Próximo sonho do roteirista Daniel Esteves é escrever uma HQ sobre Carlos Marighella
Por Justiça, Terra e Liberdade, o revolucionário Emiliano criou uma dos movimentos sociais de resistência mais importantes da América Latina. Símbolo mundial da luta por reforma agrária, Zapata é autor de frases célebres como “Se não houver justiça para o povo, não haverá paz para o governo”, “A terra é para quem nela trabalha” e “Melhor morrer de pé do que viver toda uma vida ajoelhado”.
A memória de Emiliano Zapata e o seu ideal de mundo mais justo fazem parte do enredo da história em quadrinhos “Por Mais Um Dia com Zapata”, que tem roteiro do Daniel Esteves e desenhos do Alex Rodrigues e Al Stefano.
Confira a conversa da Ponte Jornalismo com Daniel Esteves sobre o líder revolucionário mexicano, movimentos sociais, política na América Latina e quadrinhos.
Ponte Jornalismo – Quando começou o seu interesse por Emiliano Zapata?
Daniel Esteves – Costumo responder a isso falando sobre a época da faculdade. Sou formado em História e me apaixonei pelo tema da Revolução Mexicana durante as aulas de América Independente do professor Júlio Pimentel. Porém, ainda antes, durante a adolescência, já ouvia falar sobre Zapatismo através das músicas do Chico Science (Nação Zumbi) e do Fred Zero Quatro (Mundo Livre S/A). Mas foi na época da faculdade que decidi: Tenho que fazer uma HQ sobre esse assunto! A vontade ficou adormecida durante uns bons anos, até que tive coragem de encarar o desafio.
Ponte – Qual o foco principal do enredo da história?
Daniel Esteves – A história é contada através do ponto de vista de um Índio Brasileiro, sobrevivente de Canudos. A Revolução Mexicana, assim como a figura de Zapata, são vistos através dos olhos desse personagem fictício, que se juntou ao Exército Libertador do Sul, após sua chegada ao México. A HQ se passa em dois tempos diferentes, dois focos narrativos. Num o protagonista, após fugir da prisão, está a procura de Zapata e de seus companheiros revolucionários, já no fim da Revolução Mexicana. Noutro, através das memórias do brasileiro, reconstruímos os principais momentos da Revolução e da vida de Zapata. Apesar do protagonista da história não ter existido, a HQ pretende ser uma reconstrução histórica mais fiel possível as lutas e ideias de Emiliano Zapata, sobretudo no que concerne a devolução e divisão das terras aos povos originários e camponeses, terras que naquela altura estavam nas mãos de alguns poucos latifundiários protegidos pelo governo do Ditador Porfírio Díaz.
Ponte – Quanto tempo levou para escrever o roteiro e como foi o critério de escolha dos parceiros?
Daniel Esteves – O projeto foi desenvolvido em pouco mais de um ano. Entre pesquisa, escrita do roteiro, desenhos e edição. Como o processo precisava ser fluido devido a intensa pesquisa, antes mesmo de eu terminar todo o roteiro final, os artistas já estavam trabalhando nos primeiros capítulos. A pesquisa foi feita tanto em livros a respeito da revolução e sobre Zapata, quanto também em uma infinidade de documentos encontrados num sítio da internet fantástico. Cartas, manifestos, matérias de jornal, músicas, fotos, entre muitos outros materiais de fontes primárias. Os ilustradores já são antigos companheiros de outras empreitadas. Quando tive as primeiras ideias da forma de contar essa história e pensei nos dois tempos narrativos, veio essa possibilidade de convidar dois artistas para desenharem a HQ. Alex Rodrigues trouxe ao livro um grande dinamismo para desenhar a busca do protagonista por Zapata. Já Al Stefano contribuiu muito com seu preciosismo para retratar grandes cenas de batalhas e cenários históricos.
Ponte – O Zapatismo deixou marcas tão fortes na história do México que em 1994 houve o levante de Chiapas por terra e liberdade. Isso também entrou no seu livro?
