a tirar alguns livros da estante e me entregar. Eu falei ‘mas Sueli, você não pode fazer isso, a sua biblioteca é um acervo, é um patrimônio público, você não pode ficar dando livro para ninguém’. A gente deu risada.
Foi no contexto de pesquisa do livro que nasceu essa possibilidade de fazer a Casa Sueli Carneiro como um espaço de memória e de formação ativista intelectual e tem sido muito bonito começar a trabalhar na organização do acervo da Sueli. Eu fico sonhando que a hora que o acervo estiver organizado, digitalizado, a casa aberta e a gente puder circular no mundo, muitas outras coisas a gente vai descobrir. As fundadoras somos eu, Ana Letícia Silva, que nos apoiou no planejamento estratégico e que hoje também compõe a organização, a Luanda, que é filha da Sueli e a Natália Carneiro, que além de sobrinha de Sueli, é uma excelente comunicadora. Além de nós, temos um conselho com uma série de pessoas.