Supermercado Confiança é condenado a pagar R$ 20 mil por agredir cliente

Juiz acreditou na tese de que jovem teria feito compra de R$ 41 para furtar um chocolate de R$ 2, mas mesmo assim decidiu que seguranças cometeram abuso ao agredir jovem com socos e ‘mata-leão’

Câmeras flagram seguranças agredindo Wesley dentro do supermercado | Foto: Reprodução

A rede de supermercados Confiança foi condenada na Justiça a pagar R$ 20 mil reais em indenização por danos morais para o agricultor Wesley Felipe Mansueto, 26 anos, agredido com socos, chutes e um golpe de “mata-leão” por seguranças de uma unidade em Bauru (SP) em 7 de junho do ano passado.

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O juiz André Luiz Bicalho Buchignani considerou, em audiência realizada na 6ª Vara Cível do Fórum de Bauru, em 8 de agosto, que os seguranças do supermercado cometeram “abuso de direito” ao agredirem o jovem, o que significa que podiam “abordar um consumidor que cometia furto”, mas ultrapassaram os limites desse direito ao agredi-lo (leia a decisão).

Na noite da agressão, Wesley foi acusado pelos seguranças de ter furtado um chocolate Snickers no valor de R$ 2,85, embora tivesse acabado de gastar R$ 41,41 na compra de uma garrafa de vinho, quatro latas de cerveja, um pacote de papel toalha e outros chocolates.

A alegação de furto não foi levada a sério pela Polícia Civil, que decidiu não abrir inquérito para investigar o suposto “crime”.

Contrariando o entendimento criminal, o juiz André considerou em sua decisão que as imagens das câmeras do supermercado indicavam uma “prova robusta” de que Wesley teria furtado o chocolate, porque mostrariam, na visão do magistrado, que o agricultor, “com bastante destreza, passa uma embalagem chocolate de uma mão para outra até ocultá-la no bolso”. Em seguida, o magistrado pergunta: “Fosse a intenção de pagar por aquele produto, por que o autor não o colocou com os demais produtos na cesta que trazia consigo?”.

Na prática, a afirmação do juiz de que o jovem teria cometido um furto não tem qualquer consequência, já que o magistrado é da área civil e não tem competência para analisar as questões criminais do caso.

Seguranças arrastam jovem por suspeita de furto de chocolate no valor de R$ 2 | Foto: Reprodução

Os advogados de Wesley haviam pedido indenização de R$ 250 mil e que o Confiança pagasse terapia psicológica ao jovem, o que foi negada pelo juiz, por considerar que a vítima não apresentou provas de que sofre de insônia e sintomas de síndrome de pânico por causa das agressões, como afirma.

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Apesar de achar positiva a condenação do supermercado, Wesley ficou decepcionado com a negativa do tratamento psicológico, porque até hoje conta que é perseguido pelos traumas daquela noite. “Senti que pelo menos algo aconteceu sobre. Eu estava com medo dos funcionários. Em alguns momentos eu sinto que quem eu era antes já não existe mais”, disse.

‘Trajetória de sucesso’

O Confiança é uma rede de supermercados com quatro décadas de história, dona de 15 lojas nas cidades paulistas de Bauru, Marília, Pederneiras, Jaú, Botucatu e Sorocaba. Menos de quatro meses após a agressão a Wesley vir a público, vereadores de Bauru aprovaram, em 5 de outubro, a entrega de uma moção de aplauso ao presidente da empresa, Jad Zogheib, por sua “trajetória de sucesso”

Wesley trabalha como agricultor autônomo, mantendo suas próprias plantações e auxiliando outros agricultores, além de atuar como cozinheiro e pizzaiolo. Ao longo de toda a sua vida, Wesley frequentou o Confiança do bairro onde mora, a Vila Falcão. Trata-se do bairro mais antigo de Bauru, surgido por volta de 1906, e foi ali que a empresa instalou seu primeiro supermercado, em 1951, na época chamado de Casa Confiança.

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Na noite de 7 de junho do ano passado, contudo, Wesley não pôde concluir suas compras e retornar para casa, como de costume.

O agricultor foi abordado por dois seguranças quando saía da loja. Sem explicações, a dupla agrediu Wesley com socos, pontapés e um “mata-leão”. O jovem foi arrastado de forma “humilhante”, como ele relata, pelos corredores do mercado cheio, e levado até uma sala de uso exclusivo dos funcionários.

Lá, o estudante e agricultor permaneceu por 30 minutos sob custódia dos seguranças, período em que apanhou mais e recebeu ameaças.

Mais tarde, em 19 de junho de 2023, imagens do circuito de segurança mostrando as agressões repercutiram na TV local. O Confiança então emitiu uma nota afirmando que “não compactua com essa postura” e demitiu ao menos dois dos funcionários envolvidos por justa causa. 

Os seguranças demitidos entraram com um processo trabalhista contra o Confiança afirmando que o desligamento por justa causa não cabia, já que seguiram os protocolos da empresa. 

“Isso porque, a justificativa apresentada pela Reclamada [Confiança] ao dispensar o Reclamante [funcionário demitido] por justa causa mostra-se insustentável, não representando a realidade dos fatos, uma vez que obreiro agiu segundo as orientações da reclamada, ao passo que se deu dentro das normas de segurança estabelecidas pela Reclamada”, diz um trecho do processo.

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Paralelamente, na ação movida por Wesley, o supermercado afirmou ter agido de forma correta, visto que o jovem teria cometido um furto.

Histórico de agressões

Na madrugada de 18 de agosto de 2021, seguranças de outra unidade do Confiança, também em Bauru, agrediram um homem, supostamente em situação de rua, com socos e pontapés. Um vídeo que registrou o momento chegou a viralizar nas redes sociais e também repercutiu em alguns veículos de mídia.

Fachada do supermercado Confiança na Vila Galvão, em Bauru (SP)
Fachada do supermercado Confiança na Vila Galvão, em Bauru (SP), palco de duas agressões | Foto: Milena Vogado/Ponte

E, apenas 5 dias após o episódio envolvendo Wesley, no dia 12 de junho de 2023, um homem negro foi acusado de furto na mesma unidade, na Vila Falcão. O mecânico Davi Ricardo, 35, estava procurando uma caixa de chocolates para presentear a esposa naquele Dia dos Namorados.

Após pesquisar os preços e desistir da compra, Davi devolveu uma caixa de bombons para a prateleira. Ainda assim, ao sair da loja, foi conduzido de forma coercitiva pelos seguranças do Confiança, que o acusavam de furtar a loja.

O mecânico diz que chegou a mostrar a nota fiscal, mas os seguranças se recusaram a conferir o documento. Eles também teriam se recusado a chamar a polícia, a mostrar as câmeras de segurança e, inicialmente, até mesmo a revistá-lo, o que fizeram por insistência de Davi. Após a revista, não encontraram nenhum produto do supermercado sobre sua posse.

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O homem também move uma ação por danos morais contra o supermercado. Seu advogado, Leandro Pistelli, explicou que aguarda designação de audiência para andamento do processo. “Vai ser necessário produzir provas através de testemunhas e ainda não foi marcado”, disse.

O que diz o supermercado

A Ponte tentou contato com os advogados que representam o Confiança por telefone, e-mail e WhatsApp. A empresa não respondeu. A assessoria da empresa afirmou que optaria por não se manifestar sobre a decisão.

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