Daniel Esteves – As marcas do Zapatismo são tão profundas na História mexicana que a figura de Emiliano Zapata retorna de tempos em tempos em diversos movimentos populares. Chiapas foi apenas o mais recente e conhecido. Relembrou o nome de Zapata para o mundo. Originalmente eu pretendia retratar mais o movimento dos Zapatistas de Chiapas, porém em meio a tanto conteúdo tive que retirar alguns elementos. Mas não os tirei por completo da história, existe um certo momento de devaneio do protagonista, onde ele enxerga passado e futuro do México e Brasil. Esse trecho da HQ é todo pontuado pela Quarta Declaração da Selva Lacandona, um escrito do EZLN de janeiro de 1996. Mas ainda tenho vontade de retratá-los mais profundamente em alguma HQ. Talvez até em algo futurista.
Ponte – O Zapatismo é pouco estudado e falado nas escolas. Você acha que é por medo que a história dele inspire os jovens a se rebelarem por mais justiça social?
Daniel Esteves – Quando eu fui aluno do ensino fundamental e colegial, nada se falava sobre a Revolução Mexicana. Porém, ela entrou no Currículo escolar há alguns anos e espero que continue assim. Apesar da figura de Zapata ser razoavelmente conhecida em boa parte do mundo, enquanto um ícone revolucionário, pouco se sabe sobre sua História e seus ideais. Mas acredito que desde Chiapas a imagem dele vem sendo mais retratada e com isso cria-se um interesse maior por ele e pela Revolução Mexicana. Em certas ocasiões, quando falo que fiz um quadrinho sobre Zapata, algumas pessoas acham que se trata de um “bang-bang”, devido ao filme dos anos 50 estrelado por Marlon Brando. É, inclusive, um bom filme, mas que deturpa algumas passagens da vida de Zapata e da Revolução Mexicana, em prol da narrativa. Algo que eu entendo enquanto roteirista, mas que tentei evitar nesta obra. Mas o mundo é um lugar muito confuso, né? Já vi gente que participa de uma organização que usa a imagem e nome de Zapata (não é algo de cunho político) e se posicionou em redes sociais contra as ocupações das escolas públicas, taxando os alunos como baderneiros e vagabundos. Minha cabeça funde nesses momentos. Como alguém pode gostar da imagem do Zapata e ao mesmo tempo condenar a luta desses estudantes? É muito triste!
Ponte – Na sua opinião, a figura do Emiliano Zapata é tão importante e representativa para os movimentos de esquerda quanto a do Che Guevara?
Daniel Esteves – Não tenho dúvidas disso, apesar dele não ser tão conhecido. A Revolução Mexicana foi a primeira revolução social e popular da América Latina. Ela começa antes mesmo da Revolução Russa, em 1910, e vai até 1919, com a morte de Zapata. A face mais popular e social da revolução se deve em grande medida a atuação do Exército Libertador do Sul, liderado por Emiliano Zapata. Quando os revolucionários de Morelos estiveram no poder Estadual por um breve período, iniciaram uma série de reformas. Desde a Reforma Agrária, com a distribuição de terras e o reconhecimento das propriedades coletivas; a nacionalização de fábricas e engenhos para serem administrados pelo povo; criação de bancos e escolas agrícolas; apoio a formação de cooperativas; estabelecimento da propriedade nacional das águas; reformaram todo o sistema político do Estado para garantir ampla participação das organizações populares não só por meio das eleições, mas também por meio da ação direta; fortaleceram os poderes dos Municípios, povoados e Vilas; começaram a criar leis para relações trabalhistas, para o reconhecimento dos sindicatos, para criação de fundos de aposentadoria e pensão; incentivaram a ampliação de escolas; tentaram legislar contra a criação de monopólios para a exploração das riquezas do solo; reviram impostos para eliminar os que incidiam sobre os artesãos, os pequenos comércios e os artigos de primeira necessidade, e para aumentar impostos sobre heranças; entre outras ações. Coisas que a esquerda milita até hoje foram implantadas em cerca de um ano e meio de atuação dos Zapatistas em Morelos, uma ação levada a cabo por um grupo de camponeses em armas e por alguns intelectuais anarquistas que se juntaram a eles. Tudo isso no princípio do século passado, entre 1915 e 1916. Infelizmente o Governo Federal, de outra facção revolucionária, não aceitava a independência política do Exército Libertador do Sul e a maior parte dessas conquistas foram sendo aniquiladas, até a morte de Zapata.
Ponte – Recentemente, as esquerdas chegaram ao poder em vários países da América Latina, mas na sequência foram substituídos por governos neoliberais ou conservadores de direita. Por que aconteceu essa guinada? Onde foi que a esquerda errou?
