Maria Lutterbach, diretora do documentário ‘Potência N’, destaca a importância de abordar a questão racial e de gênero na Matemática, área tradicionalmente ocupada por homens brancos
Se você for mulher, enfrentará barreiras para se destacar no meio acadêmico. Se, além disso, você for negra, o funil aumenta ainda mais. Motivada por essa inquietação é que uma das fundadoras da plataforma Gênero e Número, Maria Lutterbach, decidiu fazer o minidocumentário “Potência N”, que trata da baixa presença e permanência de pesquisadoras negras na Matemática, importante área das ciências exatas. “As barreiras enfrentadas pelas mulheres negras para entrar na universidade e avançar na pesquisa se revelam na baixíssima presença delas na docência. Na Matemática, campo historicamente masculino e branco, essa discrepância é ainda mais visível”, explica a diretora em entrevista à Ponte.
Para ela, políticas afirmativas como o sistema de cotas têm ajudado a diminuir essa discrepância, mas o avanço é ainda muito lento. “Vem surgindo um debate sobre gênero e racismo institucional que, apesar de incipiente, traz com ele muita potência. Entendemos que é fundamental fazer ecoar essa discussão não só dentro da academia, mas entre todos que percebem a equidade como base de uma sociedade mais justa”, explica.
Maria destaca que mulheres negras são menos de 3% do total de doutoras docentes da pós-graduação no Brasil, de acordo com dados do último Censo de Educação Superior (2016). Além disso, brancas acessam 30% a mais de bolsas CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) em relação às negras. O documentário foi lançado na última terça-feira (9/10). Essa é a segunda produção do GN com foco em ciência e gênero, realizada com apoio do Instituto Serrapilheira.
De acordo com Maria Lutterbach, a aproximação com o tema aconteceu depois de uma reportagem de Lola Ferreira para a plataforma, em junho deste ano. “A partir dela, entendemos que apresentar mais de perto a pesquisa de algumas dessas acadêmicas, dando cara a essas mulheres, poderia ser uma contribuição ao debate, já que o campo carece de referências negras”, explicou.
Com o respaldo de dados que evidenciam as desigualdades do cenário, a produção trouxe as vozes de matemáticas negras brasileiras que falaram sobre as dificuldades em entrar e se manter no campo, além de Marie-Françoise Ouedraogo, primeira doutora em Matemática de Burkina Faso e a peruana Christabel Velazquez, de origem indígena.
A obra traz histórias como a de Manuela Souza, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisadora da área de teoria de identidades polinomiais, graduada aos 21 anos, mestre aos 23, doutora aos 27, pós doutora aos 28. Hoje, aos 33 anos, está iniciando o segundo pós-doutorado pela Universidade de Campinas (UNICAMP). Também dá espaço para que Elen Barbosa, professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), conte que foi a primeira pessoa da família dela a frequentar a universidade. Elen está prestes a concluir o doutorado.
O roteiro do minidocumentário levou cerca de dois meses e meio para ser finalizado. No primeiro mês, Giulliana Bianconi, codiretora da Gênero e Número, se dedicou a a fazer a pesquisa de personagens. As gravações foram realizadas no Rio de Janeiro e também em Salvador, na Faculdade de Matemática da UFBA.
Lutterbach complementa que a porta de entrada para a filmagem do documentário foi o International Congress of Mathematicians (ICM), maior congresso de Matemática do mundo, realizado pela primeira vez na América do Sul em agosto desse ano, no Rio de Janeiro. Um dia antes do congresso, foi realizado o evento-satélite World Meeting for Woman in Mathematics (WM)², que recebeu pesquisadoras que apresentaram trabalhos e debateram sobre questões de gênero na área e reuniu um grupo de 20 mulheres matemáticas negras brasileiras.
“É notória a baixa presença de pessoas negras em congressos de qualquer área e na Matemática não é diferente. Ali no ICM tivemos a chance de acompanhar esse encontro de mulheres negras de diferentes partes do país, e entender o que aquela reunião significava para elas, no sentido de reconhecimento de pares e fortalecimento dessa rede que já começa a discutir de forma mais sistemática o racismo institucional e o machismo na academia brasileira”, concluiu a diretora.