Tiroteio em Paraisópolis motiva boatos e criminalização de favela

Candidato bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) participava de inauguração de escola na zona sul paulistana quando ocorreu ação; “lamentável”, diz organizador do evento sobre comparação feita com Lula, que visitou favela no Rio

Jornalistas se protegem durante tiroteio em Paraisópolis, zona sul da cidade de SP | Foto: Reprodução

Wallace Rodrigues, 38, estava realizando um sonho e comemorando um momento importante: a inauguração do primeiro pólo físico de uma universidade na Favela de Paraisópolis, a segunda maior da capital paulista, na Rua Manoel Antônio Pinto. A parceria é fruto do projeto que fundou com a esposa, ainda em 2016, a Casa Belezinha, que promove cursos profissionalizantes na área de beleza, com o Centro Universitário Ítalo Brasileiro. O evento já estava sendo encerrado quando foi interrompido na manhã desta segunda-feira (17/10): “eu estava com o microfone na mão fazendo os agradecimentos quando ouvimos os tiros”, conta.

Dentre os participantes, estava Tarcísio de Freitas (Republicanos), candidato ao governo de São Paulo e ex-ministro da Infraestrutura de Jair Bolsonaro (PL), moradores da comunidade e a imprensa. Todos estavam no terceiro andar do prédio, depois de Wallace ter mostrado o espaço que conta com salas específicas para os cursos de beleza, geração de renda, computação e afins. “A gente convidou a comunidade, usando carro de som, não convidamos nenhum político em campanha, mas o convite foi se espalhando e chegou no Tarcísio. Recebemos todos de forma homogênea”, declarou.

Em um vídeo divulgado pela campanha de Tarcísio, Gabriele Pedrosa, que se diz mantenedora e idealizadora do projeto Casa Belezinha, diz que foi a responsável pelo convite ao candidato. “É mentira que ele não teria sido convidado”, afirma.

“Infelizmente, tiro em comunidade é comum, não deveria ser normal, mas é comum”, lamentou. “Aquilo não foi um atentado porque todas as pessoas da comunidade têm um respeito grande pelo nosso trabalho, que é voltado para a educação, e tinha moradores, a imprensa ali, os tiros foram a 300 metros da escola”, explica Wallace.

Todo o evento da inauguração ficou secundário diante do tiroteio. Pelo Twitter, às 12h, Tarcísio declarou que ele e sua equipe foram “atacados por criminosos”, estavam bem e que “equipe de segurança foi reforçada rapidamente com atuação brilhante da @PMESP. Um bandido foi baleado. Estamos apurando detalhes sobre a situação”.

Imagens dos presentes se abaixando para se proteger e depois do candidato sendo escoltado até um carro circularam pelas redes sociais. Ao mesmo tempo, parlamentares bolsonaristas aproveitaram o cenário para fazer declarações atacando a comunidade e o presidenciável Lula (PT). 

O deputado federal reeleito Carlos Jordy (PL-RJ) disse que “só Lula e o PT conseguem entrar numa comunidade dominada pelo tráfico e serem recebidos sem nenhum tipo de problema”. O deputado federal eleito Nikolas Ferreira (PL-MG) fez o coro. “Quando não usa boné da CPX acontece isso… coincidência”, em alusão ao boné usado pelo presidente Lula, que significa uma abreviação de “complexo” durante uma passeata no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, na última semana, e é que produzido por moradores locais e alvo de fake news.

Baiano, desde 2015 Wallace mora na comunidade na zona sul da capital paulista. Foi lá que conheceu a esposa, a cabeleireira Monica Jesus, 32, com quem abriu o negócio. Ao saber dessas declarações, Wallace considerou como parlamentares “pobres de caráter”. “É lamentável saber que parlamentares que tiveram voto do povo tenham tanta pobreza de caráter e desenvolvimento porque somos trabalhadores e era um evento de educação, da inauguração de uma escola, não foi uma campanha política”, afirma.

“É uma forma de criminalizar a comunidade porque aqui existe gente que trabalha, gera renda, usa a educação. Se existe a pobreza por falta de acesso à alimentação, também existe a pobreza de quem está no gabinete e não conhece a comunidade”, critica. 

Moradora de Paraisópolis há nove anos, a jornalista e produtora cultural Gloria Maria, 23, concorda. “São declarações absurdas de quem não pisa na comunidade, não sabe como é viver na comunidade e reforça esse discurso do [presidente] Bolsonaro (PL) de que quem pisa na comunidade é bandido”, afirma. 

Gloria se refere à declaração do presidente, que apoia Tarcísio, seu ex-ministro, no primeiro debate antes do segundo turno das eleições, transmitido pela TV Band, no domingo (16/10), em que confundiu o Complexo do Salgueiro com o Complexo do Alemão e disse que na passeata com Lula estavam apenas traficantes, o que gerou revolta de diversos moradores e ativistas. “É um absurdo porque tem muito trabalhador nas quebradas, o que mais tem são trabalhadores, migrantes nordestinos que levantaram a cidade de São Paulo, tocam a economia desse grande pólo, é um grande desrespeito”.

Polícia não acredita em atentado

No início desta tarde, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) convocou uma coletiva para dar informações preliminares sobre o tiroteio. O comandante-geral da Polícia Militar, coronel Ronaldo Miguel Vieira, disse que, por volta das 11h40, “oito indivíduos, dois com armas longas”, entraram em confronto com seguranças à paisana e “na sequência estava o pessoal do policiamento ostensivo junto”, mas que a cronologia dos fatos ainda vai ser traçada. 

