Estande do oficial da reserva da PM de São Paulo no Anime Friends vendeu gibis que o retratam como “soldado de Cristo” e distribuiu balinhas da “Bancada da Bala”
“Você sabe quem é o Coronel Telhada?”, pergunta um homem vestido como combatente de guerra: capacete, colete e óculos escuros que cobrem metade do seu rosto.
Segurando nas mãos um enorme fuzil de plástico usado em combates de airsoft (jogo de combate semelhante ao paintball, com a diferença de que usa projéteis de plástico em vez de tinta), o combatente prossegue, triunfante: “O Coronel Telhada é como os heróis da DC e da Marvel que os jovens gostam, só que ele é real”.
A indumentária militar usada pelo atendente do estande do Coronel Telhada parece discreta perto das gigantescas perucas coloridas, maquiagens corporais e capas esvoaçantes usadas pelos outros frequentadores do Anime Friends, evento de cultura pop voltado principalmente para os quadrinhos (mangás) e desenhos (animes) japoneses, que neste ano ocorreu entre os dias 8 e 17 de julho no Campo de Marte, Zona Norte de São Paulo.
Mesmo não sendo tão chamativos, os funcionários do estande do Coronel Telhada se esforçavam para tentar emplacar o seu super-herói junto à molecada do evento. Para isso, contavam um pouco da história do coronel da reserva Paulo Adriano Lopes Telhada – ex-comandante da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e hoje deputado estadual pelo PSDB, membro da Bancada da Bala – e ofereciam brindes, muitos brindes. Um mais “interessante” do que o outro.
Entre os brindes, tinha pedaços de cartolina para recortar e montar viaturas da Polícia Militar, miniaturas também em cartolina do Coronel Telhada sorridente e fardado, um jogo da memória com os brasões das polícias e um quebra-cabeças, sem falar nas balas docinhas que estampavam a marca Coronel Telhada – Bancada da Bala.
Dava até para ganhar um informativo contendo uma lista das realizações de Telhada como político e uma página com recortes de jornais só com notícias sobre ele – todas positivas, claro: nenhuma menção a episódios polêmicos, como a vez em que o deputado ameaçou prender uma estudante que pedia a criação de uma CPI para investigar a fraude nas merendas escolares ou quando escreveu um post defendendo que os estados do Sul e Sudeste deveriam “iniciar um processo de independência“.
E, por meros quinze reais, ainda dava para comprar o principal tesouro do estande: as três edições da revista Coronel Telhada em Quadrinhos, publicada desde 2014, ao ritmo de uma edição por ano.
Apesar de tantas atrações, quando a reportagem da Ponte visitou o Anime Friends no último dia do evento, há duas semanas, o estande do Coronel Telhada era um dos mais vazios do evento.
Aparentemente, o super-herói da PM ainda não conseguiu se tornar tão popular quanto Naruto ou Goku, mas segue tentando.
Superman X Carlos Lamarca
“Não só eu, mas todos os policiais militares somos um pouco como o Superman”, afirma Telhada na última edição da sua revista em quadrinhos. No mesmo gibi, Telhada garante que acompanha “este universo mais pop”, tanto que foi ao cinema ver “Minions” e até leu um mangá, “Zero Eterno”.
Foi na divulgação do seu gibi que o coronel conheceu o Anime Friends. A partir de 2015, passou a manter um estande na festa. Como deputado, conseguiu aprovar no ano passado a Lei 16.065/2015, que insere o Anime Friends no Calendário Turístico do Estado de São Paulo, por ser “um evento que tem por objetivo agregar famílias, preservar a cultura e proporcionar um lazer sadio”.
O site do deputado afirma que Coronel Telhada em Quadrinhos se inspirou no sucesso do Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, para criar “um herói nacional que combata o crime nos rigores da lei” (pelo visto, alguém esqueceu das torturas e execuções que o Capitão Nascimento comete no primeiro filme).
No gibi, Telhada é esse herói. Com textos e desenhos simples, as histórias da revista se baseiam em fatos reais da trajetória do coronel, que em 32 anos de carreira matou 36 pessoas. Em determinados momentos, porém, os quadrinhos amenizam a violência dos fatos. Uma ocorrência de 1996, por exemplo, que, segundo os jornais da época, terminou com três mortos, tem um desfecho bem menos sangrento no gibi: Telhada, o herói da história, captura todos com vida, contando com a ajuda de um PM anjo. Isso mesmo: um anjo de farda, boina e asas, que, com o perdão do spoiler, aparece no último quadrinho.
O anjo é uma das várias referências religiosas que enchem as páginas. Retratando Telhada como um “soldado de Cristo”, o gibi volta e meia se vale de momentos que ressaltam o lado evangélico do protagonista. Há até um flashback da infância do coronel, que mostra o pequeno Telhada sofrendo bullying de outras crianças da rua por preferir estar na igreja a jogar bola.
Os quadrinhos também abrem espaço para mostrar um pouco dos bastidores da atuação de Telhada como parlamentar, mas não espere nenhum House of Cards. Em seu trabalho como político, o coronel é mostrado no plenário com uma expressão de tédio, pensando com seus recordatórios “Eu trocaria fácil tudo isso isto para estar dentro de uma viatura atrás de bandido” e “que saudade das ruas” e fazendo cara de bravo em meio a parlamentares sorridentes.
Num dos episódios baseados na infância do personagem, o gibi fala da admiração do pequeno Telhada pelo tenente Alberto Mendes Júnior, patrono da Polícia Militar paulista, que em 1970 foi morto pelo guerrilheiro Carlos Lamarca.
O roteiro não se preocupa em explicar o contexto histórico. Lamarca e seus companheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) são descritos apenas como “um grupo de desertores do Exército brasileiro, acusados de praticar assaltos e sequestros”. Nenhuma palavra sobre a ditadura militar, que naquele ano vivia um dos períodos mais duros. Ao mencionar que os guerrilheiros foram presos, o texto omite que a maioria morreu sob tortura. Afinal, para a história que está no gibi, Lamarca é o assassino de um herói e isso basta. O universo de Coronel Telhada Em Quadrinhos é tão simplório quanto o de qualquer gibi da Era de Ouro, dividido entre heróis bons e corajosos e vilões maus e covardes.
Para deixar o quadrinho com ainda mais cara de gibi das antigas, toda trama termina com Telhada explicando a moral da história, na linha dos conselhos que encerravam os desenhos do He-Man nos anos 80. Mas são mensagens bem diferentes das que saíam da boca do príncipe de Etérnia. No hora de explicar o moral da história, o protagonista aparece dizendo que a polícia de São Paulo mata pouco e afirmando que, “se tiver que chorar uma mãe, que chore a mãe do bandido”.
