‘Tenho certeza que foi a polícia’, diz mãe de Lucas, um ano após sua morte

    Adolescente negro sumiu na madrugada de 13 de novembro de 2019 ao sair para comprar bolacha e refrigerante. Seu corpo foi encontrado dois dias depois boiando em um lago; vizinhos teriam visto abordagem da PM

    Maria Marques posa ao lado de um grafite em memória de Lucas Eduardo | Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

    Há exatamente um ano as vidas de Maria Marques, Maria do Carmo, Igor, Cícera e Daniela, já não são mais as mesmas. Não há um dia em que a mãe, a avó, os irmãos e as tias de Lucas Eduardo Martins dos Santos, 14 anos, não lamentam sua precoce morte e ausência de informações sobre as investigações tocadas pelas polícias Civil e Militar para saber como se deu a morte do adolescente negro.

    Lucas Eduardo, um menino risonho, que sonhava em ser bombeiro, sumiu nas primeiras horas da madrugada de 13 de novembro de 2019, ao deixar sua casa para comprar um pacote de bolachas e um refrigerante em uma quitanda dentro da Favela do Amor, na Vila Luzita, região humilde de Santo André, na Grande São Paulo. Toda sua família mora na mesma comunidade, a poucos metros da vendinha de guloseimas.

    Quando do sumiço, uma legião de moradores passou a procurar pelo garoto. Faixas, cartazes e trancamento de vias da região, como as avenidas São Bernardo do Campo e Capitão Mário Toledo de Camargo foram realizadas na tentativa de chamar atenção das autoridades. No entanto, o corpo do menino foi encontrado dois dias depois, no feriado da Proclamação da República, boiando em um lago no Parque Natural Municipal do Pedroso, na mesma cidade, distante cerca de 10 quilômetros de sua casa. Diante do estado do cadáver e espera de resultados que confirmassem se tratar de Lucas Eduardo, seu enterro só foi realizado em 30 de novembro, no Cemitério Nossa Senhora do Carmo.

    Familiares e amigos espalharam cartazes com a foto de Lucas Eduardo na esperança de encontrá-lo | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    De acordo com laudo elaborado pelo IML (Instituto Médico Legal) de Santo André, Lucas Eduardo morreu afogado. Seus familiares, entretanto, não acreditam nessa afirmação, já que não conseguem encontrar explicações de como ele andaria sozinho na madrugada até o parque e entraria em um dos braços da represa Billings. Quando encontrado, o adolescente negro estava somente de cueca e meias.

    Para a família e vizinhos, Lucas Eduardo foi sequestrado e morto após ser abordado por policiais militares. A tese é respaldada por testemunhas que teriam visto o menino ser abordado no interior da comunidade. No entanto, tais testemunhas, de acordo com os familiares do garoto, teriam sido ameaçadas pelos policiais que rondam diariamente a favela, e desistiram de prestar depoimento formal.

    Outro fato que corrobora a tese de participação de policiais militares no caso é a ida de agentes à casa de Lucas pouco tempo depois de ele deixar sua residência para ir ao mercadinho. Segundo sua mãe, a dona de casa Maria Marques Martins dos Santos, 39, duas viaturas foram até sua residência na madrugada do dia 13. Ao menos dois PMs teriam perguntado quem morava na residência, além de pedir acesso ao local. Maria afirma à Ponte ter escutado uma voz, que acredita ser de seu filho, dizer: “eu moro aqui”. Para ela, seu menino estava dentro da viatura, estacionada um pouco a frente da entrada da casa. Na sequência, os PMs deixaram o local.

    Passado tanto tempo, sua mãe, que passou a tomar uma cartela de medicamentos diariamente, ainda sonha em ver preso quem fez “tamanha maldade” com Lucas Eduardo. “É um dia muito triste. Hoje está sendo barra para mim. Amanheci o dia chorando. Só piora. Tenho certeza absoluta que foi a polícia. Sem sombra de dúvida que foi eles. Os dois que vieram aqui em casa. Gostaria de saber quem são os outros que estiveram aqui em casa. Eles estavam em duas viaturas”, disse Maria Marques, que, por várias vezes, suspirou forte para conter o choro.

    Desde a morte de Lucas Eduardo, sua mãe vive à base de remédios contra a ansiedade, depressão e anticonvulsivos, alterando totalmente sua rotina. Seus familiares também convivem com medicamentos por perto.

    Justiça por Lucas é o que familiares e amigos pedem | Foto: Arquivo Ponte (15/11/2019)

    Um dos principais pilares da família Santos, a dona de casa Isabel Daniela, 36, tia de Lucas que esteve presente em quase todas as manifestações, além de encabeçar os atos culturais que passaram a tomar conta da rotina da Favela do Amor, foi diagnostica recentemente com depressão. “Fui encaminhada para o psicólogo. Não vou me entregar”, disse à reportagem.

    A mulher se mostra triste em não ver avanços na investigação que se arrasta por um longo período. “Eu me sinto impotente em não poder fazer nada, em saber que a Justiça sabe quem são os assassinos do Lucas, mas não faz nada. Eles só fazem quando tem uma filmagem mostrando o que eles estão fazendo: assassinando os nossos filhos”.

