Supermercado Assaí é condenado por golpe de enforcamento em criança negra dado por segurança

“A decisão é um alívio porque meu filho ainda sofre com isso e tem medo de entrar nesse mercado até hoje”, diz mãe do menino, que tinha 10 anos quando a agressão aconteceu, em 2019; Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou recurso da empresa e manteve sentença na quarta-feira (9/2)

Fachada da unidade da rede atacadista Assaí, na Avenida Ayrton Senna, bairro de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, onde menino foi agredido | Foto: reprodução/Google Street View

“Essa decisão veio como um conforto e um alívio porque meu filho sofre com isso e tem medo, não consegue entrar nesse mercado até hoje.” O desabafo é da técnica em saúde bucal Luana Paulino, 33, ao receber a notícia de que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve a condenação para que a rede de supermercados Assaí pague uma indenização à família, na quarta-feira (9/2).

Em 24 de outubro de 2019, um segurança da unidade em Jacarepaguá, na capital fluminense, deu um golpe de enforcamento em N., que tinha 10 anos, quando a criança entrou no local após deixar um dos carrinhos de compras do lado de fora.

A 3ª Câmara Cível do Fórum Regional de Jacarepaguá decidiu em unanimidade para negar o recurso que a defesa do supermercado havia entrado contra o pagamento da indenização no valor de R$ 30 mil em danos morais. Os desembargadores seguiram o voto da relatora Andréa Maciel Pachá, que chegou a citar trecho do livro Racismo Estrutural, do presidente do Instituto Luiz Gama Silvio Almeida, para fundamentar seu voto. “Para enfrentar essa chaga que nos envergonha e nos diminui em humanidade, precisamos, antes de mais nada, deixa-la visível e adotar, institucionalmente, práticas antirracistas para reduzir os danos, respeitando a intensidade da dor que o preconceito produz”, escreveu.

“Não há dúvidas de que, ser abordado com violência, em local movimentado, a pretexto de ter sido confundido com adolescentes infratores, expôs a criança a situação vexatória, cuja reparação deve ser a mais integral possível, ainda que se tenha consciência de que não há dinheiro que repare o constrangimento experimentado”, prosseguiu a magistrada. “O racismo que nos estrutura deve ser enfrentado também na perspectiva da reparação, a fim de que a prática do preconceito não se naturalize, nem se perpetue.”

A mãe da criança lembra com angústia daquele dia. “Ele estava com o pescoço sangrando, como se fosse [ferimento] de unha ou relógio, e dizendo que estava com muita falta de ar. Na hora, eu fiquei desesperada e sem ter muita reação”, conta. Ela, que é mãe de mais dois filhos além de N., tinha decidido passar no mercado com o esposo e os dois meninos menores antes de irem à igreja. “A gente estava pegando os carrinhos, o meu filho menor pegou um e o N. pegou o outro, mas eu disse para ele [N.] que não precisava porque já tinha um, ele devolveu e vinha atrás para entrar, fomos entrando e tudo aconteceu pelas minhas costas.”

Lesão física e psicológica

Luana afirma que falou com um gerente que se identificou como Marcelo sobre a ação do segurança e pediu para ver as câmeras do local. “Ele disse para eu ficar tranquila, porque ia pedir autorização para a empresa, que era terceirizada, mas, no máximo no dia seguinte, iria entrar em contato. Isso foi numa quinta-feira, ele só entrou em contato no sábado dizendo que não poderia nos mostrar as imagens porque era de uso exclusivo da empresa.”

Ela decidiu registrar um boletim de ocorrência no dia seguinte à agressão. “A gente no começo nem queria procurar a polícia porque a gente queria resguardar a vida do N.”, pontua. “Mas a escola pediu para que nós procurássemos a delegacia e registrássemos, porque ele foi para escola e ficou o dia inteiro de cabeça baixa, sem querer falar com ninguém, e a escola perguntou o que estava acontecendo, e ele disse para a diretora que ele estava triste porque foi no mercado com o pai e com a mãe e o segurança achou que ele ira roubar e machucou o pescoço dele. O pescoço dele ainda estava marcado.”

O laudo de exame de corpo de delito identificou lesão no pescoço do menino. Segundo ela, o gerente ainda teria dito que o segurança pegou no pescoço da criança “para evitar que caísse” e que não era comum esse tipo de comportamento acontecer.

“O problema é que [o mercado] fica perto de duas comunidades muito pobres, que é a Cidade de Deus e a Gardênia. O Marcelo só me pediu uma desculpa e disse que ali era um local onde tinha muito furto, que as crianças ficavam pedindo ali as coisas para os clientes, e fico triste porque meu filho tem um pai e uma mãe para defendê-lo, mas e as outras crianças? Não precisava passar por esse absurdo de violência porque poderiam ter matado o meu filho”, diz sem conter as lágrimas. “Duvido muito que alguma criança branca tenha sido tratada dessa maneira que o meu filho foi.”

Trecho do laudo de exame de corpo de delito da vítima que indica lesão no pescoço (grifo feito pela Ponte) | Imagem: reprodução

A vítima também passou em um posto de saúde que a encaminhou para acompanhamento psicológico e do Conselho Tutelar. “Ele fez terapias e por um tempo não quis frequentar mercado nenhum, hoje ele consegue entrar em alguns, mas no Assaí mesmo, que fica próximo da nossa residência e qualquer outro, ele não consegue entrar porque ele fica em desespero, ele entra em pânico”, afirma Luana Paulino.

