Depois do assassinato de Nakeia Jackson, sua irmã, a ativista Shackelia Jackson, foi presa por policiais, que tentaram impedi-la de lutar por justiça. “Sinto que sou um alvo em movimento e vivo com muito mais cautela do que gostaria”
O cozinheiro Nakeia Jackson foi assassinado aos 29 anos por um policial dentro de seu restaurante, numa pequena cidade jamaicana, em plena luz do dia 20 de janeiro de 2014, enquanto trabalhava. Ao deparar-se com a cena do crime, sua irmã Shackelia Jackson soube que lutaria por justiça — e nunca mais descansou.
“O assassinato do meu irmão me mostrou um outro lado da força da lei, dos agentes da lei”, afirma ela, que chegou a ser presa por policiais em uma tentativa de intimidação com o claro objetivo de frear sua luta.
A convite da Anistia Internacional Brasil, assim como a ativista norte-americana Marion Gray-Hopkins, a jamaicana veio ao país, onde participou de debates sobre a violência policial e o racismo e uniu-se a familiares de vítimas brasileiras.
Em entrevista exclusiva, ela contou à Ponte Jornalismo sua história e os desafios que vem enfrentando no decurso de uma intensa luta por justiça na Jamaica — país no qual, segundo Shackelia, “se um policial atira em você, desde que ele tenha chance, ele vai te matar e alterar a cena do crime”.
Em memória do irmão, ela criou a página Broken, Not Destroyed (“Quebrado, Não Destruído”), por meio da qual defende uma fiscalização efetiva da atividade policial e um modelo de segurança pública eficaz e sem violações de direitos humanos.
O caso Nakeia Jackson
Shackelia ouviu o despertador às 11h45 da manhã. Com sono, reprogramou-o para o meio-dia e voltou a dormir. 15 minutos depois, o alarme tocou novamente e o sono ganhou mais 15 minutos. Ela havia deixado um amigo no aeroporto às 6h45 e voltado para casa com sono naquela manhã de segunda-feira.
Quando tocou pela terceira vez, o som habitual do despertador não ecoou sozinho. “Quando ele tocou, eu ouvi Nakeia”, recorda a jamaicana, que se levantou, se vestiu e correu para o restaurante do irmão, dois anos mais novo que ela.
“Quando cheguei, ouvi alguém dizendo ‘Nakeia foi baleado, um policial atirou no Nakeia’. Pensei ‘não, não é possível, é mais provável a polícia atirar em mim do que nele’. Porque vou a festas, tenho uma vida social, então estou mais vulnerável. Meu irmão não fazia nada além de cozinhar, ficar em casa. Era um empreendedor, trabalhava muito”, conta.
As pessoas estavam trabalhando àquela altura do dia, pouco antes das 13h, e não havia muito movimento na cidadezinha, que, segundo Shackelia, é uma comunidade “pequena e acolhedora, onde não havia muitos problemas com crimes”.
Ela entrou na cozinha onde o irmão trabalhava e ele não estava lá. “Encontrei frango empanado quase queimando, farinha espalhada e as sandálias do meu irmão. O espaço era tão pequeno que não seria possível haver uma luta ali”, lembra. No salão do restaurante, havia clientes.
Testemunhas viram quando policiais chegaram em uma viatura e encontraram Nakeia colocando o lixo para fora. Ele já tinha entrado quando um policial entrou e o baleou pelas costas. Seu corpo fora arrastado, porque havia uma mancha de sangue pelo chão, segundo Shackelia. “As pessoas ouviram o barulho e viram o policial deixar o restaurante correndo e retornando para procurar outra saída”, afirma.
Ela preocupou-se em evitar que a cena do crime fosse alterada antes de correr para o hospital para onde seu irmão havia sido levado, ciente de que qualquer alteração poderia prejudicar as investigações sobre o crime. “Eu sabia que precisava preservar a cena do crime. Deixei o arroz, a colher, todas as coisas todas como estavam, e tranquei o restaurante para preservá-la”, recorda.
Ao mencionar seu receio de que a cena do crime fosse alterada, prejudicando a investigação do crime, a jamaicana falou sobre o modus operandi da polícia de seu país, que muito se assemelha ao que ocorre cotidianamente nas periferias brasileiras, quando policiais levam em sua viatura os corpos de jovens negros baleados em suas operações, inviabilizando, assim, que a cena do crime seja preservada para a realização da perícia e que as vítimas sejam socorridas no local, caso ainda não tenham perdido a vida.
“Uma prática comum na Jamaica é que, se um policial atira em você, desde que ele tenha chance, vai te matar e alterar a cena do crime. Por isso ele nunca deixa o corpo. Porque isso dá a indicação de que talvez ele estivesse tentando ajudar. Então, quando você o processa, ele se justifica dizendo que tentou levar a pessoa ferida para o hospital”, conta. “Ou o policial mata a pessoa no local ou ele a leva ferida. Mas, ao levá-la, eles normalmente dirigem até a pessoa morrer ou instruem enfermeiros e médicos no hospital a deixá-la morrer. Para evitar a responsabilização, claro”, completa.
