Favela do Cimento diz que PM tenta expulsar moradores com torturas, ameaças e flagrantes forjados. PM nega.
Eles chegam de arma na mão invadindo casas, quebrando tudo o que encontram, ameaçando incendiar barracos com as famílias dentro e, à luz do dia, espancam um homem até fazê-lo vomitar e desmaiar de dor e tensão. O que fazer quando isso acontece, a não ser chamar a polícia?
Os moradores da Favela do Cimento, no bairro do Belenzinho, zona leste de São Paulo, não têm essa opção. Segundo eles, quem está aterrorizando a favela são policiais militares da Força Tática do 45º Batalhão da Polícia Militar Metropolitana.
Uma das últimas incursões violentas teria acontecido por volta das 16h da última sexta-feira (9/10), segundo relato do padre Júlio Lancelotti, vigário do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo. Ele conta que moradores da favela o chamaram depois que um grupo de policiais começou a agredir aqueles que tinham passagem por tráfico de drogas.
“Fui até o local e me identifiquei. O policial me perguntou se eu era auxiliar do tráfico”, conta Lancelotti. “Vi um PM pisar com suas botas as mãos de um morador e perguntar ‘vocês estão no seguro do padre?’”, diz. A maior violência, contudo, teria ocorrido longe da vista dos demais, entre as paredes de madeira de um barraco para onde a polícia arrastou um outro morador. Ali dentro, ele teria sido torturado com uma sessão de socos na barriga.
“Quando a polícia o trouxe, ele estava muito mal e vomitou”, conta Lancelotti. “Assim que os PMs foram embora, ele desfaleceu nos braços da companheira. Desmaiou de dor, pelo tanto de socos na barriga que levou. E de tensão, porque estava apanhando e não podia gritar.” Segundo o padre, os policiais pertenciam à viatura M-45017, comandada pelo sargento Couto.
Agressões como essa, dizem os moradores do Cimento, estão cada vez mais frequentes. “Está piorando. Eles chegam agredindo sem mais nem menos. Vão de barraco em barraco colocando as pessoas para fora”, conta William (*). Ele também conta que já foi espancado por agentes da Força Tática. “Me bateram para caralho e me juraram de morte”, diz.
Em nota, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública disse que “a Polícia Militar desconhece as reclamações e reafirma que não tolera desvios de conduta”. No mesmo texto, “solicita que os moradores compareçam aos órgãos responsáveis para que a denúncia seja imediatamente averiguada”. E garante: “se comprovada, serão tomadas as devidas providências”.
Nem todos têm a mesma certeza de que suas denúncias serão levadas a sério. “Se você é um morador de rua, não tem palavra contra os caras. Se você for depor numa delegacia, os caras falam: ‘é um sem-teto, não é porra nenhuma’”, afirma Fernando, 21 anos (*).
Fernando foi arrolado, como testemunha, em uma ocorrência de tráfico de drogas registrada no 8º DP (Brás/Belém) no mês passado. Segundo Fernando, foi um “flagrante forjado”: os policiais da Força Tática detiveram ele e outros dois jovens que encontraram na entrada da favela e mostraram uma sacola amarela cheia de papelotes de cocaína e trouxinhas de maconha. “O policial disse: ‘um de vocês vai ter que assumir, senão vou acabar matando alguém’. Um amigo nosso assumiu e está preso até agora.”
Na delegacia, Fernando diz que denunciou ao delegado plantonista as torturas que teriam sido praticadas pelos PMs, mas nada disso apareceu no texto do boletim de ocorrência, já que as supostas violências não deixaram marcas que visíveis no exame de corpo de delito.
“Pus fogo, memo”
A Favela do Cimento é um agrupamento com aproximadamente uma centena de barracos de madeira e lona erguidos entre a Rua Pires do Rio e a Radial Leste. O povo de rua conta que a região atrai há décadas desempregados que vão até lá fazer bicos em um entreposto comercial de cimento localizado na Pires do Rio. Trabalhando das 6h às 17h, levando sacos de 25 quilos de cimento sobre o lombo, “dá para tirar R$ 70 por dia, às vezes mais”.
A população de rua também é atraída ao local pela presença de um equipamento da Secretaria Municipal de Assistência Social, a Tenda Bresser, que a Prefeitura pretende desativar nos próximos meses. O padre Júlio Lancelotti acredita que as incursões violentas da Força Tática no Cimento fazem parte de uma “ação coordenada” que buscaria aproveitar o fechamento da Tenda para “limpar” os moradores de rua da região.
“Os policiais disseram que não querem a gente morando aqui. Falaram que vão chegar um dia de madrugada pela Radial, jogar gasolina nos barracos e pôr fogo com nós aqui dentro”, relata Fernando. Os PMs teriam dito que já têm experiência em incendiar favelas. “Um deles disse que foi ele quem botou fogo numa favela aqui embaixo. Falou: ‘Pus fogo, memo, e não vai demorar para a gente por fogo aqui também’.”
Desde que ouviu isso, Fernando conta que não consegue mais dormir direito à noite. “Tenho medo de um PM botar fogo no meu barraco e eu morrer queimado.”
A Ponte também conversou com Wanda Herrero, presidente do Conseg (Conselho Comunitário de Segurança) Brás-Mooca-Belenzinho, um órgão que tem entre suas funções acompanhar o trabalho das polícias junto às comunidades. Ela disse que as denúncias sobre violências cometidas pela PM são falsas.
“A polícia do 45º Batalhão não faz isso. Ponho a mão no fogo pela PM daqui”, afirmou Wanda. Ela diz se manter informada com base em conversas frequentes com os comandantes da PM local. Perguntada se também costuma ouvir os moradores da Favela do Cimento, a presidente do Conseg diz que não é necessário. “Não preciso conversar com os moradores de rua. Só preciso olhar para eles e já consigo entender a tristeza da situação em que vivem.” Além disso, ela diz que não se sente à vontade para conversar com a gente de rua. “Eu fico insegura de falar, porque muitos têm facão, tudo isso.”
Wanda também negou que exista algum movimento no bairro para expulsar os moradores de rua. “Não tem que tirar a população de rua daqui, tem é que ter políticas para que eles não fiquem morando em barracos”, afirma. E conta uma de suas ideias. “Ando conversando com empresas para saber se não poderiam ajudar colocando aquela população em contêineres lá na região da Lapa, uma coisa bonita e inovadora, que resolva o problema.”