Uma van escolar foi atingida por tiros, mas não houve feridos. Um homem identificado como Felipe Silva de Lima foi morto na ação, o coronel disse que ele tinha passagem por roubo e era um dos “indivíduos” indicados. “Os efeitos colaterais [morte e os tiros na van] quem provocaram foram os marginais que estavam próximo da tropa”, disse o comandante-geral.

O general João Camilo Pires de Campos, secretário da Segurança Pública do estado, declarou que “nenhuma hipótese está afastada”, mas também que, “pessoalmente”, acredita que não se tratou de um atentado a partir dos dados preliminares e também por não ter sido identificado nenhum impacto ou vestígio de disparo em direção ao pólo universitário. 

“No meu entendimento, coloco na dinâmica dos fatos o ruído de a polícia estar naquele ambiente”, disse. Segundo ele, “ruído” seria o “desconforto” de criminosos com a presença da polícia.

Ele apontou que as circunstâncias do caso e da morte do homem serão apuradas, além de que há três delegados cuidando da investigação, que está sob responsabilidade do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil. 

O secretário afirmou que imagens de câmeras de segurança, dos cinegrafistas e das fardas dos policiais estão sendo buscadas para análise. Também disse não ter recebido nenhuma informação sobre possíveis ameaças contra o candidato. 

Tarcísio: ‘não foi atentado, mas um ataque’

Às 16h ainda desta segunda-feira (17), Tarcísio usou um evento em que o partido Cidadania em São Paulo declarou seu apoio ao candidato para realizar uma entrevista coletiva sobre o caso. Ao som de uma paródia de “Me Leva”, velho hit do cantor bolsonarista Latino, num auditório apinhado de apoiadores no térreo do edifício Praça das Bandeiras (mais conhecido como Joelma), incluindo nomes da política nacional como o deputado federal Vinicius Poit (Novo-SP), ex-candidato ao governo do estado de São Paulo, e Gilberto Kassab, cacique do PSD, o ex-ministro do governo Bolsonaro deu a sua versão da história.

“Não foi um atentado, mas considero um ataque”, afirmou o candidato do Republicanos, contrariando as opiniões iniciais da polícia de São Paulo. “Eu estava no terceiro andar do prédio, conhecendo o projeto, quando ouvimos algumas rajadas. A primeira impressão que eu tive era ‘olha, acho que é algo para nos intimidar, dizer, vocês não são bem vindos aqui’. Mais tarde, poucos minutos depois, a gente começou a ouvir mais tiros e gritaria”, diz Tarcísio.

“O pessoal gritou ‘abaixa, abaixa, vão atirar aqui’, até o momento que uma pessoa chega e diz: ‘tem que tirar ele [Tarcísio] daqui que o problema é ele, estão dizendo que vão entrar aqui’. Houve uma troca de tiro, até o momento em que a minha equipe entra e diz: ‘conseguimos estabelecer aqui a segurança para você poder sair’. Rapidamente saímos, entrei na van, esperamos todo mundo entrar, demos até carona para membros da imprensa que estavam lá”, continuou o candidato.

“Esse tipo de troca de tiro ali não é comum, e vamos lembrar que o crime organizado aqui em São Paulo é hegemônico em determinadas regiões. O segurança que estava no térreo narrou que quatro motocicletas com dois elementos em cada veículo começaram a rondar e fotografar o local em que estávamos. Perguntaram se eram policiais que estavam ali, se evadiram do local e voltaram com armamento”, relata o ex-ministro.

Para Tarcísio, o tiroteio foi um ato de “intimidação”, “um recado claro do crime organizado dizendo o seguinte: ‘vocês não são bem vindos aqui. Tenho lado, e não é o seu’”. Perguntado se a afirmação indicaria alguma pretensão política por parte dos atiradores, o candidato negou veementemente: “não estou politizando o ataque, estou dizendo que foi um ataque contra o Estado, o crime não quer a presença do Estado no território”.

A agenda de Tarcisio em Paraisópolis foi divulgada apenas na noite deste domingo (16/10).  Ele disse na coletiva que estava visitando a mãe na UTI e que só conseguiu confirmar a presença tarde da noite. O ex-ministro da Infraestrutura ainda se recusou a responder duas perguntas feitas pela Ponte durante a coletiva: não quis informar se existem policiais entre seus seguranças e falou que não comentaria a declaração do deputado Jordy.

Enquanto Tarcísio encarava uma fila de políticos do interior do estado querendo tirar fotografias com o candidato após a coletiva, um senhor negro entoava o hino cristão “Glória Aleluia”. Para Orlando Torres, o fato de Tarcísio não ter sido atingido no tiroteio seria um “milagre”. “E no atentado contra [a vice-presidente da Argentina] Cristina Kirchner, foi um milagre também?”, perguntou a reportagem. “Foi um milagre maior ainda, Deus parou aquela bala! Viva a política de paz!”, respondeu.

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Às 17h, ladeado o tempo todo por Kassab, Tarcísio embarcou em um veículo preto, seguido por outros três veículos também pretos a título de escolta. Do outro lado da rua, quatro  PMs do 7º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano acompanhavam a movimentação em silêncio, em pé ao lado de duas viaturas.

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