Tirar dinheiro da polícia para salvar vidas: IDMJR e o desfinanciamento

Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, entidade que opera na Baixada Fluminense, defende que fim da polícia não é utopia e investimentos milionários para armar as forças de segurança reflete o racismo estrutural do Brasil

Mensagem exibida em ato que ocorreu em em agosto de 2023, em São Paulo, pelo fim da operação das polícias na Baixada Santista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

É na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, que se articula um movimento antirracista com uma proposta ambiciosa: abolir a polícia. A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR) propõe o desfinanciamento das forças de segurança como estratégia política a favor da redução da letalidade policial. Para a entidade, não é utopia pensar no fim da polícia. A tática é considerada um caminho para a “garantia de vida para a população negra”. 

A preocupação é baseada em dados cada vez mais alarmantes. Em 2022, 30% das mortes violentas no Rio de Janeiro foram cometidas em ações de forças de segurança, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). No mesmo ano, uma pessoa negra morreu em intervenção policial a cada oito horas no estado, conforme a Rede de Observatórios. 

“Pensar em desfinanciar as polícias é estratégico para impedir que mais cenas de guerra aconteçam em horário escolar nas favelas”, argumentam Fransérgio Goulart e Giselle Florentino, coordenadores-executivos da IDMJR.

A proposta da entidade é garantir que o orçamento público privilegie investimentos em saúde, educação e cultura em detrimento dos gastos com as polícias. Além de produzir dados sobre o orçamento e pressionar o Executivo, o IDMRJ promove uma articulação com deputados estaduais para diminuir os valores gastos em emendas impositivas que financiam a manutenção da violência armada.

Defund the police 

A ideia de desfinanciar as polícias ganhou força mundial após a morte de George Floyd, em maio de 2020, no estado americano de Minnesota. O ex-segurança negro foi morto por um policial branco durante uma abordagem. Suspeito de usar uma nota falsa em um mercado, Floyd repetiu por diversas vezes que não conseguia respirar ao ter o pescoço prensado pelo joelho do agente sem que houvesse recuo na ação. 

O horror da morte, filmada e divulgada on-line, inflamou o debate público nos Estados Unidos sobre a violência contra a população negra (traduzido pelo movimento Black Lives Matter) e também pelo “defund the police”, desfinanciamento das polícias, em livre tradução.

O slogan chegou a ser pintado por ativistas nas proximidades da Casa Branca, à época ocupada pelo republicano Donald Trump. O então presidente sempre foi crítico à pauta, atribuindo a proposta a ideais radicais e ligados à esquerda. 

Ainda em meio à comoção por Floyd, cidades como Los Angeles e Baltimore chegaram a cortar os orçamentos para polícias em 2020. A última retirou R$ 22 milhões das forças de segurança. Contudo, um ano depois, o valor foi restabelecido. 

Nem mesmo Joe Biden, que durante a campanha presidencial declarou apoio a uma “reforma da polícia” e visitou a família de Floyd, se mostrou adepto do movimento. Em discurso em 2022, Biden defendeu os gastos com as forças de segurança. “A resposta não é desfinanciar a polícia. É financiá-la. Financiá-la. Financiá-la”, disse. 

Segurança Pública tem maior orçamento

No caso brasileiro, a situação não é muito diferente. No Rio de Janeiro de Claudio Castro (PL), 15,8% do total do orçamento público previsto para este ano, equivalente a R$ 17,8 bilhões, será destinado à segurança pública. Enquanto isso, gastos com saúde e educação ocupam 9,4% e 8,7%, respectivamente. Os números foram destacados no relatório De Olho na Alerj: uma incidência política na segurança pública, lançado pela IDMJR em outubro do ano passado. 

No caso do Rio, a segurança pública era dividida até novembro em ações das secretarias da Polícia Militar e Civil. A secretaria de Segurança Pública foi extinta pelo então governador Wilson Witzel em 2018. Vice de Witzel, que foi cassado, Castro demorou a alterar a configuração estabelecida por seu antecessor. 

O fracasso na gestão da segurança teve como resultado o pedido de apoio federal no ano passado. Agentes da Força Nacional foram enviados ao estado para reforçar o policiamento. Em novembro de 2023, Castro anunciou o retorno da Secretaria da Segurança, mas mantendo as secretarias da Polícia Militar e Civil. 

Enquanto o orçamento anunciado para a nova pasta foi de R$ 80 milhões, as demais garantiram uma fatia maior no orçamento, com previsão orçamentária de R$ 167 milhões e R$ 119 milhões, respectivamente, apenas para ações de policiamento.

“A prioridade do Governo no orçamento público é a execução e expansão de uma política de morte através do aumento da militarização da vida e o investimento em armamentos bélicos”, diz o relatório.

Tirar dinheiro da polícia

Ponto central para o IDMJR, Fransergio e Giselle detalham que a entidade obteve vitórias no desfinanciamento da polícia fluminense. Em 2022, por meio de articulação com parlamentares, foi possível diminuir os valores destinados via emendas para compra de caveirões, comumente usados em operações em favelas. Cinco foram adquiridos por essa via, em detrimento do plano original que previa a aquisição de 10.

Também houve redução no valor destinado à compra de munições. A previsão inicial era de aquisição de 1,5 milhões, quantidade reduzida pela metade. “É matemático. Com menos recursos, menos caveirões, menos munições, menos gente negra assassinada”, defendem. 

No ano passado, graças à incidência do IDMJR, houve realocação de recursos para pastas como igualdade racial. Apesar dos avanços com o Legislativo, Fransergio e Giselle afirmam que não há por parte do governo Castro abertura para um diálogo. 

Longe de utopia

Para os coordenadores da IDMRJ não é utópico pensar no fim da polícia. A dupla defende que existem experiências abolicionistas em que o aparato policial não está presente. 

“Quilombos, aldeias, terreiros, ribeirinhos … Não utilizam o aparato policial e nem encarcerador como parte de suas sociabilidades. Falar em abolicionismo é falar em garantia de vida para a população negra, não há pauta mais urgente do que nos mantermos vivos”, pontuam.

A avaliação da dupla é de que experiências como protocolos de atuação, o uso de armas menos letais e até mesmo a formação política em direitos humanos não foram capazes de acabar com a letalidade policial.

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“É preciso entender que as instituições policiais nasceram para impedir levantes da população antes escravizada, seu nascedouro é racista. Não é possível melhorar ou reformar uma instituição do Estado que foi criada para executar pessoas negras e tudo que não faz parte de um padrão cristão, branco e heteronormativo”, defendem.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou o governo do Rio de Janeiro e o presidente da Alerj para comentar os pontos elencados na matéria. Não houve retorno.

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