    Daniela conta que ainda crê que os culpados pela morte do jovem sejam identificados e colocados na cadeia. “Do futuro eu espero que a justiça seja feita e os assassinos do meu sobrinho paguem pelo que fizeram”.

    As investigações sobre a morte, que seguem em segredo de Justiça, são tocadas pelo SHPP (Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa), sob supervisão da Polícia Civil de Santo André, e por um Inquérito Policial Militar elaborado pelo 41° BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), responsável pelo patrulhamento na Favela do Amor.

    Dentre as muitas denúncias que já chegaram à polícia, uma delas pode ajudar a esclarecer o que aconteceu com adolescente. A denúncia anônima aponta que Lucas Eduardo teria sido abordado dentro da favela e levado até o parque do Pedroso. Lá teria sido despido, ficando somente de cueca. Após discutir com os policiais, teria sido obrigado a correr. Nesse instante, desesperado, o menino teria caído no lago e se afogado.

    Até aqui, a única atitude tomada pelo comando da Polícia Militar foi afastamento do trabalho nas ruas dos soldados Rodrigo Matos Viana e Lucas Lima Bispo dos Santos. A dupla estava de serviço na viatura M-41222 (2° Companhia do 41° Batalhão) no dia dos fatos. Tal carro policial foi um dos dois que estiveram na casa do menino durante a madrugada do sumiço. Como prestam serviço interno continuam a receber seus vencimentos na casa de R$ 3 mil.

    O Inquérito Policial Militar elaborado pelo próprio batalhão em que os PMs atuam já está pronto, mas repousa nas prateleiras da Corregedoria desde o dia 14 de julho, segundo apurado pela reportagem.

    Procurada, a advogada Flávia Artilheiro, defensora do soldado Bispo informou que “não nos manifestaremos em razão de as investigações tramitarem em sigilo”. A defesa do soldado Viana não foi localizada.

    Para Maria Marques, Lucas Eduardo pode ter sido confundido com seu irmão do meio, um jovem de 17 anos, que é abordado e apanha constantemente de policiais que patrulham o bairro. “Lucas nunca na vida dele havia sido abordado, enquadrado. Eu creio mais que eles confundiram, e quando viu que não era, eles foram e mataram ele”.

    Outra mágoa que ronda o coração de Maria Marques é de que ela foi impedida de reconhecer os policiais militares, que, segundo ela, disseram que não ficariam frente a frente uma procurada da Justiça. Dias após o corpo ser encontrado, a mulher esteve na sede do Setor de Homicídios de Santo André, na intenção de prestar depoimento e ficar frente aos policiais. No entanto, foi ela quem saiu algemada do local, presa por uma condenação por tráfico de drogas, em 2015, que afirma desconhecer. Maria, que permaneceu algemada e teve apenas 15 minutos junto ao caixão lacrado do filho no dia do sepultamento, ficou presa por cinco meses até ser solta em abril por determinação do STJ.

    “Quando fui reconhecer, fui presa. Eles se negaram a se mostrar para mim. Falei para o delegado: ‘eu vou presa, eles não vão se apresentar e vai ficar por isso mesmo’. Eu não tenho dúvida nenhuma que foi a polícia”.

    A dona de casa Cícera dos Santos, 44, é outra tia de Lucas Eduardo que busca insistentemente os culpados pela morte do sobrinho. Mas, com o passar do tempo, acha cada vez mais difícil que se tenha uma punição exemplar. “Eu não sei nem o que falar. Na verdade, o que todos queriam de verdade são respostas. Um ano sem respostas é difícil porque se os acusados não fossem policiais, o caso já tinha respostas e os assassinos já estavam presos. Para mim isso é um descaso com a família”, completou.

    “Para mim foi um ano muito triste e ainda continua sendo. Mas não perco a fé que um dia ainda vai ter justiça. A justiça de Deus tarda mas não falha”, resumiu a avó de Lucas Eduardo, Maria do Carmo Martins dos Santos.

    Katiara Oliveira, articuladora da Rede de de proteção e Resistência ao Genocídio da região do Grande ABC, também lamenta o macabro aniversário. “São 365 dias de saudades, 365 dias de injustiça ou 12 meses de negligência do governo do Estado, sem respostas de quem matou o Lucas. São 12 meses também de constantes ameaças da PM aos moradores que testemunharam e ou se solidarizaram com a família”.

    Apesar disso, promete seguir na luta por justiça: “nesse mês de novembro nós da Rede ABC realizaremos um mutirão de diretos orientando sobre a proteção ao abuso e violência policial. E é assim que a gente cuida um do outro, com informação, cultura e arte enquanto resistência, com estratégias comunitárias, mostrando que a favela não se cala e seguirá exigindo Justiça por Lucas, que sonhava ser bombeiro”.

    E nota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) diz que “o caso continua em investigação, sob segredo de Justiça, pelo Setor de Homicídios e Proteção à Pessoa (SHPP) de Santo André. Em relação ao IPM, as apurações foram finalizadas e o inquérito será relatado em breve. Os envolvidos na ocorrência estão afastados das atividades operacionais”.

    Procurada, a Polícia Militar ainda não se pronunciou sobre as investigações.

    ATUALIZAÇÃO: Esta reportagem foi atualizada às 20h37 do dia 13/11/2020 para incluir posicionamento da SSP

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