Caso Marielle: crime de ódio é amadorismo incompatível com um matador, diz promotor

    Luiz Antônio Ayres acredita que é difícil sustentar uma condenação apenas com tese de que assassino agiu com raiva; em entrevista à Ponte, promotor também fala sobre a expansão de grupos paramilitares: ‘a milícia é o futuro do crime organizado’

    Promotor aponta que área na qual atua é tomada pelas milícias em vitória contra as facções criminosas | Foto: Reprodução/TV Brasil

    A atuação das milícias, especialmente no Rio de Janeiro, não é exatamente uma novidade. “O Estado perdeu a guerra contra o tráfico de drogas e está repetindo o mesmo erro com as milícias”, afirma o promotor Luiz Antônio Ayres, da 2ª Vara Criminal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, em entrevista à Ponte.

    Mas a discussão acerca das milícias assumiu protagonismo desde que as primeiras informações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ainda no ano passado, apontavam para o possível envolvimento desses grupos na execução do crime. Nesta terça-feira (12/3), um novo capítulo do caso: a prisão de dois ex-PMs – Ronnie Lessa e Elcio Vieira de Queiroz – acusados de serem os executores dos assassinatos e que teriam envolvimento com os milicianos do Escritório do Crime. Além disso, a conclusão dessa primeira parte da investigação dá conta de que Lessa, apontado como o atirador, agiu por repulsa à figura de Marielle. “Crime de ódio”, chegou a declarar o chefe da DH (Divisão de Homicídios) da Polícia Civil do RJ, Giniton Lages.

    “Neste caso específico, o que me surpreende é que uma pessoa que seja matador profissional, matador contumaz, uma pessoa que saiba cometer crimes às escondidas, que vá simplesmente ficar com raiva de alguém e resolve matar aquela pessoa. Me parece um amadorismo que não é compatível com quem realmente é um criminoso contumaz”, avalia Ayres.

    Especialista em grupos paramilitares, o promotor explica por que considera a milícia mais ameaçadora do que as facções criminosas, como CV (Comando Vermelho) e PCC (Primeiro Comando da Capital). Santa Cruz, onde atua o promotor, é justamente o local onde em abril do ano passado, com o estado do Rio sob intervenção, uma operação contra uma milícia da região deteve mais de 150 pessoas coletivamente e foi alvo de crítica por parte da Defensoria Pública. “As milícias são mais perigosas do que o crime por serem mais preparados intelectualmente e estarem mais infiltrados no poder público, inclusive no judiciário, no legislativo, executivo, todas as esferas. É muito difícil combater um inimigo com preparo e que normalmente está à nossa frente”, sustenta Ayres.

    O promotor também comentou que discorda da sugestão do Psol, que quer uma nova CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar esses grupos – como ocorreu no Rio de Janeiro em 2008. ” A milícia é o futuro do crime organizado, infelizmente. Nós perdemos o bonde da história, não tivemos capacidade, meios e leis, para coibir esse avanço. A única última tentativa é tentar coibir o tráfico de armas”, avalia Luiz Antonio Ayres.

    Confira a entrevista:

    Ponte – Os dois suspeitos presos de matar a Marielle, o PM Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Vieira de Queiroz, teriam envolvimento com o Escritório do Crime, segundo as investigações. Qual a diferença de atuação deste grupo para as milícias?

    Luiz Antonio Ayres – Esse Escritório do Crime, o grupo que se está chamando assim, está muito no imaginário popular de lenda. A milícia não precisa de uma organização dessas para cometer crimes. Eles são formados por agentes de segurança, Forças Armadas, Bope, pessoal absolutamente capacitado para cometer os seus próprios crimes. Não tenho nenhuma comprovação da existência de um organismo chamado de Escritório do Crime que esteja atuando paralelamente à milícia ou que a milícia contrate para prestar serviços a ela. Não tenho nenhuma informação nesse sentido.

    Ponte – Em 2008, o Rio de Janeiro teve a CPI das Milícias e constatou a existência dos grupos e parte de seus membros. Passados dez anos, o que aconteceu na prática da segurança no estado?

    Luiz Antonio Ayres – A milícia tomou tudo. A milícia é o futuro do crime organizado, infelizmente. Nós perdemos o bonde da história, não tivemos capacidade, meios e leis, para coibir esse avanço. Para ter uma ideia, toda a área de Campo Grande e Santa Cruz, que era dominada pelo tráfico de drogas, hoje não existe mais tráfico por lá. Nenhuma facção, CV (Comando Vermelho) ou Terceiro Comando, não atuam porque a milícia tomou tudo nos últimos dez anos. A realidade hoje é infinitamente pior do que estava na CPI das milícias do RJ. Eles já tomaram a Praça Seca, em Jacarepaguá, a unida localidade de Jacarepaguá não tomada ainda é a Cidade de Deus, em Bangu tem alguma comunidades ainda sob controle do Comando Vermelho, mas que os milicianos não têm interesse ainda de atacar. O que vai acontecer é que vão virar um grupo narcomiliciano, estão vendendo droga, estão com um poder impensável em dez anos e, realmente, não vejo mais solução de acordo com o que temos de instrumentos legais e meios de investigação para conseguir acabar com as milícias. A única última saída que podemos tentar é fazer um combate mais efetivo ao tráfico de armas, pois existem muitas pontas que não são devidamente acompanhadas e apuradas. Exemplo: atiradores, colecionadores, empresas de segurança… Nada disso recebe a fiscalização que merece receber. Essa é a última chance que temos para conseguir debelar, um pouco, o poder das milícias e evitar que o tráfico volte a tomar essas comunidades com as milícias neutralizadas.