Dez minutos depois de deixar o restaurante, ela chegou ao hospital, onde logo percebeu que o corpo de seu irmão já se encontrava sem vida. “Eu mal vi os médicos trabalhando. Verdade seja dita: meu irmão estava morto. Ele estava morto. Não havia nada a fazer para salvá-lo. Quando vi os ferimentos, soube que a situação era, no mínimo, muito grave. Vi um furo atrás do coração, varando no abdômen. Ele estava imóvel”, lamenta.
Nakeia, jovem negro que usava visual rastafári e dreadlocks, havia levado dois tiros pelas costas. Trabalhador, era “muito pacífico”, tinha uma vida pacata e “morreu atrás de um sonho”, segundo sua irmã, que era o de fazer dar certo o restaurante que havia aberto e ao qual dedicava-se profundamente.
“Eu sabia que ele estava morto, mas a audição é o último sentido que se perde, então fiquei falando com ele o tempo todo que eu o amava, que eu cuidaria dele, cuidaria de tudo”, recorda.
A jamaicana soube, naquele dia, que lutaria por justiça. “Eu sabia que não havia nenhum motivo para matarem o meu irmão. Eu colocaria minha própria cabeça em uma guilhotina por ele. Era esse o grau de confiança que eu tinha nele. Então eu estava preparada para lutar”, afirma.
Os policiais tentaram justificar o erro alegando que eles estavam perseguindo um rastafári que havia roubado um posto de gasolina e confundiram Nakeia com o suspeito. “Meu irmão vestia um avental, tinha farinha entre os dedos e estava tirando um lixo, com toda a comida ao redor, e o contexto não foi suficiente para garantir ao policial que ele não era o homem que eles procuravam”, revolta-se Shackelia. “Isso mostra que é aceitável, que é um tipo de comportamento institucionalizado. Então quando eu luto, não estou lutando contra esse policial, ele é insignificante diante desse problema maior”, completa.
Havia muitas testemunhas do momento em que o policial esteve no restaurante, mas as pessoas tinham medo de depor. Quando uma testemunha estrangeira dispôs-se a falar, porque a lógica da intimidação é diferente com pessoas de outros países, o juiz responsável pelo caso “misteriosamente adoeceu” e permaneceu “doente” por cerca de seis meses, período durante o qual o caso ficou estagnado, segundo Shackelia.
Mais de dois anos depois, o processo ainda corre na Justiça jamaicana.
“Também tentaram me enterrar”
Segundo Shackelia, o caso de seu irmão foi um dos primeiros na Jamaica em que a família da vítima conseguiu determinar como a história seria tratada pela mídia, evitando que Nakeia fosse criminalizado, protegendo sua memória — o que representa uma parte árdua da luta de familiares de negros e pobres mortos por policiais também em outras partes do mundo, como demonstra o caso Gary Hopkins, filho de Marion Gray-Hopkins, contado pela Ponte.
À parte essa vitória, a família não teve mais paz: perseguições, intimidações e ameaças tornaram-se parte de seu cotidiano. “Nossa casa passou a ser vigiada e todas as vezes que nós estávamos prestes a ir para o Tribunal, havia presença de policiais”, conta a jamaicana.
Ao tomar a frente das questões relativas ao caso e à pressão por justiça, ela chegou a ser presa injustamente por policiais que tentaram intimidá-la e sofreu tortura psicológica. “Eu fui presa, os policiais me disseram ‘quem você pensa que é? Pensa que está acima da polícia?’. À minha direita tinha uma policial com a arma apontada para mim e eu pude ouvir o clique”, recorda. “Também tentaram me enterrar. Sinto-me exilada”, define.
Ela vem segurando a barra pesada pela qual ela, seus pais e três irmãos passaram, e afirma que os preços financeiro e emocional do que aconteceu têm sido altos para a família. Seu pai não conseguia mais dormir em sua cama e mudou-se para a garagem que gerencia e de onde provém sua renda. “Tive que implorar para ele voltar para casa e ele desenvolveu pressão alta. Há uma instabilidade emocional constante, porque a gente tenta dar sentido”, conta. Sua irmã, que vive em Londres, também sofre de pressão alta desde então.
“Sinto que sou um alvo em movimento e vivo com muito mais cautela do que gostaria, porque ainda sou jovem e queria estar em festas, ter mais qualidade de vida, eu não deveria ser traumatizada e revitimizada”, afirma. “A luta é dura. Eu tenho mais três irmãos e me recuso a permitir que policiais matem outro. Eu me sinto traída pelo sistema”, encerra.
Assista ao vídeo com Shackelia (tradução abaixo):
“É importante ser forte para a minha família porque eu entendi o papel que eu fazia. Eu sempre fui aquela pessoa que queria todos felizes, que resolvia tudo. Eu não era o tipo de pessoa que começava um trabalho e não o concluía. Então, quando meu irmão morreu, essas características foram transferidas automaticamente porque era quem eu era. Era inato, estava investido em mim. Eu me lembro de uma conversa com o meu pai quando eu decidi deixar a Jamaica e ele disse: ‘Cuide-se. Eu te amo. Mas se você for, quem vai fazer isso por nós?’. Então, é importante ter o domínio de seus verdadeiros propósitos e é simplesmente natural, eu nem tento… Há dias em que eu realmente penso que deveria parar, mas eu não posso”, diz Shackelia Jackson.
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