Em um dos laudos de exame psicológico que a Ponte acessou, a psicóloga da criança descreveu que, nas primeira sessões que ocorreram em 2020, N. dizia que “nunca mais iria entrar em um mercado ou atacadista Açaí (sic) pois sentia muito medo. Relatou pesadelos e receio de dormir sozinho no quarto”, que tinha crises de pânico ao lembrar do que aconteceu, além de “medo de policiais ou pessoas vestidas com uniformes de segurança”.

A família só conseguiu acessar as imagens de câmeras de segurança após entrar com a ação judicial com pedido de indenização por danos morais. A reportagem não conseguiu acessar o registro por se tratar de mídia física, mas há uma descrição do conteúdo na ata da audiência que aconteceu que corroborou para a sentença de condenação em primeira instância:

Ato contínuo, passou-se a exibição da mídia, onde consta que os pais entraram com um filho, o autor [criança] ficou um pouco para trás para levar o carrinho no local. O autor passa com o carrinho deixa o carrinho no local dos carrinhos do lado de fora da porta do supermercado, tenta entrar correndo no supermercado, é detido pelo segurança que está na porta aos 29s, o segurança permanece segurando o autor, fazem um giro, em seguida o segurança solta o autor, o segurança faz um gesto de “tudo bem” e libera o autor que segue correndo para dentro do supermercado, onde já estavam os seus pais. Foram 05 segundos de abordagem. A segunda mídia de outro ângulo ratifica o que foi relatado.

Recurso negado

A defesa do supermercado, feita pelo escritório Queiroz e Lautenschläger Advogados, de início negou que tivesse ocorrido agressão, depois minimizou a denúncia dizendo que o menino foi puxado pelo braço “como um ato de reflexo, considerando que o AUTOR adentrou ao estabelecimento, correndo e desacompanhado de seus pais” e que a gerência se desculpou depois. Também afirmou que não haveria comprovação de que a lesão teria sido praticada pelo segurança e que “os funcionários são treinados e capacitados para lidar com situações do gênero”.

Como a juíza em exercício Talita Bretz Cardoso de Mello não acolheu a argumentação do Assaí na primeira instância e condenou a rede de supermercados em setembro do ano passado, os advogados entraram com recurso. Eles alegaram que o segurança exerceu de forma regular “a guarda e segurança do local, haja vista tratar-se de empresa privada, uma vez que o fato se deu no Estado do Rio de Janeiro, o qual possui altos índices de criminalidade e violência, o que é de amplo conhecimento público”, e que não teve a intenção “de fazer qualquer abordagem vexatória ou excessiva”. O recurso, porém, é o que foi negado nesta semana.

Nos documentos enviados à Polícia Civil, consta que o segurança, Edson Lins, um homem branco de 60 anos, não é contratado como segurança e sim como operador de loja do supermercado – ou seja, para atividades auxiliares do estabelecimento. Também não há registro dele na Polícia Federal, órgão responsável por emitir licenças para vigilantes e empresas de segurança privada. A Ponte não conseguiu localizar Edson.

Ele não compareceu para depor na delegacia por problemas de saúde e o delegado Ismael Souza Silva, da 32ª delegacia, recomendou, em despacho de janeiro de 2020, que o caso fosse remetido ao 16º Juizado Especial Criminal de Jacarepaguá. O boletim de ocorrência tinha sido registrado como contravenção penal de vias de fato (artigo 21 da Lei 3.688/1941), que é uma infração de menor potencial ofensivo e se trata de uma agressão que não implica em lesão corporal, cuja pena é de prisão simples, de 15 dias a três meses, ou multa.

Ajude a Ponte!

Luana Paulino disse à reportagem que não sabe como está essa investigação no âmbito criminal, mas diz que a sentença na área cível lhe trouxe um pouco de alento. “Que meu filho possa crescer e ver que eu lutei, pelo menos um pouquinho, para que justiça seja feita, porque a gente teve receio de não dar em nada, só quando tem mídia tem alguma coisa.”

O que diz a rede Assaí

A reportagem questionou a assessoria da empresa a respeito do caso, além da atuação do segurança no local. Não houve resposta sobre Edson e foi encaminhada a seguinte nota:

O Assaí tem como valores o compromisso, o respeito e a inclusão, entendendo a diversidade como fator de inovação e desenvolvimento socioeconômico para dentro e fora da Companhia. A empresa compreende que há muito trabalho a ser feito ainda na construção de um país e uma sociedade mais inclusivos e respeitosos. Assim, vem se atualizando e evoluindo continuamente por meio de ações de sensibilização, formação e recrutamento inclusivo, além de procedimentos internos, a exemplo da criação do Programa de Diversidade e Combate à Discriminação. Por meio dele, o Assaí consolidou políticas, realizou assinaturas de acordos e firmou parcerias para aprofundar o conhecimento de colaboradores(as) e prestadores(as) de serviço na promoção de direitos humanos e no combate a todo e qualquer tipo de violência, intolerância e discriminação.

O que diz a Polícia Civil

Perguntamos sobre o inquérito bem como sobre o motivo do registro ter enquadrado uma contravenção penal, mas a assessoria disse que caberia ao Tribunal de Justiça responder.

O que diz o TJ-RJ

Procurado sobre o inquérito no âmbito criminal, até a publicação a assessoria não respondeu.

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