    Ponte – Estas ações no Rio acontecem em outras localidades?

    Luiz Antonio Ayres – Identificamos focos de milícias em outros estados, como Bahia, Ceará, Pará, São Paulo… Agora, precisamos ter em mente: grupos milicianos não necessariamente vão atuar exatamente da mesma forma em cada território, se pega a ideia base, fundamental de lucro fácil e expansão de poder político, e aplicam de acordo com as características daquela população da localidade. É uma coisa perigosa. O povo pensa “Ah, o que tem aqui não é milícia, o que tem é lá no Rio”. Mais ou menos. O que temos no Rio é um tipo de milícia que atua de uma determinada forma, isso não quer dizer que não haja outros grupos milicianos atuando em outros lugares de formas diferentes.

    Ponte – É um processo similar ao que aconteceu com o crime organizado, com o Comando Vermelho na vanguarda das ações justamente no Rio…

    Luiz Antonio Ayres – O Comando Vermelho nasceu em 1981, 1982, quando tomou a formatação atual. Até 1995, o tráfico era impossível de ser derrotado. Estamos passando exatamente pela mesma situação agora com as milícias, criadas em 2005. É impossível ela ser derrotada nesse momento. E são mais perigosos do que o crime por serem mais preparados intelectualmente e estão mais infiltrados no poder público, inclusive no Judiciário, no Legislativo, Executivo, todas as esferas. É muito difícil combater um inimigo com preparo e que normalmente está à nossa frente.

    Ponte – Como assim à nossa frente?

    Luiz Antonio Ayres – À nossa frente porque eles sabem, através das infiltrações, o que a polícia está investigando. O inquérito que muitas vezes é instaurado, sua possibilidade de êxito quando investiga milícia e ser um instrumento eficaz para debelar um grupo, muito provavelmente terá resultado inferior do que poderia ter se fosse trabalho de monitoramento do tráfico. Esse outro grupo tem uma base específica, sabemos onde está, a milícia, não. A milícia não tem rosto, o tráfico, tem. Fica muito difícil. Eles recebem informações privilegiadas dentro do próprio Estado e isso frustra investigações mais complexas que podem levar a resultados efetivos. O tráfico nunca foi um grande problema nesse sentido, ainda que tivesse corrupção, claro. Mas os traficantes em si não estavam tão arraigados na estrutura do Estado.

    Ponte – Exemplo é o caso da prisão dos acusados de matar Marielle e Anderson, um deles confessou ter sido avisado de que seria preso…

    Luiz Antonio Ayres – Pois é, é um problema sério. Isso acontece muito. A milícia está infiltrada e sabe o que está acontecendo. Fazer um trabalho de inquérito comum como se fazia anteriormente com relação ao tráfico, muito provavelmente vamos alcançar um resultado eficaz para acabar com as milícias. A informação vai vazar.

    Ponte – Como avalia a possibilidade de ser abrir uma nova CPI para combater as milícias, dessa vez em âmbito nacional?

    Luiz Antonio Ayres – Não vai ter como combater, pouco provável. Qualquer coisa que se pretenda fazer em relação à milícia, em minha visão, deve ser instituído sob forma de força tarefa, mas uma aos moldes Bastardos Inglórios: que ninguém saiba que existe. Se souber que existe uma atuação sistemática por parte do poder público, das forças de segurança contra milícia, vai vazar e eles ficarão sabendo antes. Não tem jeito. Minha visão é que deveria ter essa força tarefa invisível, sem nenhum acesso, não soubessem de nada, que não apresentasse resultados para o público, mas apresentasse nos índices de segurança e focando na questão do tráfico de armas. Isso é importante. O que entra de arma ilícita e depois é esquentada e, por outro lado, o que entra de arma lícita no Brasil e é esfriada propositalmente, é uma festa. As empresas de segurança são mestas nisso. “Tivemos não sei quantos fuzis roubados, não sei quantos mil pistolas que desapareceram”. Cara, é raspar o número que aquilo é vendido para o crime organizado. Não tem mais como rastrear. Não adianta fazer CPI oficial porque não vai resolver. É preciso desse grupo que atue pelas sombras.

    Ponte – A prisão dos dois acusados de assassinarem Marielle e Anderson é baseada em pesquisas e a posição de um celular usado pelo possível atirador. Além disso, a investigação aponta “crime de ódio” como motivo do crime. São provas suficientes para um futuro julgamento?

    Luiz Antonio Ayres – É difícil falar porque não tive acesso à investigação. O que posso dizer, pelo que tenho de experiência como promotor de júri durante muitos anos, é que uma coisa fundamental para se conseguir a condenação de um réu é o motivo. Me parece que a questão da motivação, pelo que tenho acompanhando pela imprensa, ainda tem sido muito questionado, inclusive pelo deputado Marcelo Freixo, que já levantou suspeita. Em abstrato, dentro de um tribunal de júri, como funciona a cabeça dos jurados, se não há um motivo, muito forte para se praticar um crime, é difícil sustentar e conseguir uma condenação. Neste caso específico, o que me surpreende é que uma pessoa que seja matador profissional, matador contumaz, uma pessoa que saiba cometer crimes às escondidas, que vá simplesmente ficar com raiva de alguém e resolve matar aquela pessoa. Me parece um amadorismo que não é compatível com quem realmente é um criminoso contumaz. A questão da motivação precisa ser muito bem trabalhada, não só com quanto aos executores, mas também quanto aos eventuais mandantes. Pela minha experiência, é um caso muito difícil de se sustentar uma condenação.

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