Artistas se reúnem e usam paredes de ocupações na capital paulista como tela para ajudar na construção narrativa da resistência desses locais; mutirões já atuaram em dois prédios
No coração de São Paulo, a poucos metros da famosa esquina da avenida São João com a Ipiranga, o vazio de um prédio cinza e abandonado é cada vez mais ofuscado. Em setembro do ano passado, as cores e as pessoas começaram a ocupar o lugar. Dezenas de famílias, a maioria negra, formaram a Ocupação Ipiranga. A ideia de ir em grupo com muitos grafiteiros e pichadores fazer trabalhos conjuntos em ocupações no centro de São Paulo começou há cerca de um ano, quando Alex Kaleb encabeçou outros artistas para levar cor às paredes da Ocupação Mauá, também no centro de São Paulo, logo depois que os moradores conseguiram luz para o corredor da ocupação.
Desde então, o cinza padrão do centro da cidade, triste e frio, ainda mais com as goteiras intermináveis no térreo do prédio, foi dando espaço para as tintas utilizadas por diversos artistas, de São Paulo a Fortaleza. Aos poucos, paredes, portas, acessos às escadas e até o teto dos andares na Ocupação Ipiranga, onde a reportagem da Ponte esteve, ganharam cores.
Segundo o artista cearense Ramon Sales, a acessibilidade é um dos princípios desta arte, por isso a importância de estar em uma ocupação. “O grafite é aquele grito entalado em forma estética”, afirma. Ele participou de um dos primeiros grupos de artistas que se juntaram para grafitar ocupações e, depois, foi chamado por moradores para fazer novas artes.
Ele é autor de uma das obras mais inovadoras da ocupação. Ramon ousou, sem saber como a arte seria recebida pelos moradores, e fez faixas coloridas no teto de um dos andares. Depois de pronto, os moradores ficaram satisfeitos e o convidaram para fazer mais.
Em diferentes datas, os artistas participam de uma espécie de mutirão para grafitar prédio ocupado. O grafite da fachada da Ocupação Ipiranga foi feito pela carioca Rita Wainer. Na parte de dentro, dezenas de artistas assinam.
“Esse lugar representa muito, porque é moradia ocupada por quem não tem teto e uma tela preenchida por artista que não tem tela”, disse Fel, 31 anos, autor do grafite mais alto do prédio, que fez juntamente com seu parceiro Subtu, e é visto da famosa esquina.
Os desenhos nas paredes buscam levar para os moradores, além do acesso à arte, alguma forma de reflexão. Um desses exemplos é o grafite de Caluz. Ela fez um desenho de repetição de uma mulher negra na parede lateral à uma escada.
“Normalmente esses prédios são bem antigos, estão danificados, e a nossa ideia é trazer cores para o lugar. Eu escolhi essa parede porque já estava bem deteriorado. Esse desenho conversa muito com isso. Eu sempre desenho mulheres negras, e esse grafite, especificamente, mostra como podemos ser várias em uma só”, diz Caluz.
Outro grafite que leva à reflexão é o do macaquinho — personagem conhecido do artista Subtu — com a frase “vá em busca do conhecimento”, no segundo andar da Ocupação Ipiranga. Segundo ele, a ideia é estimular as crianças que veem aquela arte diariamente.
Mas quando a ideia é com as crianças, Alex Kaleb, 37 anos, é o mais desenrolado. Ele ficou conhecido nesta ocupação por deixar e estimular as crianças também participarem dos grafites. “As cores, a tinta, isso é tudo que as crianças gostam, então, mais do que apenas ver, acho importante elas participarem fazendo”.
No dia que a reportagem acompanhou as paredes da ocupação sendo preenchidas por cores, em 15 de janeiro, pelo menos cinco crianças participaram dos desenhos em uma sala do primeiro andar da ocupação.
Outro artista renomado no grafite que participa das obras na Ocupação Ipiranga é o Iaco. Na rua há mais de duas décadas, deixando sua marca em vários prédios das ruas paulistanas, ele afirma que “trazer a cultura de rua para dentro da ocupação traz também um outro lado, outra forma de conhecimento” para os moradores do prédio.
Com um pincel na mão ajudando Kaleb a fazer o grafite em um espaço vazio do segundo andar, a pequena moradora Naomi, 9 anos, resume o trabalho: “É um pouco difícil, mas no fim fica lindo”.