Daniel Esteves – Muitos analistas tentam arriscar explicações e acredito que elas variam de caso a caso. Em se tratando de Brasil, acredito que a esquerda no poder errou principalmente ao propagandear muito mais os avanços no plano do consumo do que da cidadania. Além, lógico, das tão já criticadas alianças, que foram ampliando o espaço da direita no seio do governo supostamente de esquerda e de, em plena crise política e econômica ter iniciado ações que distanciavam o governo de sua base social. Mas acredito que essa guinada a direita ocorreu mais pelos acertos das esquerdas do que pelos erros. A pressão da grande mídia, o crescimento de movimentos de direita patrocinados por grandes empresários e/ou políticos, a politização da esfera judicial, a crise política e econômica, enfim, muitos elementos levaram a derrota atual da esquerda no Brasil, inicialmente através do Golpe e posteriormente com resultados abaixo do esperado nas eleições municipais. O cenário é terrível, mas não acho que podemos cair no papo do caos total. Já li políticos importantes da esquerda falando que nunca estivemos em tão maus lençóis quanto atualmente. Como assim? Esquecem da História do Brasil, onde as esquerdas sempre foram duramente reprimidas e muitas vezes até mesmo proibidas oficialmente. A situação atual é de muitos retrocessos, mas não acho saudável cair nesse papo de perda total.
Ponte – A eleição do Trump indica um futuro incerto para as relações com o México. É possível que isso fortaleça também o movimento Zapatista no México como um contraponto? Parece que EZLN vai lançar uma candidata indígena nas próximas eleições.
Daniel Esteves – O governo mexicano tem se alinhado há tempos com a política neoliberal e se utilizado de muita violência contra os movimentos sociais. A situação mexicana, que já era muito ruim, tende a ficar pior agora com a eleição do Trump. Não só com o que ele pode fazer, pois é de se duvidar que ele cumpra de fato com todas as falácias que falou durante a campanha, mas com o que a eleição dele representa: o crescimento da extrema direita e de discursos de ódio. Espero que o EZLN e outros movimentos de esquerda mexicanos consigam ganhar espaço e sobreviver ao cenário atual.
Ponte – O nome do seu cachorro é Zapata? Por que você escolheu este nome?
Daniel Esteves – Como disse anteriormente, a vontade de fazer uma HQ sobre Zapata já era antiga. Talvez, inconscientemente, dar o nome do meu cachorro de Zapata foi uma forma de me obrigar a finalmente fazer o tal quadrinho. Eu já produzo quadrinhos há anos e tenho um selo independente. Porém, rebatizei o meu selo para “Zapata Edições” em 2014, com uma figura do meu cachorro usando sombreiro. Pouco tempo depois comecei a produzir a HQ sobre o Emiliano.
Ponte – O Brasil ainda conhece pouco sobre os movimentos sociais e políticos de resistência contra as ditaduras. A sua HQ tem o objetivo de mudar este cenário?
Daniel Esteves – Produzir quadrinhos para mim, assim como qualquer outra forma de arte, é um ato político. Seja em temas mais sérios como esse, seja noutras histórias mais leves que já produzi. Os quadrinhos podem ser uma forma das pessoas tomarem contato com esse tipo de assunto. Espero que sirva para ampliar os horizontes de algum leitor. Como foi também o efeito de algumas grandes histórias que li.
Ponte – Você tem vontade de escrever mais sobre a história política das Américas e os movimentos de resistência?
Daniel Esteves – Com certeza! Mas produzir HQs históricas é uma atividade muito desgastante, fica difícil emendar uma na outra. Mas tenho sim vontade de fazer outras HQs falando sobre outros momentos históricos da América Latina. Já fiz quadrinho a respeito de Canudos, por exemplo. Assim como outro sobre cultura afro-brasileira. Mesmo minhas HQs de zumbis (São Paulo dos Mortos) tratam de alguma forma de temas políticos. Por outro lado, já há algum tempo penso em fazer uma HQ sobre Marighella, quem sabe em breve. Mas mesmo a Revolução Mexicana ficou ainda com muitas pontas soltas que gostaria de trabalhar noutras HQs. E sei que se for ao México, um desejo já antigo, até mesmo de lançar o livro do Zapata por lá, voltarei cheio de ideias para novas histórias.
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